Por Valter Pomar (*)
Recomendo fortemente a leitura de um artigo de Tereza Cruvinel, intitulado “Lula com Alckmin: O Brasil vale uma missa”.
O artigo está aqui:
https://www.brasil247.com/blog/lula-com-alckmin-o-brasil-vale-uma-missa
Neste artigo, Cruvinel faz o que até agora ninguém fez: defender com começo, meio e fim a candidatura de Alckmin para vice de Lula.
Aliás, é sintomático que tenha sido uma simpatizante jornalista – e não um dirigente partidário – a cumprir tal tarefa.
Isto diz muito sobre os métodos de “terceirização da direção” adotados por alguns setores do Partido, mas isto é assunto para outro momento.
A seguir vou analisar passo a passo os argumentos de Cruvinel.
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Segundo Cruvinel, haveria um “ranger de dentes na esquerda e na direita” contra a possível aproximação entre Lula e o chuchu.
Cruvinel começa seu texto, portanto, apelando para um clássico truque retórico: equiparar para desqualificar.
Comunistas e nazistas, petistas e bolsonaristas, críticos de direita e críticos de esquerda, vira tudo farinha do mesmo saco.
Nos termos de Cruvinel, os antagônicos são reduzidos à condição de “sectários dos dois lados”.
Um dos preços deste truque retórico é o de ser injusto com a esquerda e benevolente com a direita.
Pois é óbvio que o problema dos que criticam Alckmin pela direita não é ser “sectário”.
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Peço que leiam a frase a seguir do artigo de Cruvinel: “sectários dos dois lados estão dizendo que, apesar dos discursos feitos nestes últimos tristes tempos, para eles a prioridade não é derrotar Bolsonaro e o fascismo, restaurar plenamente a democracia e tirar o país da decadência intolerável a que foi condenado pela ignorância e a incompetência do bolsonarismo”.
O principal erro deste raciocínio é o seguinte: diferente da esquerda, a prioridade dos tucanos (Alckmin inclusive) nunca foi derrotar Bolsonaro, nunca foi restaurar a democracia, nunca foi tirar o país da decadência.
No máximo, o objetivo da direita gourmet é manter o bolsonarismo sem Bolsonaro.
É curioso que Cruvinel não tenha usado a seu favor o argumento acima.
Afinal, bastaria ela dizer que os tucanos de direita não querem Alckmin com Lula porque defendem um bolsonarismo sem Bolsonaro e, portanto, não querem Lula de jeito nenhum.
Talvez ela não use esse argumento porque ele não seja tão eficaz quanto acusar de “sectários” quem lutou contra o golpe apoiado pelo chuchu.
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A seguir, Cruvinel diz que “os indignados da esquerda deviam prestar mais atenção ao que Lula disse à Rádio Gaúcha”: “eu quero construir uma chapa para ganhar as eleições. E quero construir uma chapa para mudar outra vez a história deste país”.
Segundo Cruvinel, Lula foi “objetivo e claro”.
Foi.
Mas vejamos os fatos: o PT já ganhou as eleições presidenciais quatro vezes seguidas.
Mas ganhar é diferente de mudar.
E ganhar quatro vezes não impediu o golpe.
Portanto, ser “objetivo” exige refletir sobre como ganhar e como governar.
E a pergunta é: uma aliança no primeiro turno com a direita gourmet ajuda a ganhar? E ajuda a mudar a história do país?
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Segundo Cruvinel, a “direita estrila contra Alckmin pela razão óbvia de que, aceitando a vaga de vice, ele potencializa a chapa de Lula e torna mais remoto o sonho do momento da direita não-bolsonarista: turbinar a candidatura de Sergio Moro, polir sua imagem de juiz ladrão com um banho de mídia, atribuir-lhe um conteúdo político e intelectual que ele não tem e levá-lo ao segundo turno para uma disputa de vida ou morte com Lula”.
Notem que a aposta de Cruvinel é a seguinte: Alckmin na vice de Lula reduz a potência eleitoral da “terceira via”.
Mais especificamente, reduz as chances de Moro.
