Tarso Genro e o ferrão de Ciro Gomes

Por Valter Pomar (*)

Tarso Genro

Há muito tempo, a long time ago, uma certa esquerda metia a boca na palavra “progresso”, acusada de sintetizar as perversões de uma estirpe do marxismo que incluiria Engels e Stalin. Hoje, 40 anos depois, encontro quem salive satisfeito toda vez que escuta a palavra “progressista”. Ver como aquilo deu nisso é uma das coisas boas no envelhecer: ver as piruetas que o mundo (e as pessoas) dão.

Pensei nisto ao ver o sempre elegante e bem escrito texto, publicado hoje no Sul21, do companheiro Tarso Genro. O texto intitula-se “Lula, Ciro: o vazamento benigno lembra Mattelart em Porto Alegre” e está reproduzido ao final.

O texto começa com uma ode a democracia liberal, que faço questão de reproduzir na íntegra: “A conversa entre líderes, o contato pessoal, o diálogo público e inclusive a controvérsia radical entre personalidades ideologicamente opostas, que integram o modo de fazer política na democracia, fazem a superioridade – em termos políticos – da democracia liberal em relação aos regimes de partido único e às ditaduras e totalitarismos em geral”.

O divertido nesses e noutros elogios à democracia liberal é que lança luz de maquiagem sobre o que ocorre nos salões de festa, mas esconde o que ocorre nas periferias. Mas claro: não devemos incomodar o intercâmbio de salamaleques, com a lembrança de que o povo não é convidado a participar deste “modo superior” de fazer política, que seria supostamente característico da democracia liberal.

Tarso, claro, lembra que as vezes a “quando a democracia é assaltada nos seus fundamentos, seja pela perversão da informação, pela violência ou pelos oligopólios midiáticos – pela força do dinheiro instalada no modo de fazer política – a democracia resseca”.

O que Tarso não lembra é que isso não ocorre às vezes, isso ocorre o tempo todo. Não existe “democracia liberal” que não seja o tempo todo “assaltada” pela força do dinheiro, dos oligopólios, pela violência. Exatamente porque a democracia liberal é… liberal, ou seja, é uma democracia burguesa, não é para todos. Os Estados Unidos são o maior exemplo disso.

E quando aquelas medidas preventivas não funcionam, quando o povo ameaça querer participar em pé de igualdade da festa, aqueles mesmos democratas liberais, em nome de manter a democracia liberal, apelam aos cavernícolas.

E depois que os cavernícolas fizeram o serviço sujo, os democratas liberais se dizem horrorizados com os excessos (que, claro, teriam sido causados pelos excessos originais cometidos pelo povo e/ou pela esquerda) e convocam certa esquerda a dar uma mãozinha para reestabelecer o status quo anterior.

Status quo ante que certa esquerda passa a defender como se fosse a coisa mais linda e maravilhosa do mundo. Só Dark explica.

Mas voltemos a Tarso.

Segundo ele, quando as instituições “são assaltados pelo medo ou pelo oportunismo e os partidos podem tornar-se amorfos e passar de uma fase de inércia para uma fase de decadência ou irrelevância”, chegaria “a hora das reservas morais acumuladas na esfera da política, dos homens e mulheres que -mais além dos curtos espaços da conjuntura- encarnam o espírito das épocas futuras, superam as suas adversidades, concertam acordos e consensos para derrotar, o mal maior: a hidra do fascismo, no nosso  caso concreto, aliada da ignorância, da má fé, do negacionismo da ciência, da razão e autor da semeadura da política necrófila”.

Teria o muito que dizer sobre esta ode ao “papel do homem na história”. Mas me confesso mesmo é encantado com a porção Cervantes que se esconde em Tarso. Pois não é fácil transformar as motivações vis de uns e pueris de outros, em uma história épica.

Como historiador bissexto, espero que algum dia seja divulgada toda a história do encontro Lula e Ciro: quem sugeriu, quem marcou, a data, o que foi dito, a quem foi informado e, principalmente, por quais motivos o encontro vazou no momento e na forma com que vazou. Quando isso ocorrer, será possível diferenciar realidade e lenda, os motivos reais e as “nobres intenções”.

Mas adianto o seguinte: ao contrário do que diz Tarso, a história não foi “benignamente vazada por alguma alma inteligente”, nem foi um “acaso”.

