O golpe militar de 1964 abriu caminho para a Ditadura Militar (1964-1985) e para as reformas neoliberais dos anos 1990, executadas por Collor de Melo, Itamar Franco, FHC, Temer e Bolsonaro
Por Pedro Pomar (*)
De plano, a passagem do quinquagésimo-nono aniversário do golpe militar de março-abril de 1964 nos faz lembrar que esse trágico evento da história brasileira está prestes a completar nada menos do que seis décadas. É algo óbvio, mas que faz despertar “todos os alarmes”, como na letra da canção. Afinal de contas, decorridos quase 60 anos do golpe armado que derrubou o governo (eleito e legítimo) do presidente João Goulart (“Jango”) e instaurou uma brutal ditadura que duraria vinte e um anos, em que situação o Brasil e seu povo se encontram? Que rota o país percorreu desde então?
O golpe de 1964 foi arquitetado pelas Forças Armadas, por grandes empresários e por alguns governadores (como Magalhães Pinto, Carlos Lacerda, Adhemar de Barros), contando ainda com apoio explícito dos EUA. Seu objetivo era barrar as chamadas “reformas de base” propostas por Jango, desarticular o movimento sindical e acelerar as condições de acumulação do capital. Para isso era preciso proibir greves, liquidar a estabilidade no emprego, dissolver os partidos políticos (para calar a oposição) e remover leis e normas que criavam constrangimentos às multinacionais e ao capital estrangeiro.
O golpe militar matou opositores desde o primeiro dia. Em 1968 os massivos protestos estudantis de rua levaram a Ditadura Militar a editar o Ato Institucional número 5 (AI-5), que intensificou a repressão institucional e policial. Daí para a frente o Terrorismo de Estado foi desenfreado. No governo Geisel (1974-1979), as execuções de militantes de esquerda passaram a ser decididas em reuniões entre o ditador e os chefes do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Centro de Inteligência do Exército (CIEx).
A Ditadura Militar passou a enfrentar forte desgaste político a partir de outubro de 1975, quando a missa na Catedral da Sé em memória do jornalista Vladimir Herzog, assassinado no DOI-CODI do II Exército (São Paulo), reuniu milhares de pessoas apesar da repressão policial. Mas isso não impediu novos assasinatos de militantes comunistas em janeiro de 1976 (Manoel Fiel Filho) e dezembro de 1976 (Pedro Pomar, Angelo Arroyo e João Batista Franco Drummond).
No plano econômico, os militares apostaram nos investimentos em infraestrutura (rodovias, telecomunicações, energia). No início da década de 1970, quando havia “petrodólares” em abundância no mercado financeiro internacional, o governo ditatorial passou a contrair crescentes empréstimos de bancos estrangeiros, para financiar seus projetos. Quando vieram os “choques do petróleo” em 1973 e 1979, a alta dos preços dessa commoditie, a economia entrou em crise, complicando os planos dos generais.
Em 1976 o movimento estudantil começou a se rearticular. Em 1978 os metalúrgicos do ABC cruzaram os braços por melhores salários. Nesse mesmo ano entrava em cena, ainda, o movimento contra a carestia. A fundação do PT, em 1979, e a da CUT, em 1982, expressaram essa intensa mobilização social, enfraquecendo o regime militar. A crise econômica, por sua vez, jogou na oposição setores da burguesia.
A campanha das “Diretas Já” foi derrotada, porém uma articulação de setores conservadores que haviam rompido com os generais apostou na candidatura indireta do experiente Tancredo Neves (MDB) no Colégio Eleitoral, contra a candidatura de Paulo Maluf (Arena). Tancredo venceu, mas sua morte inesperada, provocada por uma diverticulite, fez com que o vice-presidente José Sarney (oligarca do Maranhão) galgasse a Presidência da República.
Não é preciso grande esforço para perceber que a Ditadura Militar estrangulou o país e que as Forças Armadas retiraram-se da cena política ostensiva, em 1985, deixando um desastroso legado de hiperinflação e miséria, bem como toda sorte de iniquidades institucionais, políticas e culturais. Em 1984, a dívida externa já ultrapassava o montante de 100 bilhões de dólares (em valores da época).
Outra herança deixada pelos generais foi o oligopólio da mídia, liderado pela Rede Globo. Por outro lado, a institucionalização e ampla disseminação da tortura, que sempre existiu no país, ganhou novo ímpeto graças à impunidade dos agentes da Ditadura Militar e à violência cada vez maior das Polícias Militares.
