Mistérios de uma simples brincadeira infantil
Por Paulo Sérgio de Proença (*)
Um sol tímido, coado por pequenas nuvens tornavam agradável aquela tarde de outono, quarta-feira. Após o almoço, meus dois netos (Arthur, com seis anos e Cecília, com três) então nos visitavam e pediram para descer, a fim de brincarem um pouco; afinal, apartamentos não têm quintal, embora condomínios normalmente ofereçam espaços para diversão infantil. Além disso, estou convencido de que avôs existem para isso mesmo e cumprem o tradicional papel que a eles cabe, desde imemoriais tempos.
Cecília gostava de escorregar, a única alternativa além de correr e da bedoteca que, na sonoridade infantil representava a desnecessariamente longa extensão de brinquedoteca. Ocorre que no condomínio onde moramos a brinquedoteca abriga brinquedos desgastados pelo uso e pelo descuido e logo surge o desinteresse dos pequenos.
No espaço externo para convivência e circulação desataram a correr, como eles e outras crianças gostam de fazer; Cecília corria atrás de alguns pássaros que vez por outras aterrissavam no solo. Em dado momento quiseram tirar os chinelos; surge a pergunta “posso tirar?”. Não esperaram a resposta, que seria favorável. Pisar no chão seria bom, pensei, ainda que o piso fosse revestido de cimento; melhor seria se pisassem em terra viva, com umidade, minhocas e formigas. Foi o que fizeram, descalços, correndo, indo e vindo, naquela agradável tarde de outono.
De repente, um joga o chinelo para o alto e a outra repete o gesto; lamentei não estar de chinelo para os imitar, jogando para o alto o meu chinelo preto de borracha, que me acompanha já há tempos, dada a alegria e a entrega com que faziam os movimentos.
Dei-me conta de que aquilo não era um simples gesto de liberdade das conveniências, o que não se aplicaria àquela iniciativa infantil em busca de brincadeira; afinal, chinelo tem seu lugar e longe dos pés não serve para nada… só que não contaram isso para meus netos. Apesar disso, eles elevaram a condição de chinelos de borracha, dando a eles alcance lúdico, uma certa dignidade a um objeto quase descartável. Aquelas formas de borracha deixaram de ser agressoras, como às vezes acontece em mãos de adultos e se tornaram companheiros de brincadeiras descontraídas: alegria e não agressão.
Arthur, em demonstração precoce de afinidade com números e quantidades, propôs um jogo com estes critérios: se o chinelo caísse com a sola no chão, valeira um ponto; se a sola ficasse voltada para cima, dois pontos; se ficasse apoiado nas alças, em posição lateral vertical, três pontos. Começou a contagem…
Chinelo sobe, chinelo desce…
– Sete a quatro…
Desce chinelo, sobe chinelo…
– Treze pra mim… Quanto tem a Cecilia?
Já eu não sabia, pois não estava conseguindo acompanhar o voo dos chinelos e a respectiva contagem dos pontos, na tabela proposta.
– Nove… – chutei.
Ele ficou satisfeito, porque a Cecília não estava nada preocupada com números nem quantos pontos estava acumulando. Queria apenas jogar chinelos às nuvens naquela tarde agradável de outono. E também se jogar.
Lembrei-me de Bakhtin[1] e do realismo grotesco medieval, com as inversões carnavalescas que propunham a superação de uma ordem séria e opressora; essa cultura carnavalesca admitia “padres de festa junina” (em jogo de elevação e não de rebaixamento) e o uso de cueca na cabeça, inversão aliás sugestiva e válida para algumas figuras da política atual… coisas de adultos que não brincam com chinelos.
Aqueles dois pares de chinelos infantis deixaram de ser simples objetos, baratos e sem importância; as duas crianças descobriram neles grande utilidade e nobreza, além de proteger nossos pés e carregar nosso corpo e nossa indomável empáfia. Os pequenos chinelos se elevaram, acompanhando os pássaros, provocando espasmos espontâneos de alegria e de satisfação naqueles dois infantes…
Elas projetaram para o alto o que deveria estar no rés do chão. Isso, sim, é gesto de ruptura com o convencional, com vantagens de ganho psíquico considerável (eita: reflexões adultas procuram tudo racionalizar, deixando de extrair o que cada momento pode oferecer de lúdico).
Pois não é que os pequenos riam… riam à farta, tentando jogar cada vez mais alto um simples chinelo de borracha. E não só os chinelos voavam… a cada movimento, os corpos deles com os pés descalços também se alçavam para o alto, livres, abraçando as nuvens em projeção onírica, para de lá contemplar a tristeza de quem não consegue lançar ao alto os chinelos nem seus sonhos e fazer deles um meio de descontração, de alegria e de prazer. Daí as adultas carrancas assustadoras de quem não sabe nem pode mais brincar.
– Quanto está o placar, vô?
– Eu não sei…
A incerteza estimulou o Arthur a desistir desse controle matemático; concentrou-se no gesto largo e generoso de jogar para o alto seus chinelos que, também eles, subiam, caíam e riam, a mais não poder.
Esses dois… puseram-me no chinelo.
– Apresentaaaarrrr… chinelos! Apontaaaaarrrrr… chinelos! Chinelos… ao alto!
(*) Paulo Sérgio de Proença é professor da Unilab, Bahia.
[1] BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora Hucitec; Editora Universidade de Brasília, 1987.