O pressuposto implícito do raciocínio é que Bolsonaro estaria derrotado. Mas será que isto é mesmo verdade?
Cruvinel destaca os resultados de uma pesquisa desta semana, em que Bolsonaro “manteve o segundo lugar com 31,5%, bem atrás de Lula com 42,8%, mas viu Moro fincar seu nome em terceiro lugar com 13,7%”.
O que estes dados revelam? Que no seu pior momento, Bolsonaro mantém 1/3 do eleitorado; e que a soma das candidaturas da direita indica que o segundo turno tende a ser muito difícil.
É principalmente por isto que alguns setores do Partido estão trabalhando para resolver a disputa no primeiro turno das eleições. Ou seja: querem fazer em 2022 o que não conseguimos fazer em 2002, 2006, 2010 e 2014. Na prática, buscam antecipar para o primeiro turno alianças tipicamente de segundo turno.
A pergunta é: se Alckmin viesse a ser vice de Lula, isto contribuiria eleitoralmente?
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Segundo Cruvinel, “a aliança confere a Lula muito mais que votos (…) Como vice, ele traria a chapa de Lula mais para o centro, como fez José Alencar em 2002, e enfiaria uma cunha nos setores da elite que, mesmo achando Bolsonaro inaceitável, consideram Lula indesejável. (…) Alckmin na chapa neutralizaria resistências e atrairia apoios do campo conservador de que Lula necessita, se não para ganhar, com certeza para governar”.
Centro, elite, campo conservador… no cálculo de Cruvinel não aparece um tema: como conquistar e ampliar nosso apoio nos setores populares? No fundo, Cruvinel e muita gente boa acha que Lula dará conta desta tarefa, com qualquer discurso, com qualquer programa, com qualquer aliança, com qualquer vice.
Na minha opinião, um movimento ao centro (expresso por exemplo na aliança com chuchu ou com outro do tipo) provocaria mais prejuízos do que ganhos. Especialmente se a contrapartida dessa eventual aliança for entregar a cabeça de chapa em vários estados importantes.
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O texto de Cruvinel desqualifica as críticas ao chuchu como “sintoma de uma velha doença”.
Ou seja: lembrar tudo o que Alckmin fez ou disse, alertar todos os problemas envolvidos nesta operação, vira “sectarismo”.
Falar de PCC, Pinheirinho, Opus Dei, privatizações, política de segurança anti-povo, apoio ativo ao golpe de 2016, apoio a prisão e interdição de Lula, tudo isso vira sectarismo.
Dito de outra forma: um dos preços de apoiar Alckmin é passar o pano na política dos tucanos.
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Paradoxalmente, Cruvinel cita Lênin para logo depois dizer o “comunismo de fato passou a existir apenas na realidade paralela dos extremistas de direita”.
De fato, o comunismo é um “fantasma” desde os tempos do Manifesto. O problema é que o medo deste fantasma tem implicações práticas. E tem implicações práticas porque a classe dominante está numa fase de querer tudo e não estar disposta a ceder nada.
Mas esta discussão sobre o comunismo é apenas mais um truque retórico. Pois a discussão real não é sobre o comunismo, mas sim sobre o petismo. A política defendida por Cruvinel, se levada a cabo, contribui para transformar o PT numa mistura entre PTB e PMDB.
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Cruvinel afirma que os críticos da solução chuchu na vice defenderiam que “só uma chapa puro-sangue, que tivesse como vice um Flávio Dino ou alguém parecido, garantiria a natureza progressista do eventual terceiro governo Lula. Em verdade, gostariam que tal governo fosse revolucionário sem ter havido revolução, mas apenas uma eleição. Está faltando a essa turma compreensão da correlação de forças. Se o PT pudesse ganhar sozinho, Bolsonaro não seria presidente hoje”.
No parágrafo acima, Cruvinel desenha uma caricatura, para espancar mais fácil.
Vamos por partes.
A frase “se o PT pudesse ganhar sozinho, Bolsonaro não seria presidente hoje” não faz o menor sentido. Bolsonaro é presidente porque houve um golpe, porque Lula foi preso, porque as candidaturas da direita gourmet derreteram, porque o TSE não defendeu a lei contra as fraudes etc.
