Página 13 publica, a seguir, um projeto de resolução apresentado no dia 17 de janeiro de 2020 à reunião realizada pelo Diretório Nacional do PT. O projeto, assinado por Jandyra Uehara, Julio Quadros, Lucinha do MST, Luna Zaratini, Natália Sena, Patrick Araujo, Rui Falcão, Sheila Oliveira, Tiago Soares e Valter Pomar, não foi submetido à votação, porque a reunião terminou sem votar nada.
O atentado terrorista dos EUA contra o Irã, as mobilizações da classe trabalhadora e dos povos de todo mundo contra as políticas ultraliberais, os sinais de que na economia capitalista acumulam-se os elementos para uma crise similar à de 2008, a situação da América Latina e do Caribe, assim como a atitude subalterna do atual governo brasileiro exigem do Partido dos Trabalhadores uma intensa ação internacional, respaldada por um diagnóstico acurado da situação mundial.
A crise capitalista internacional deflagrada em 2008 provocou mudanças estruturais na relação entre as classes, dentro de cada país, e entre os Estados, no plano mundial. Tais mudanças contribuem para agudizar os conflitos ideológicos, políticos, militares e também econômicos, aumentando a possibilidade de uma nova crise econômico-financeira internacional.
A implosão do sistema de crédito, sobre o qual se assentara até então, nos principais países capitalistas, parte expressiva da expansão dos mercados, expansão que ocorria apesar da queda relativa da renda familiar e dos investimentos produtivos dos poderes públicos, desnudou um dos contrastes marcantes da nossa época, entre a superprodução de mercadorias e a progressiva restrição da demanda.
Recusando o controle social da produção, a eutanásia da especulação financeira, a redução das jornadas de trabalho e a ampliação dos salários, as principais corporações empresariais e seus agentes políticos optaram por enfrentar a crise de 2008 não através de uma reforma da arquitetura do sistema, como sonhavam muitos ingênuos, mas sim através de uma radicalização da agenda neoliberal.
Nos países capitalistas centrais e nas periferias submissas, a aposta foi na redução dos “custos de produção” (leia-se, cortar salários e ampliar a exploração) e na manutenção da solvência dos governos para honrar títulos da dívida pública (leia-se, cortar investimentos públicos e direitos sociais).
Atingir esses objetivos vem implicando em adotar programas cada vez mais agressivos para rebaixar salários, eliminar direitos trabalhistas, desregulamentar relações laborais, recortar pensões, privatizar ativos estatais e desidratar serviços públicos, ao mesmo tempo em que se tomam medidas para diminuir os impostos dos mais ricos.
A exploração e a opressão assumem diversas formas, com destaque para “novas” relações de trabalho desprovidas de qualquer tipo de proteção social. Entre as maiores vítimas deste processo estão as mulheres trabalhadoras, os jovens trabalhadores e os aposentados. A reforma da aposentadoria, contra a qual se levantou a classe trabalhadora francesa, é paradigmática do tipo de futuro que o Capital deseja para o Trabalho. A chamada indústria 4.0 e todas as novas tecnologias, ao invés de serem acompanhadas de uma ampla redução da jornada de trabalho com ampliação dos salários, são postas à serviço da ampliação da barbarie social, da destruição da segurança e saúde dos trabalhadores e consumidores.
A partir de 2008, todos e cada um desses programas reacionários vêm sendo radicalizados, tanto no centro quanto na periferia do sistema capitalista. O ultra-neoliberalismo consolida-se, assim, como vertente hegemônica do imperialismo em sua fase atual, na qual prepondera a defesa da lucratividade do capital financeiro.
A implantação dessas medidas entra em conflito aberto com os interesses das classes trabalhadoras, das camadas populares e dos Estados que buscam desenvolvimento. Para enfrentá-los, as classes capitalistas e os Estados ainda dominantes lançam mão da repressão crescente, do cerceamento das liberdades democráticas e das ameaças à soberania nacional. O imperialismo segue, as guerras prosseguem e a indústria bélica lucra como nunca.
Ao mesmo tempo, as classes dominantes estimulam os conflitos dentro da classe trabalhadora, especialmente contra os migrantes vindos de outras regiões, países e continentes. Muitos povos da África e da América Latina continuam vítimas de genocídio.