No fracassado governo Sarney os chefes militares continuaram a exercer acentuada influência política, especialmente por meio do então Ministério do Exército. Pressionaram os deputados constituintes, de modo a manter a existência das Polícias Militares (e sua definição como “forças auxiliares do Exército”) na Constituição Federal votada em 1988, e nela inscrever o famigerado artigo 142, que prevê a figura da “garantia da lei e da ordem”, mote para as chamadas “operações GLO”.
Foi graças à ajuda da Rede Globo, fiel aliada dos militares, que Collor de Melo, o “filhote da Ditadura”, conseguiu eleger-se e derrotar Lula em 1989, quando da primeira candidatura presidencial do líder petista. Collor, que se apresentava como “caçador de marajás”, recorrendo a um discurso falacioso e agressivo contra o funcionalismo público, foi o precursor da implantação da agenda neoliberal no Brasil.
Num segundo momento, porém, acuado por denúncias de corrupção que hoje pareceriam irrelevantes, acabou derrubado numa confluência entre os movimentos sociais (“Fora Collor!”) e a própria burguesia, interessada na escolha de alguém mais confiável e próximo dos círculos de poder.
Desse modo chegou-se ao governo Itamar Franco (vice de Collor, tomou posse após seu impeachment) e, depois, ao “Plano Real”, a troca de moedas que brecou temporariamente a inflação, permitindo a eleição do tucano Fernando Henrique Cardoso (FHC) nas eleições de 1994, e abrindo caminho a toda uma série de reformas neoliberais do Estado e da economia, que geraram privatizações (como a da Vale do Rio Doce e da Companhia Siderúrgica Nacional), desemprego em massa, arrocho salarial e a dolarização da economia.
O movimento sindical se opôs ao projeto neoliberal de FHC e da coligação PSDB-PFL (hoje DEM) e, já em maio de 1995, convocou uma greve unificada, que acabou sendo liderada pelos petroleiros. Embora ex-exilado político, FHC não titubeou em recorrer ao Exército e despachar tanques de guerra para as refinarias, além de usar os tribunais do Trabalho para quebrar financeiramente os sindicatos de petroleiros, impondo-lhes pesadas multas.
Apesar de algumas concessões aos movimentos sociais, como a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (1995), o governo tucano manteve a impunidade dos agentes da Ditadura Militar envolvidos em assassinatos, torturas e outras atrocidades. No início do segundo mandato, em 1999, FHC criou o Ministério da Defesa, com status civil, o que implicou a desaparição dos três antigos ministérios militares (do Exército, da Marinha e da Aeronáutica). Embora importante, esta mudança não afetou a visão de mundo dos militares e sua concepção de tutela sobre a sociedade civil.
O projeto neoliberal continuou avançando sobre os escombros políticos e culturais deixados pela Ditadura Militar e por seu ex-aliado Sarney. FHC criou a Lei da Responsabilidade Fiscal, um novo instrumento da classe dominante para represar os gastos sociais e a remuneração do funcionalismo público, e desse modo enfraquecer o serviço público e o Estado. Além disso, Bresser-Pereira, ministro de FHC, formulou a Lei das Organizações Sociais, que permitiu a privatização da gestão de órgãos e equipamentos públicos.
FHC não alterou a ciranda financeira inagurada pelos militares. Pelo contrário, expandiu-a: contraiu empréstimos ao Fundo Monetário Internacional (FMI), agravando a fragilidade financeira do país. Em 1999, a dívida externa brasileira alcançou nada menos de R$ 241 bilhões. A concentração e o processo de oligopolização dos grandes bancos privados se aceleraram.
A derrocada da economia no segundo governo de FHC facilitou a vitória de Lula nas eleições de 2002. Da posse de Lula em 2003 até o golpe parlamentar, midiático e judicial que derrubou Dilma Rousseff em 2016, foram implantadas importantes políticas públicas, na contramão do neoliberalismo predominante no período anterior. No entanto, não foram realizadas reformas estruturais que alterassem as condições de sustentação da hegemonia burguesa e oligárquica. Por exemplo: não houve reforma das Forças Armadas; não houve regulamentação da mídia; não houve reforma do sistema financeiro.
Nos governos Lula e Dilma os militares continuaram sendo tratados, com raríssimas exceções, como um “quarto poder” que não deveria ser contrariado em hipótese alguma. Houve punições muito pontuais e de caráter quase simbólico. Como agravante, em 2009 os comandantes militares, apoiando-se no então ministro Nelson Jobim, da Defesa, atacaram publicamente o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3).