A história foi vazada na hora e da forma adequadas, para ajudar a candidatura do PDT no Ceará. E Ciro não é, de jeito nenhum, um dos “grandes líderes democráticos do país”. O comportamento de Ciro no segundo turno de 2018 impede que ele receba esta medalhinha.

Mas, é claro, o coração de certos petistas é grande, grande demais, tão grande que toda vez que encontram um escorpião, sempre perguntam a ele: isto é um ferrão?

Pulo a parte erudita do artigo de Tarso e vou direto ao final: nosso companheiro acha que o “encontro de Lula com Ciro”, “se for regado pela ação consciente de ambos os líderes, pode restaurar a vontade democrática da nação e jogar a extrema direita fascistóide e seus asseclas ultraliberais no lugar da História que eles merecem: o das tristes lembranças do lixo autoritário. Flávio Dino, Requião, Freixo, Boulos, Haddad, Juliano Medeiros, Lupi, Marina, dirigentes do PSB e dos pequenos partidos de esquerda, sabem que nas circunstâncias atuais só a ampla unidade contra o fascismo é o antídoto histórico para recuperar o espaço político de lutas que foi empestado pelo fascismo”.

Deixando para outra hora os saborosos detalhes escondidos no parágrafo anterior, passo direto ao que me parece ser o 8 mental em que está presa parte da esquerda brasileira: a principal tarefa da esquerda é derrotar o fascismo;  a luta contra o fascismo exige ampla unidade; a ampla unidade exige abrir mão de posições particulares; logo, a ampla unidade se faz pelo centro e não pela esquerda.

Esta análise contém na minha opinião quatro defeitos:

1/identifica mal nosso inimigo: o “fascismo” de Bolsonaro não é a causa, é uma das consequências da reorientação que a classe dominante brasileira e mundial fizeram a partir da crise mundial de 2008. É absolutamente insuficiente uma política focada exclusivamente numa das cabeças da hidra;

2/atribui ao centro capacidades que ele não tem: em tempos de polarização, as forças de “centro” se esvaziam. Para que as forças de centro possam de fato liderar a luta contra a direita, elas terão que se deslocar efetivamente (ou seja, programática e politicamente) para a esquerda. E o centro realmente existente no Brasil de hoje está fazendo o oposto disto: está se deslocando para a direita, assumindo o programa ultraliberal e conciliando com o bolsonarismo;

3/destrói nossas chances de futuro: o Brasil avançou, entre 1989 e 2014, porque a esquerda polarizou a disputa política. A esquerda pode perder a capacidade de polarizar? Pode, sempre pode. Mas perder a capacidade por derrota é uma coisa; perder a capacidade por capitulação, por tradição, por desistência, por inapetência, é outra coisa;

4/na prática, elimina da equação a única variável capaz de virar o jogo: não é a unidade política por cima, mas a mobilização popular por baixo que pode derrotar o “bolsonarismo”, o ultraliberalismo e tudo o mais. A depender de como se construa a pretendida “unidade”, o povo ficará alheio e como espectador.

Obviamente, dar conta destas questões exige uma esquerda que não esteja hipnotizada pela democracia liberal. Aliás, foi exatamente esta hipnose republicana que nos trouxe à situação atual.

(*) Valter Pomar é professor da UFBAC e membro do Diretório Nacional do PT


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

Segue abaixo o texto criticado

https://www.sul21.com.br/colunas/tarso-genro/2020/11/lula-ciro-o-vazamento-benigno-lembra-mattelart-em-porto-alegre/

Lula, Ciro: o vazamento benigno lembra Mattelart em Porto Alegre

Publicado em: novembro 1, 2020

Ciro Gomes e Lula (Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula)

Tarso Genro (*)

A conversa entre líderes, o contato pessoal, o diálogo público e inclusive a controvérsia radical entre personalidades ideologicamente opostas, que integram o modo de fazer política na democracia, fazem a superioridade – em termos políticos – da democracia liberal em relação aos regimes de partido único e às ditaduras e totalitarismos em geral. Quando a democracia é assaltada nos seus fundamentos, seja pela perversão da informação, pela violência ou pelos oligopólios midiáticos – pela força do dinheiro instalada no modo de fazer política – a democracia resseca: as instituições são assaltados pelo medo ou pelo oportunismo e os partidos podem tornar-se amorfos e passar de uma fase de inércia para uma fase de decadência ou irrelevância.

