Por Valter Pomar (*)
José Luís Fevereiro escreveu e Outras Palavras publicou um artigo intitulado “Venezuela: a geopolítica do século XXI é outra”.
O artigo pode ser lido aqui:
Fevereiro diz que “o anti-imperialismo de botequim” atribui aos EUA “objetivos estratégicos que tiveram razoável atualidade ali pelos anos 50 a 70 do século passado. Conflitos eminentemente regionais são apresentados como fomentados pelos interesses estadunidenses, quando de fato os objetivos da política externa norte-americana passam longe”.
Ainda segundo Fevereiro, o “grande conflito geopolítico contemporâneo contrapõe os EUA à China. E não está centrado no petróleo, nas terras raras, no lítio, ou em qualquer outro aspecto secundário. Está basicamente em dois pontos.Um deles é a disputa por hegemonia em Inteligência Artificial (…) Mas o principal terreno da disputa será o desafio à hegemonia do dólar como moeda de referência e de reserva internacional”.
Mesmo sendo uma tolice tratar terras raras, lítio e petróleo como “aspecto secundário”, Fevereiro acerta ao dizer que o “grande conflito” opõe EUA e China, assim como é correto dizer que os “dois pontos” principais do conflito são, neste momento, a Inteligência Artificial e o dólar.
Mas Fevereiro está também errado, pelo seguinte: das afirmações corretas supracitadas não decorre que os outros conflitos sejam “absolutamente locais” ou “regionais”; ademais, os conflitos não precisam ser “fomentados” pelos EUA, para que pesem na balança de sua disputa contra a China.
Dito de outro jeito: a guerra entre Rússia e Ucrânia, o genocídio de Israel contra a Palestina e o resultado das eleições na Venezuela são parte integrante do grande conflito entre China e EUA.
Aliás, China e EUA sabem perfeitamente disso e agem em conformidade. E não me parece que os estrategistas de ambas potências possam ser tratados como de “botequim” ou “preguiçosos”.
Ao tentar minimizar, relativizar ou negar a relevância geopolítica global da guerra na Ucrânia, do genocídio em Gaza e da operação contra a Venezuela, Fevereiro produz raciocínios constrangedores, para dizer o mínimo.
Por exemplo, sobre a Ucrânia: “A guerra na Ucrânia tem raízes fundas em questões absolutamente locais” (…) “Localizar ali interesses estratégicos norte-americanos, para além dos compromissos pré-existentes com a OTAN, é um erro”.
“Erro” é minimizar a importância que a OTAN e o monopólio do ataque preventivo têm para os EUA. “Erro” é não compreender o problema estratégico posto, para os EUA, pela crescente aproximação entre Rússia e China. Aliás, como lidar com esta aliança é uma das muitas questões que separam as políticas externas de Trump e Kamala.
Outro exemplo, sobre Gaza: “O conflito em Gaza é um conflito regional” (…) “A direita israelense (…) é visceralmente contrária a existência de um Estado palestino. Esse não é o objetivo dos EUA na região. A localização dos objetivos norte-americanos está nos acordos de Camp David entre Israel e Egito e nos acordos de Oslo na década de 1990, visando a constituição de um Estado palestino”.
(Tomo nota da maneira com que Fevereiro se refere ao “conflito em Gaza”.)
Claro, para alguns é mais cômodo seguir acreditando que “o alinhamento quase incondicional dos EUA com Israel tem muito mais a ver com questões da política interna norte-americana que com objetivos estratégicos”. Os presidentes gringos, coitadinhos, passaram os últimos trinta anos querendo fazer outra coisa, mas não conseguiram e isso por razões fundamentalmente paroquiais.
Seja como for, alguém duvida que o “conflito regional” de Gaza e o conflito com “raízes fundas em questões absolutamente locais” da Ucrânia têm, ambos, potencial para se converter em algo muito maior, mesmo que não seja esta a intenção original dos envolvidos?
(Fico pensando o que diria Fevereiro, vivo fosse, sobre o assassinato dos “turistas” Francisco e Sofia, no dia 28 de junho de 1914, em Sarajevo.)
Terceiro exemplo, sobre a Venezuela: “o governo Biden foi às negociações em Barbados por conta da crise migratória venezuelana (…) Interessava aos EUA normalizar suas relações com a Venezuela e eliminar as sanções, origem principal da crise econômica e da onda migratória venezuelana. Não, não é o petróleo”.
Barbados à parte, o fato é que – no que diz respeito aos governo Chavez e Maduro – o tema central não é e nunca foi o petróleo, tomado isoladamente. Aliás, qual era mesmo o motivo “econômico” para o engajamento dos Estados Unidos em El Salvador ou Nicarágua? E noutros países do Caribe, América Central e América do Sul? Granada e República Dominicana foram atacadas por alguma motivação econômica relevante?
O tema, na imensa maioria dos casos, foi o “lugar” do pateo trasero no conjunto da estratégia estadounidense. O pretexto imediato pode ter sido esse ou aquele, mas a motivação geral era geralmente mais ampla. Foi assim na época do conflito com a URSS e segue sendo assim na época do conflito com a China. Nem tudo é sobre o dólar, nem tudo é sobre a Inteligência Artificial, mas quase tudo vai sendo enquadrado e vai incidindo na disputa global, que tem como pólos principais a China e os EUA.
O fato de não ter como motivação imediata o petróleo, não converte motivações imperialistas em democráticas, não faz a ingerência se tornar aceitável.
Fevereiro termina seu texto lembrando que “foram necessárias duas guerras mundiais para que a Inglaterra visse a libra esterlina perder essa hegemonia para o dólar”. E complementa: “A China não tem pressa (perdoem a tautologia). Devagar e persistentemente vai construindo essas condições. Espero que essa transição não pressuponha um nova guerra mundial. O que fazer e como se localizar nesse conflito é o debate a ser feito pela esquerda. Os mais preguiçosos preferem seguir pensando a geopolítica a partir do petróleo”.
Realmente, o debate sobre o conflito China e EUA é central, com destaque para o tema da IA e do dólar.
Também é real que tem muita gente preguiçosa na esquerda. As vezes a preguiça leva a adotar fórmulas velhas para tratar de situações novas. As vezes a preguiça leva a achar pretextos para minimizar a centralidade de questões que dão certo trabalho, como é o caso da Venezuela, de Gaza e da Ucrânia. E as vezes a preguiça faz colocar uma maquiagem de esquerda em argumentos made in USA.
(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT
ps.em 1995, Fevereiro era militante da tendência petista Articulação de Esquerda. No encontro nacional que o PT fez em Guarapari, a AE decidiu voltar em Hamilton Pereira para presidente nacional e construir uma chapa com toda a esquerda petista. José Luís Fevereiro defendia outra tática, que implicaria votar em Zé Dirceu para presidente nacional do PT. Ao final da reunião em que tomamos nossa posição, ele anunciou que a respeitaria – uma vez que ele era delegado nato, por ser da CEN. Mas avisou que em seguida sairia da AE. Portanto, em 1995 Fevereiro saiu da AE “pela direita” (do meu ponto de vista, obviamente). O mundo girou e Fevereiro foi parar no PSOL, em circunstâncias que não acompanhei ou pelo menos não recordo. Agora, o vejo defender posições sobre a Venezuela que o colocam à direita da AE e do PT, Dirceu inclusive. Realmente, não será de tédio (nem de preguiça) que morreremos.