Por Wladimir Pomar*
Entre as correntes de esquerda existentes no Brasil sempre houve as que supunham possível organizar o povo dissociado dos mecanismos eleitorais e dos riscos inerentes a eles. Riscos evidenciados pelo cretinismo parlamentar, pelas negociações, acordos e coalizões com setores pouco republicanos e nada democráticos, e pela oferta de balas de açúcar, corruptoras ou corruptas.
Isolando-se desses riscos pensavam poder organizar o povo com maior autenticidade. Não percebiam que deixavam o campo político livre para a ação dos partidos e representantes políticos da burguesia. E desdenhavam que os problemas do processo eleitoral para a organização popular eram muito mais simples do que os complexos problemas colocados pelo processo revolucionário. Como é possível alguém realizar tarefas complexas se não é capaz de resolver questões mais simples da organização popular no contexto democrático formal? Como ser apto para fazer o mais, se não se é para fazer o menos?
Quando o PT se tornou uma das principais opções no contexto eleitoral, essas correntes continuaram a confundir governo e poder de Estado, assim como estratégia e tática, e passaram a acusar o PT de haver montado sua estratégia e suas táticas apenas em função do processo eleitoral. Confundiram o conjunto desse partido com aqueles dirigentes que acreditavam nisso e que, em 2002, supuseram haver chegado ao poder de Estado, embora tenham chegado apenas a uma parcela dele e, mesmo assim, em coalizão com partidos visceralmente burgueses.
Todas essas questões, acima de tudo práticas, retornaram com força em virtude da crise que passou a assolar o país e o PT em virtude da ofensiva reacionária que levou ao impedimento de Dilma, à retomada de reformas neoliberais e aos processos contra Lula, à sua prisão, e à possibilidade de impedirem sua candidatura. Por um lado, questões cuja solução não depende apenas da burguesia e de seu poder de Estado arcarem com o ônus de impedir Lula de concorrer às eleições. Por outro lado, questões que também dependem do PT ter capacidade de superar as dificuldades impostas por seus inimigos, tendo como premissa tirar as lições tanto dos acertos quanto dos erros de 14 anos de governo.
Sem isso, a missão de organizar as classes populares para consolidar as conquistas obtidas desde o final da ditadura militar e ampliar os direitos democráticos corria e corre o risco de sofrer derrotas ainda mais profundas do que as impostas até agora. Dizendo de outro modo, não basta reconhecer e afirmar que o PT, como partido democrático, popular, social-desenvolvimentista, ou socialista, realizou algo inédito na história brasileira ao conquistar a direção do governo central por quatro eleições seguidas. E que, nesses governos, retomou o crescimento econômico e a capacidade de emprego, retirou da pobreza e da miséria algumas dezenas de milhões de brasileiros, atuou soberanamente nas relações internacionais, e endureceu a legislação contra a corrupção.
Mais do que isso, o que o PT deve se perguntar é por que, apesar de tudo o que fez, ou por causa das estratégias que lhe permitiram fazer tudo isso, não conseguiu evitar a crise no crescimento econômico e no recrudescimento do desemprego e da pobreza, nem a dissolução das alianças de classe e políticas e os ataques reacionários que levaram ao golpe do impedimento da presidência petista.
Em termos gerais, a capacidade petista para enfrentar a crise econômica internacional, quando suas ondas começaram a bater mais fortemente, se mostrou insuficiente. Primeiro, pela ausência de uma estratégia econômica e política consistente não só de alianças, ou de conciliação, mas também de confronto, com as frações burguesas. Depois, pelo abandono da formação de uma massa de quadros políticos capazes de enfrentar tais desafios e pelo esgarçamento dos laços com sua base social. Ausência, abandono e esgarçamento que contribuíram para decisões erráticas e para a desmobilização das classes populares, tornando-as incapazes de enfrentar a burguesia e parcelas da classe média quando estas desencadearam a ofensiva reacionária.
A estratégia econômica levada a cabo tinha por base a retomada do desenvolvimento econômico. Orientada pelo planejamento macro estatal e financiada por investimentos públicos em infraestrutura e por investimentos públicos e privados na produção e na comercialização, tinha como carro-chefe a elevação do poder de compra da população arrancada da pobreza e da miséria pelos investimentos sociais do Estado. Nessa linha, os governos petistas se empenharam em realizar intervenções no mercado para estimular a industrialização através da redução dos juros, desvalorização do câmbio, redução de impostos, desonerações e intensificação das linhas de crédito dos bancos estatais.
Assim, tendo como instrumentos econômicos principais os ministérios da Fazenda e do Planejamento, o Banco Central, o BNDES, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica, a Petrobras, a Eletrobras e uma miríade de estatais de pequena inserção no processo produtivo, o governo petista se achou capaz de impor às diversas frações burguesas uma série de medidas que podiam auxiliar o desenvolvimento. Do sistema financeiro exigiu taxas de lucros menos escandalosas; às indústrias estrangeiras maquiladoras impôs, através do câmbio, preços mais elevados aos componentes tecnológicos importados por elas; sobre os investimentos externos decretou impostos de operações financeiras (IOF) mais elevados; idem sobre a importação de outros produtos. Mas, diante dos gritos iniciais e na linha conciliadora, decretou desonerações, redução de certos impostos, e lançou planos de reforma da infraestrutura através de concessões a empresas privadas, colocando tais obras subordinadas a sistemas de cartel de grandes construtoras.
Desse modo, embora as frações financeira e agrária da burguesia se mostrassem sobressaltadas, e as inflações do tomate, do arroz e de outros produtos agrícolas destinados ao mercado doméstico fossem sinais preocupantes, a burguesia brasileira como um todo era grande beneficiária da estratégia econômica do governo (Lula chegou a dizer que ela nunca lucrara tanto). Mas o que mais incomodava a todas as frações da burguesia era o fato de que essa estratégia, executada através da intervenção dos órgãos administrativos estatais nos processos produtivo, comercial e de serviços, podia interferir na lógica capitalista do lucro máximo.
Esse incômodo cresceu quando a crise econômica global começou a interferir pesadamente na economia brasileira e quando os juros reais se elevaram acima da taxa de lucro das atividades industriais e comerciais, apesar da taxa oficial de juros haver declinado e da inflação não haver subido demasiadamente. A partir daí o conjunto da burguesia passou a se rebelar contra a intervenção estatal. Para os donos do capital, os investimentos produtivos haviam se tornado menos rentáveis do que a especulação financeira, levando a política de desenvolvimento do PT a se tornar um empecilho à lucratividade do capital.
Apesar disso, Dilma ainda venceu as eleições de 2014, mas seu novo governo foi incapaz de impedir o naufrágio da estratégia de desenvolvimento e de superar a crise econômica e política instalada. Para piorar, Dilma aplicou um cavalo de pau inverso ao adotar o núcleo da fracassada política neoliberal: juros altos para conter a inflação, arrocho aos investimentos estatais e liberação do câmbio, abrindo espaço para o golpe do impedimento.
Aquele naufrágio e suas consequências talvez possam ser explicados, em parte, pelo fato da estratégia petista de desenvolvimento ter tido como principais instrumentos econômicos órgãos administrativos estatais e empresas privadas monopolistas ou cartelizadas. Para criar um desenvolvimento econômico mais sustentável seria necessário contar com instrumentos econômicos estatais múltiplos atuando diretamente nos processos concorrenciais de investimento, produção, comercialização e serviços.
Só forçando as empresas privadas a competirem no mercado, entre si e com empresas estatais diversas, será possível atuar efetivamente para dissolver os atuais monopólios, oligopólios e cartéis e forçá-los a realizar um desenvolvimento tecnológico que livre a economia brasileira da dependência e da subordinação aos componentes tecnológicos importados. E só com empresas estatais também obrigadas a concorrer entre si e com as privadas será possível fazer com que se desenvolvam tecnologicamente e sejam imunizadas contra a burocratização e a corrupção próprias do sistema capitalista, tornando-as instrumentos efetivos de orientação do desenvolvimento geral.
Se os governos petistas houvessem contado com várias estatais em cada ramo estratégico da economia brasileira (inclusive financeiro), concorrendo entre si e com as empresas privadas estrangeiras e nacionais, teriam tido melhores condições não só para garantir recursos para os investimentos produtivos, mas também para os investimentos sociais. Além disso, se houvessem adotado uma política de captação de investimentos externos com exigência de transferência de tecnologias avançadas, isso teria proporcionado às empresas estatais e privadas brasileiras um avanço mais significativo no desenvolvimento científico e tecnológico e no enfrentamento da crise global.
Esses ensinamentos talvez ajudem, no futuro, a superar as fraquezas dos governos petistas e, ao mesmo tempo, a dar continuidade às suas conquistas. O que é ainda mais necessário, na atualidade, não só porque parte considerável da base social petista se encontra desnorteada, mas também porque, desde 2016, numa situação internacional desfavorável, o governo golpista, ao implementar sua “ponte para o futuro”, desorganizou a economia e retirou da pauta a necessidade de continuar os investimentos públicos e privados como base do crescimento econômico, da ampliação dos empregos, da redução da miséria e do combate à violência urbana.
Tudo isso depende, é lógico, de Lula ter confirmada sua candidatura às eleições presidenciais e ser eleito. Ou, caso seja impedido de concorrer, do PT adotar uma estratégia correta de luta contra a farsa eleitoral e de nova redemocratização do país através de uma Constituinte exclusiva, evitando “planos B” que legalizem a farsa eleitoral.
* Wladimir Pomar é escritor e analista político