O definhamento do chamado Estado de bem-estar social, construído no pós-Segunda Guerra a partir do ambiente internacional constituído pelo papel da União Soviética e da classe trabalhadora na derrota do nazifascismo, é acompanhado pela desconstituição da chamada democracia liberal.
A necessidade dos grandes capitalistas, de remover qualquer resistência ao programa neoliberal, produz uma escalada de ataques contra sindicatos, movimentos populares e partidos de esquerda, abre espaço para correntes de extrema-direita e neofascistas, cujo crescimento eleitoral reflete tanto o acirramento interno da luta de classes, quanto o esforço de cada burguesia nacional em se consolidar no novo cenário mundial.
O controle do capital sobre o sistema político sufoca as liberdades democráticas. O neofascismo é ao mesmo tempo desdobramento e instrumento do ultra-neoliberalismo. Como em outros momentos da história, voltam com força a intolerância religiosa, o racismo, a misoginia e a lgbtfobia. A brutalidade de que é vítima Julian Assange, cuja liberdade imediata é reclamada pelo PT, é uma prova a mais de que as liberdades estão sob ameaça. O terrorismo de Estado praticado contra o Irã é um sinal a mais de que vivemos cada vez mais perigosos tempos de guerra.
As baixas taxas de crescimento das economias capitalistas centrais (EUA, União Europeia, Japão), contrastando com o crescimento de outras economias, com destaque para a economia chinesa, reforça o nacionalismo das grandes potências decadentes, um nacionalismo imperialista e reacionário, que busca disputar de forma mais acirrada o controle de seus mercados internos, fontes de matéria prima e energia, acesso à mão de obra barata, massas de consumidores e territórios de investimento.
Além da aplicação das medidas neoliberais e protecionistas em suas próprias fronteiras, os principais países capitalistas necessitam aprofundar a dominação sobre a periferia do sistema. Esse é o fundamento mais relevante da ofensiva reacionária em curso na América Latina, ofensiva que teve início logo após a crise de 2008, com a meta de derrotar e/ou derrubar os governos progressistas eleitos a partir de 1998. Esses governos, mesmo quando circunscritos a reformas limitadas, tornaram-se incompatíveis e antagônicos à atual estratégia imperialista.
Além das razões impostas pela reorganização da acumulação capitalista, assume destacada relevância para compreender o atual cenário mundial e latino-americano, o declínio da hegemonia dos Estados Unidos, declínio alimentado principalmente pela consolidação da China como potência mundial, incluindo sua aliança estratégica com a Rússia.
Completando a transição de uma nação exportadora de mercadorias para um país exportador de capitais e tecnologia, o gigante asiático assume destacado protagonismo em regiões outrora sob controle dos Estados Unidos, além de incidir diretamente sobre os mercados capitalistas mais desenvolvidos.
Frente a essa dinâmica, os Estados Unidos adotam respostas cada vez mais agressivas e belicistas, buscando proteger sua economia e preservar antigas áreas de influência a qualquer custo. Devem ser lidos sob essa lógica o cerco contra a revolução bolivariana, na Venezuela, o recrudescimento do bloqueio contra Cuba, o apoio à derrocada de Evo Morales na Bolívia, a colaboração com o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff.
A ofensiva reacionária na América Latina visa estabelecer governos de direita e extrema-direita que, vestindo distintos disfarces institucionais, apelando às vezes para golpes clássicos, outras vezes para traições (como no Equador), sejam capazes de criar Estados policiais, em condições de quebrar a resistência popular e de suas organizações, para facilitar a imposição de uma política ultra-neoliberal e de subordinação à principal potência imperialista.
Frente a esse cenário, as forças de esquerda atuantes em nossa região estão diante do desafio de redesenhar sua estratégia. Os grandes protestos no Chile e na Colômbia apontam para alternativas que mesclem luta institucional e desobediência civil, portadoras de programas que rompam com a ordem neoliberal e expressem um caminho de transferência do poder político para as classes trabalhadoras.
A centralidade da mobilização popular, ao contrário de se contrapor aos processos eleitorais, é a via mais segura para vitórias relevantes, como a obtida pelo peronismo nas recentes eleições argentinas, e para a constituição de blocos políticos adequados para enfrentar as manobras de cerco e sabotagem patrocinadas pelas elites locais e o imperialismo.
Diante desse quadro internacional, cabe ao Partido dos Trabalhadores aprofundar relações com os partidos de esquerda, movimentos sociais e articulações contrahegemônicas em todos os países e continentes, com o intuito permanente de fortalecer o campo anti-imperialista e as iniciativas em defesa da paz, das liberdades e da autodeterminação dos povos.
Nosso raio de ação inclui os Estados Unidos e a Europa, mas deve priorizar a Ásia, a África e especialmente a América Latina e o Caribe. Nesta última região, o PT reforçará seus laços com os partidos e organizações integrantes do Foro de São Paulo, sem prejuízo de manter relações com um espectro mais amplo de forças.
O PT igualmente deve abraçar a tarefa de intensificar as ações de solidariedade internacional em território brasileiro e latino-americano, particularmente iniciativas contra as agressões movidas pelos Estados Unidos e seus associados contra os governos soberanos de Venezuela e Cuba.
Favorecidos e agradecidos pelo apoio internacional na luta contra o golpe e por Lula Livre, temos a obrigação política e moral de apoiar todos e todas que lutam, mundo afora, contra a exploração e a opressão. Nesse trabalho de solidariedade e intercâmbio político, cumprem papel destacado o companheiro Lula e a companheira Dilma Rousseff.
Também devemos estar atentos e mobilizados para apoiar os povos em luta — por exemplo na Bolívia, no Chile, na Colômbia e no Haiti—, além de cooperar para que os presidentes Alberto Fernandez, da Argentina, e Manuel López Obrador, do México, implementem políticas anti-imperialistas, democráticas e populares.
Para além da América Latina e Caribe, o PT deve privilegiar a relação com correntes políticas que assumam uma posição antagonista ao neoliberalismo. Dentro de nossa estratégia internacional, devemos aprofundar nossos laços com os partidos dirigentes na Rússia e na China, com as forças antineoliberais na Europa e nos EUA, ao mesmo tempo em que solidificamos relações com os movimentos e partidos anti-imperialistas na Ásia, África e Oriente Médio.
Embora focados na relação com partidos, governos e parlamentares, o PT – por história, vocação e visão estratégica—manterá sempre que possível relações diretas e estimulará que seus militantes nos movimentos sociais também mantenham relações com sindicatos, movimentos e organizações populares dos mais diferentes tipos. Derrotar o neofascismo e o ultraliberalismo exige uma ampla frente da classe trabalhadora e dos povos de todo mundo. O movimento sindical é fundamental nessa tarefa.
Inclui-se entre nossas tarefas mais relevantes a defesa de uma política ambiental que proteja a vida do planeta, incentivando uma coalizão mundial que cobre dos Estados capitalistas mais desenvolvidos, principais responsáveis pela deterioração ecológica, medidas de contenção e investimentos para controlar a deterioração da natureza, sem prejuízo ao desenvolvimento dos países mais pobres.
O PT irá intensificar a formação político-ideológica em relação aos temas internacionais, tratando de elevar o grau de interesse e preparação de militantes e dirigentes nesse terreno fundamental da ação política, assim como expandir por todo o partido o acompanhamento e o debate dos temas mundiais, reafirmando nossa natureza democrática, socialista e internacionalista.
Para dar conta de todas estas tarefas, a Secretaria de Relações Internacionais (encabeçada por dirigente que seguirá fazendo parte da Comissão Executiva Nacional) deve ser reforçada por um coletivo de integrantes do Diretório Nacional, dentre os quais se definirá uma pessoa responsável pelo Foro de São Paulo, e outras pessoas responsáveis pelas relações com Ásia, África, Europa e Estados Unidos, respectivamente.
A classe dominante brasileira e o governo Bolsonaro insistem em fazer do Brasil um apêndice político, econômico e cultural dos Estados Unidos. Nunca na história do nosso país, nem mesmo nos piores períodos ditatoriais, tivemos uma política externa tão subalterna, entreguista e vendilhona, alinhada com concepções medievais, anticientíficas, terraplanistas.
Hoje, mais do que nunca, depende da classe trabalhadora e de suas organizações, entre elas o nosso Partido dos Trabalhadores, fazer do Brasil e da América Latina e Caribe uma região de paz, soberania, integração, desenvolvimento, direitos e liberdades.