A frase “gostariam que tal governo fosse revolucionário sem ter havido revolução, mas apenas uma eleição” simplesmente não corresponde a posição dos petistas contrários a vice de Alckmin. O que defendemos é que o governo Lula tenha um programa capaz de mudar o país e achamos que um vice como Alckmin não ajuda nada nisso.
A frase “só uma chapa puro-sangue, que tivesse como vice um Flávio Dino ou alguém parecido, garantiria a natureza progressista do eventual terceiro governo Lula” é outro exagero. Certamente há quem defenda um vice comprometido com o programa democrático popular; mas obviamente não é o vice em si que define a natureza do governo. Que em nossa opinião, precisa ser de esquerda e não apenas progressista.
No fundo, a questão é a seguinte: Cruvinel raciocina como se o vice só fosse bônus, sem ônus nenhum. E todo mundo que apresenta algum senão, ela desqualifica como “desculpas”.
Vejamos alguns exemplos.
Exemplo 1: “aí surgem desculpas as mais diversas: Ah, o Alckmin é privatista e neoliberal. Ok, mas ele não vai governar”.
Portanto, Cruvinel não nega que o chuchu seja privatista e neoliberal. Sua defesa é que ele será um vice decorativo.
Exemplo 2: “Algum acordo sobre o programa de governo haverá mas Lula não venderá a alma para ter um vice”.
Portanto, Cruvinel reconhece que ter o chuchu na vice terá um preço, mas não diz qual será, usando Lula como escudo para fugir do debate de mérito.
Exemplo 3: “Quando eu disse ontem que ele será um substituto eventual de Lula, naturalmente não dizia que ele só servirá para isso”.
Portanto, Cruvinel admite que o chuchu pode não ser tão decorativo assim
Exemplo 4: “Obviamente que representará interesses conservadores no governo, mas daí a dizer que será golpista como foi Temer vai larga distância”.
Portanto, Cruvinel parece capaz de prever o futuro.
Pergunto: em 2010 Cruvinel achava que Temer viria a ser golpista?
Outra pergunta: Cruvinel acha que Alckmin foi golpista?
Por incrível que pareça, Cruvinel passa o pano no picolé de chuchu. Chega a dizer o seguinte: “Os jornais de 2016 trazem declarações do ex-governador pedindo cautela com o impeachment de Dilma e guardando alguma distância do processo. Depois veio o completo embarque dos tucanos e ele foi junto, mas não teve o papel de um Aécio”.
Ou seja, chuchu foi apenas cúmplice, não foi a vanguarda do golpe.
Exemplo 5: “Outros dizem: Ah, com Alckmin de vice a direita vai tramar um golpe contra Lula para empossá-lo, como fizeram com Temer. Contra isso, não temo dizer: se Lula fosse o presidente em 2016, não teria havido golpe. Tanto é que Dilma o buscou como ministro da Casa Civil na certeza de que ele, com sua habilidade e capacidade de articulação, evitaria o impeachment”.
Ou seja: o golpe teria acontecido porque a presidenta era Dilma; e teria sido evitado se tivesse havido “habilidade e capacidade de articulação”. A culpa teria sido da inabilidade da presidenta Dilma. Bastaria Lula ter virado ministro e o golpe teria sido detido. Mas, diz Cruvinel, “Moro vazou seletivamente aquela conversa entre os dois, sugerindo que Lula fora nomeado ministro apenas para não ser preso, e Gilmar Mendes tomou a pior decisão de sua vida no STF, impedindo que Lula assumisse o cargo depois de já empossado”.
Gilmar Mendes não tomou a “pior decisão de sua vida”, Gilmar Mendes era parte da engrenagem golpista, assim como a maioria do STF, a maioria do Congresso, a maior parte dos meios de comunicação, a maior parte da classe dominante. Achar que um movimento desta natureza, com o apoio da Casa Branca, seria detido pela nomeação de um ministro habilidoso é de uma ingenuidade sem tamanho. Em favor de Cruvinel, seja dito que como ela muita gente pensava assim. Mas hoje, depois dos fatos ocorridos, continuar insistindo nesta “narrativa” é – além de tudo o mais – uma injustiça sem tamanho com a presidenta Dilma.