Ademais, o governo Lula decidiu que o Brasil deveria participar da força de paz da ONU no Haiti (Minustah), enviando para esse país um importante contingente do Exército. Os resultados foram trágicos, tal a violência empregada pela Minustah contra a população haitiana. Que por certo serviu como treinamento para operações GLO em território brasileiro. Em 2011, Dilma criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) para apurar os crimes da Ditadura Militar, porém com enormes limitações.
O ápice da política de subordinação do poder presidencial e civil frente às Forças Armadas foi a total omissão e silêncio do governo Dilma perante a aberta sabotagem sofrida pela CNV nos seus intentos de obter documentos e informações necessárias ao trabalho de investigação dos crimes cometidos por agentes da Ditadura Militar. Em diferentes momentos, os comandantes das três forças e outros generais tripudiaram da CNV, sonegaram informações, ou simplesmente mentiram, sem que o governo adotasse qualquer medida punitiva.
Em 2015, por ocasião da morte do general Leônidas Pires Gonçalves, o então ministro da Defesa, Jacques Wagner (hoje senador), autorizou a realização de uma cerimônia fúnebre oficial do Exército em homenagem à memória desse oficial, cujo nome faz parte da lista de torturadores publicada pela CNV no seu relatório final, em 2014.
A tibieza governamental estimulou a retomada de projetos golpistas. O comandante do Exército nomeado pelo segundo governo Dilma, general Villas Boas, não só estimulou desde 2014 a candidatura do ex-capitão Jair Bolsonaro à Presidência da República como engajou o Alto Comando na campanha eleitoral do parlamentar de extrema-direita. Um detalhe importante: quando Bolsonaro confraternizou com os cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras, em 2014, essa instituição era chefiada pelo general Tomás Ribeiro de Paula, atual comandante do Exército.
Disso tudo para o recado ameaçador que Villas Boas, com a anuência do Alto Comando, enviou pelo Twitter ao Supremo Tribunal Federal (em 2018), para que não concedesse habeas corpus a Lula, foi apenas um passo. A essa altura, também, o general já havia reorientado as atividades do Centro de Comunicação Social do Exército (CeComSex), de modo a coaduná-las com seu projeto de fazer dessa força um protagonista de primeira grandeza no jogo político nacional. Tal como na Ditadura Militar.
“Aquilo deu nisso”. Derrubada Dilma, o fantoche Michel Temer tratou de aplicar o programa ultraliberal “Ponte para o Futuro”, cujas principais realizações foram o “teto de gastos” (PEC 95/2016), a reforma trabalhista e a ampliação das terceirizações. Nomeado ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o general Sérgio Etechegoyen, parceiro de Villas Boas, pressionou a ministra Rosa Weber, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), para que não investigasse a fraude das fake news que deu a vitória ao neofascista Bolsonaro.
O governo Bolsonaro-Mourão, eleito em 2018 graças à prisão ilegal de Lula e à fraude eleitoral da produção industrial de fake news, foi um produto do projeto liderado pelo general Villas Boas. Alguns de seus ministros, como os generais Santa Cruz e Augusto Heleno, haviam chefiado as tropas da ONU no Haiti. Milhares de oficiais-generais e oficiais comandantes das três forças foram nomeados para cargos civis e uma parte deles passou a receber salários exorbitantes, muito acima do teto de remuneração previsto pela lei.
Os aspectos mais cruéis dessa “colonização” do serviço público federal pelos militares podem ser personificados pelo general Eduardo Pazuello, cuja passagem pelo Ministério da Saúde resultou concretamente na morte de centenas de milhares de pessoas.
E cá estamos nós, quase seis décadas após o golpe, a lidar com as mesmas questões de sempre, no que diz respeito às Forças Armadas. A vitória de Lula, eleito em 2022 para seu terceiro mandato, foi crucial para barrar a continuação do bolsonarismo. Por outro lado, o novo Congresso é maciçamente conservador, e militares elegeram-se parlamentares por todo o país. O general Mourão, que foi vice-presidente de Bolsonaro, tornou-se senador da República. O secretário de Segurança Pública do governador Tarcísio de Freitas (SP) é um capitão da ROTA, unidade da Polícia Militar.
O PT precisa discutir urgentemente a questão militar. O governo Lula idem. É o que sugere a Direção Nacional da Articulação de Esquerda em resolução publicada no dia 30 de março, na qual são apontadas medidas concretas de enfrentamento dos problemas existentes (leia no site www.pagina13.org.br).
(*) Pedro Estevam da Rocha Pomar é jornalista, diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo e militante do PT.