Quando este fenômeno se instala é a hora das reservas morais acumuladas na esfera da política, dos homens e mulheres que -mais além dos curtos espaços da conjuntura- encarnam o espírito das épocas futuras, superam as suas adversidades, concertam acordos e consensos para derrotar, o mal maior: a hidra do fascismo, no nosso  caso concreto, aliada da ignorância, da má fé, do negacionismo da ciência, da razão e autor da semeadura da política necrófila. Por isso a conversa de Lula e Ciro, dois dos grandes líderes democráticos do país, benignamente vazada por alguma alma inteligente, pode fazer história no país.

Na sua “História da Utopia Planetária” (Sulina, P.Alegre 2002), Armand Mattelart – numa parte do seu livro em que fala da “democracia telegráfica ou do nascimento de uma utopia”- escreve o seguinte: “não
há democracia possível ‘além do alcance da voz’, acreditava Jean-Jaques Rousseau”. Esta posição é “contestada por Alexandre Theóphile-Vandermond (1735-1796) que, em março de 1795, se apóia em outra língua, a de de sinais do código telegráfico”, para  tentar desmentir Rousseau, já que o alcance da voz fora superado pelo som da linguagem cifrada.

Independentemente do sentido que Mattelart empresta ao seu raciocínio, é claro que Rousseau, o filósofo, e  Teóphile-Vandermond, o matemático-músico e químico, se confrontam no espaço da razão. Sobre o debate, prossegue o autor, “Barrére também se empolgou” (dizendo que o telégrafo é) um meio  que tende a consolidar a unidade da República, pela ligação, íntima e súbita, que ele dá a todas as suas partes…”.

Neste livro, reiterando o que já tinham expressado Castoriadis, Mário Soares, Boaventura Souza Santos, Eduardo Galeano, Ettore Scola, Mássimo Dalema, Álvaro Cunhal, Chico Buarque e muitas outras personalidades das artes, da ciência e da política, Mattelart escreveu na sua contracapa: “Sinto-me especialmente feliz por ver este livro publicado em Porto Alegre (…) porque ao organizar o I Fórum Social Mundial, em janeiro de 2001, a cidade tornou-se um símbolo universal: o da crença de que um outro mundo é possível”.

Mattelart acrescenta um dado curioso: “o templo da religião da humanidade, na capital gaúcha, e as estátuas de alguns de seus governantes não são testemunhos da influência durável, deixada aí pela utopia contista? No fim das contas, não é por acaso que esta história da utopia planetária seja lançada em Porto Alegre! A fluidez na informação do mundo, que revolucionou a distância entre as pessoas, a partir dali, reforçou a “ligação, íntima e súbita” entre os humanos.

A reflexão de Mattelart, carregada do orgulho que temos – milhares de nós – pela construção desta experiência, choca-se com o tempo vivido deste pesadelo de obscurantismo e ódio de classe, que prepararam a  política necrófila e genocida que nos sufoca. Ela se firmou com a patética empulhação dos “dois extremos”, apoiada nas classes dominantes, que agora se olham no espelho e vêem, nele, o rictus doentio do seu ídolo oco de ideias e lotado de impulsos assassinos. A estratégia da falsidade que jogou com o medo dos extremos leva-os ao abismo e saltar sobre ele exige acasos conjugados, perseverança e sobretudo recuperar o que Mattelart apontou como necessidade de renegar o aprofundamento do abismo e  das “dissociações entre os mundos sociais”.

A subjetividade política aí conquistada pode ordenar o “mapa caótico de fragmentações”, para fazer surgir os “bolsões de resistência”: os acasos, às vezes, chegam nas horas certas, a perseverança e a capacidade política -de liderar e propor- sempre são recuperadas juntando os pedaços daquele mapa fragmentado, com a voz unitária dos líderes, através de um programa mínimo de unidade imediata, para superarmos o pior das três crises: a econômica, a sanitária e a ambiental.

Chego no ponto que me interessa na atual conjuntura: o “vazamento benigno” do encontro de Lula com Ciro é um acaso que, se for regado pela ação consciente de ambos os líderes, pode restaurar a vontade democrática da nação e jogar a extrema direita fascistóide e seus asseclas ultraliberais no lugar da História que eles merecem: o das tristes lembranças do lixo autoritário. Flávio Dino, Requião, Freixo, Boulos, Haddad, Juliano Medeiros, Lupi, Marina, dirigentes do PSB e dos pequenos partidos de esquerda, sabem que nas circunstâncias atuais só a ampla unidade contra o fascismo é o antídoto histórico para recuperar o espaço político de lutas que foi empestado pelo fascismo.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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