O mais grave, contudo, é achar – contra todas as evidências – que Lula seria imune a um golpe. Ou seja: ele pode ser condenado, pode ser preso, pode ser impedido de disputar a eleição de 2018. Mas golpe contra ele não haverá, por isso não há perigo em por um golpista neoliberal na vice.
Otimismo é tudo na vida.
Exemplo 5: “Mas então os purosanguistas acrescentam: Ah, as forças do imperialismo, que foram parceiras da Lava Jato e do golpe de 16, vão cooptá-lo e para a derrubada de Lula. Sobre isso digo: a viagem de Lula à Europa mostrou que sua dimensão internacional é uma blindagem considerável contra golpes dessa natureza. Os norte-americanos já fizeram de tudo neste planeta, contra diferentes povos, mas é preciso levar em conta quem é Lula no mundo. E, sobretudo, que a natureza de seu governo dificilmente dará pretexto a tais estrepolias na geopolítica. Quando presidente, ele conseguiu ter boa relação com Bush, sem virar as costas para Cuba ou para a Venezuela”.
O trecho transcrito acima é outro exemplo de otimismo a toda prova. O que pode vir a acontecer não sabemos. Mas o que aconteceu, todos nós sabemos: o governo Obama, numa operação em que Biden esteve diretamente envolvido, operou em favor do golpe e da condenação/prisão/interdição de Lula. Isto foi feito pelo governo cujo presidente chamava Lula de “o cara”, ou seja, quando a dimensão internacional de Lula era também imensa. Achar que aquilo pode vir a se repetir é apenas uma hipótese; achar que aquilo não vai se repetir de maneira alguma, é uma irresponsabilidade. Mas quem acha isto, por óbvio, não vê problema em dar sorte para o azar, não vê problema em colocar um golpista neoliberal na vice.
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Cruvinel conclui seu texto com um exemplo absolutamente inacreditável.
Vou transcrever: “Lula, mais uma vez, lembra Henrique IV, que abdicou do protestantismo e abraçou o catolicismo para garantir seu reinado, dizendo: “Paris bem vale uma missa”. Lula, mais uma vez, reconhece que o futuro do Brasil vale uma aliança e uma concessão, vale a troca da chapa puro sangue por uma aliança que será de centro-direita e centro-esquerda. E para isso, Alckmin também caminhará mais para o centro. Se dará certo, veremos”.
Henrique IV é considerado fundador da dinastia Bourbon, aquela sobre quem já foi dito: “Eles nada aprenderam nem esqueceram”. E terminou seus dias assassinado a facadas, no dia 14 de maio de 1640. Confesso eu não entendo o sentido de comparar Lula com este cidadão (quero crer que não seja pela frase sobre uma galinha em cada sopa ou algo parecido).
Mas é revelador que Cruvinel compare uma possível aliança de Lula com Alckmin a uma mudança de religião. Sou ateu. Mas não me parece trivial uma troca de religião (ou, em termos laicos, fazer uma mudança ideológica substancial). Nem me parece adequado dizer que isto seria fazer politica com P maiúsculo.
Lula, nas opinião de Cruvinel, estaria disposto a trocar de “religião”. E Alckmin? Este estaria fazendo um sacrifício. Nas palavras dela: “se decidir filiar-se ao PSB para ser vice de Lula, estará abrindo mão de uma eleição quase certa ao governo de São Paulo pelo PSD” e “se dispõe a algum sacrifício para garantir o isolamento do fascismo, a derrota de Bolsonaro e a reconstrução deste país (…) É preciso reconhecer, no mínimo, que dificilmente um político troca o certo pelo duvidoso em matéria eleitoral.”
Acho que nem o picolé de chuchu esperava tanta propaganda gratuita (e desmerecida)!
São Alckmin vem aí!
A opus dei agradece!!
(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT