Por Mateus Santos (*)
Nos últimos dois dias (17 e 18 de março), uma velha conhecida de nossas cozinhas voltou a ser uma ferramenta de insatisfação política. As panelas estiveram novamente no protagonismo do horário nobre brasileiro, dessa vez acionadas contra o presidente Jair Bolsonaro. Misturando algum voluntarismo e mobilização via redes sociais, manifestações dessa natureza tomaram diversas capitais brasileiras, especialmente bairros de classe média e alta. Diante do caos vivido pelo país com a velocidade de propagação do coronavírus e suas consequências para toda a população, a crise política se aprofundou de modo significativo, restando-nos, mesmo numa conjuntura extremamente delicada, tentar compreender alguns de seus sentidos.
A pandemia de Covid-19 já demonstrou ter força o suficiente para provocar a maior crise do capitalismo, em décadas. As perdas humanas e o processo de paralisia nas economias centrais, emergentes e mesmo nas periféricas terão consequências inimagináveis. O aprofundamento do neoliberalismo e a destruição das políticas públicas em áreas vitais, como saúde, segurança pública e educação tendem agora a cobrar seu preço. É num contexto em que estados e municípios pedem socorro à União no esforço de prepararem seus sistemas de atendimento público que, cada vez mais, fica evidente as dificuldades do executivo nacional em agir diante das amarras de uma orientação econômica falida.
Para não incorrer no mesmo erro que setores do governo, ao ainda vislumbrarem a necessidade das reformas econômicas para a construção de políticas de enfrentamento ao Coronavírus, a maneira como o presidente da República vem agindo é revoltante e deprimente. Num ato de deboche com a população, Bolsonaro e alguns aliados parecem se abstraírem do mundo real, ao reafirmarem teorias da conspiração diante de um dos maiores desafios colocados ao país neste século. Desde a manutenção de um discurso cruzadista internacional (a criminalização da China) até a negação do problema, o presidente verdadeiramente deu um tiro em seu pé, ocasionando a indignação até mesmo de velhos apoiadores ou de setores que fechavam os olhos para seus deslizes e atentados contra a democracia e os direitos de diversos setores da sociedade.
O bolsonarismo vive seu momento mais difícil desde sua vitória eleitoral em 2018. Diante disso, e do vislumbre de um cenário cada vez mais pessimista para o país, inquietações e ações são colocadas neste caminho. Sob um discurso quase que salvacionista, algumas possibilidades se encontram visivelmente colocadas.
O discurso de Janaína Paschoal na Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP) chamou atenção de todos aqueles e aquelas que acompanham a política brasileira mais de perto. Em tom de arrependimento, a deputada afirmou não ver condições políticas de manutenção do atual presidente no cargo, sinalizando para a possibilidade de pressão pelo seu afastamento voluntário e a construção de um novo governo a partir do General Hamilton Mourão.
Em outro espectro ideológico, parlamentares, especialmente do PSOL, entraram com um pedido de impeachment do presidente, documento assinado também por outras lideranças civis. Por essa ou pela primeira via, o Fora Bolsonaro vai se constituindo como uma das questões centrais para os próximos tempos da política brasileira, na sombra do COVID-19.
A diversidade de opções colocadas para a solução da crise não respondem alguns dos sentidos de sua própria existência, bem como não apontam qual o horizonte a se seguir. Em primeiro lugar, a movimentação dos setores médios contra Bolsonaro expressa um segundo momento de meia frustração com a operação golpista em curso desde 2016. Como Michel Temer, o atual presidente caminha para um despencar de popularidade, ou melhor, um ator político a sair pela porta dos fundos da História. Mas, tal projeção não esconde e nem esconderá o fato de que boa parte destes mesmos setores embarcaram numa perigosa aventura em nome de um projeto de poder antipopular. Contudo, muitos não esperavam talvez que, num momento de total instabilidade, o novo comandante dessa trajetória fosse perder o controle deste barco e mergulhar o país num cenário de incertezas.
O “Fora Bolsonaro” de muitas panelas, em verdade, consiste na troca de uma peça do xadrez, mas na manutenção da mesma estratégia de jogo. Mesmo diante de uma conjuntura que exige uma maior presença do Estado diante das mazelas sociais que aprofundam o desafio da pandemia, não devemos esperar uma mudança de postura significativa de quem foi às ruas em 2015 e deu sustentação às politicas de morte social a partir do ano seguinte.
E o impeachment? Este dispositivo que, quase quatro anos atrás, foi usado como recurso para o aprofundamento da derrocada das esquerdas no Brasil. Enquanto parte desse movimento em prol da saída do presidente, a destituição por esta via parece ser o caminho mais evidente. Não se vislumbraria, num curto prazo, outra maneira de realizar uma mudança significativa e abrir outro patamar da crise brasileira. Contudo, o golpe jurídico-parlamentar (e quantos outros termos quisermos botar) foi bastante didático quanto às possibilidades de ação das oposições. Inúmeros artifícios, naquela época, foram criados e sustentados diante da falta de uma argumentação concreta para um empreendimento dessa natureza. É pela permanência de muitos atores daquele episódio nos espaços institucionais, bem como as claras demonstrações de qual lado da História aqueles se encontram que, um movimento como esse hoje parece fadado ao fracasso.
E uma conclusão como essa não se chega apenas pela análise de uma mera correlação de forças no parlamento ou mesmo pela conjuntura do judiciário. Mais do que isso, o que se encontra em jogo também é o horizonte de país que precisa ser apresentado. A crise brasileira só possuirá uma resolução favorável aos trabalhadores quando estes estiverem na condição de protagonista do processo. Na atual conjuntura, acreditar que é possível surgir um governo de União Nacional a partir da coalizão que governa o país desde 2016 volta a ser uma ilusão.
Nessa panela de pressão, gritos ecoam e soluções são debatidas. O caminhar para uma crise humanitária gera ainda mais apreensão e dúvida sobre o que fazer. No longo confronto entre capital e trabalho, agora pela sobrevivência dos indivíduos que constituem cada lado, as contradições aumentam, exigindo com que Estado e sociedade tomem um lado da disputa. Na crise brasileira, o melhor sentido de solução é ao lado daqueles e daquelas que, desprovidos de capital cultural e econômico, encontram-se a mercê de inimigos invisíveis (o vírus) e visíveis (a ausência de amparo do Estado e as retóricas em favor de soluções individuais). As demonstrações de insatisfação precisam apontar para um horizonte de reformas estruturais, com maior agência do poder público no investimento na saúde e pressão sobre os setores privados que ainda não se deram conta do colapso que está por vir. Apontar tal caminho não significa ir de encontro ao “Fora Bolsonaro”, mas dar um rumo ao movimento antes que este seja protagonizado por aqueles que lutam apenas contra o indivíduo e não apontam para um novo destino na trajetória brasileira.
(*) Mateus Santos é mestrando em História Social/ UFBA e militante da Juventude da Articulação de Esquerda – BA