30 anos de AE – Os governos de Itamar Franco e FHC, o PT e a Articulação de Esquerda

Texto integrante da edição mais recente da Revista Esquerda Petista, publicada em setembro. A revista pode ser descarregada na íntegra aqui.

Por Marcos Jakoby[i]

Os companheiros que agem assim esqueceram que ser governo não é ser poder. Esqueceram também que nossa força maior, para além das urnas, está no povo organizado. Esqueceram que as grandes transformações não se dão apenas conquistando espaços institucionais. Esqueceram que lutamos por outra sociedade, o que está acima das carreiras pessoais.”

Introdução do livro “Socialismo ou Barbárie”[ii]

A história do Brasil, do PT e da AE tem no período de 1993 a 2002 um capítulo muito importante. Trata-se de etapa de muitas transformações no Brasil e no mundo, a exemplo da crise do socialismo, da ofensiva neoliberal e da hegemonia do imperialismo estadunidense. Esses fatores estruturais encontraram no partido diferentes comportamentos e respostas políticas. O surgimento da Articulação de Esquerda, tratado em outro artigo dessa revista, é, em certa medida, consequência da maneira como o PT de conjunto respondeu a essas mudanças na conjuntura brasileira.

Governo Itamar Franco e a oposição de baixo perfil

A opção cada vez mais moderada e institucionalista verificada em setores do PT na década de 1990 refletiu-se também frente ao Governo Itamar Franco, que teve início em dezembro de 1992 após o impeachment de Collor. O PT não somente aceitou a posse de Itamar, como uma parte do PT passou a cogitar a ideia de apoiar e integrar o governo, com o argumento apresentado à época de que este seria uma espécie de transição para a chegada do PT ao governo em 1994.  Luiza Erundina chegou a ser ministra do governo, embora tenha sido suspensa do Partido em razão da sua adesão.

Portanto, o governo Itamar Franco não recebeu da esquerda a devida oposição combativa, de enfrentamento, nem mesmo uma oposição do tipo a que foi feita ao governo Collor.  Consequentemente, isso facilitou a vida do governo.

Essas condições políticas contribuíram para que o governo desenvolvesse o chamado Plano Real, costurado por neoliberais, comandados por FHC, que se torna ministro da Fazenda para encerrar a construção desse plano, que é lançado ainda no governo Itamar, em 1994.

Fabricou-se um consenso de que o que o Plano Real foi um sucesso uma vez que teria estabilizado a inflação e produzido ótimos resultados econômicos, consenso, aliás, reproduzido até hoje, inclusive por setores da esquerda e do PT.  O plano fez parte, na realidade, de um processo que incluiu privatizações de grandes e importantes estatais brasileiras, de abertura da economia ao capital estrangeiro e de criação de condições para beneficiar o capital financeiro, além de transmutar a dívida externa em dívida pública interna, a qual até hoje é um mecanismo gigante de transferência de riquezas da sociedade brasileira para o sistema financeiro privado.

Esse consenso, e o apelo popular em torno do arrefecimento, mesmo que somente de curto prazo, da inflação, quando ainda não sentia-se amplamente as consequências do remédio neoliberal, vão criar as condições políticas para uma alternativa capaz de vencer as eleições de 1994, sob a batuta de FHC e dos tucanos.

O PT diante da ofensiva neoliberal

Entre 29 de abril e 1° de maio de 1994, ocorreu o 9° Encontro Nacional do PT em Brasília. As resoluções, embora considerassem o “PSDB como adversário principal da candidatura Lula”, subestimavam suas chances de vitória, e não perceberam a ofensiva neoliberal que se armava, ao afirmarem que “as classes dominantes não tem projeto nacional para apresentar à sociedade”.  Falava-se na “previsível derrota [das elites] nas urnas de 1994” e de que a “dianteira de Lula nas pesquisas, deixa desarvoradas as classes dominantes”.

Esse erro político custou caro, uma vez que não preparou o partido e a esquerda de forma adequada para a disputa que se avizinhava. Possivelmente decorresse do fato de que considerasse “as chances de sucesso eleitoral de FHC, baseadas em boa medida, no plano econômico, concebido para ser mais um estelionato eleitoral, são reduzidas: falta `ao cruzado dos ricos´ o mínimo de apoio popular”.

Ou seja, o PT não percebeu que a redução da inflação, mesmo que a um custo econômico e social muito grande, especialmente à médio e longo prazo, tivesse o impacto político que teve entre as classes trabalhadoras. Talvez setores do Partido também considerassem “reduzidas” as chances de FHC porque considerassem o PSDB “um campo em disputa” – aliás caracterizado assim pelo 8° Encontro Nacional, em 1993 – e assim, consequentemente, não teria a capacidade de construir uma unidade das principais forças econômicas e políticas das classes dominantes e de polarizar com a esquerda; e, em relação, a isso ocorreu justamente o oposto, dada a vitória de FHC ainda no primeiro turno.

Importante sublinhar que a derrota de 1994 não foi somente eleitoral, mas foi também uma derrota política. Isso se traduziu no fato de que, em um primeiro momento, setores do PT chegaram a avaliar que o governo de FHC era um governo de centro-esquerda e figuras importantes do PT aproximam-se do governo tucano, como Francisco Weffort, que aceitou ser ministro da Cultura do governo tucano. Detalhe: Weffort havia sido o coordenador da campanha do Lula em 1994.

Essa derrota política também se verificou na transigência de setores do partido com pautas sociais-liberais, ou mesmo tipicamente neoliberais, a exemplo da ideia de que certas estatais deveriam mesmo ser privatizadas ou quando concordavam com o pressuposto de que a Constituição de 1988 apresentava excessos estatistas. Algumas prefeituras petistas adotaram certas medidas neoliberais, a privatização de importantes empresas públicas, como ocorreu em Ribeirão Pretto, com a gestão de Antônio Palocci.

Ademais, haviam aqueles setores que continuavam a ver o PSDB, pelo seu “passado democrático”, como um “campo em disputa” e fizeram alianças com os tucanos.  Por fim, a derrota de 1994 possibilitou que “o equilíbrio instável de forças, que até então impedia a implementação do novo projeto de modernização conservadora, parece definitivamente rompido.”[iii]

A esquerda petista e uma breve maioria partidária

A Articulação de Esquerda surgiu em 1993, a partir de uma “batalha travada dentro e fora da velha Articulação, em defesa de um PT democrático, socialista e revolucionário”.[iv]

Durante certo período, em condições muito precárias, e por um breve período, a AE e a esquerda petista conseguiram ser maioria na direção do PT. Em 1993, no 8° Encontro Nacional do PT, a esquerda petista conquistou maioria no diretório. Contudo, em agosto 1995, no 10° Encontro Nacional do PT, realizado em Guarapari/ES, a ala moderada recuperou a maioria no diretório nacional, o que se mantém-se até os dias de hoje. Foram 2 votos de diferença na tese guia,  4% nas chapas que compõem o diretório nacional e por 36 votos na disputa da presidência do partido, elegendo José Dirceu.

Contribuiu para esse resultado, fato de que a esquerda, liderada pelo PT, foi derrotada na principal batalha do período: a campanha presidencial, que foi hegemonizada pelo setor moderado do Partido.

O 5° Seminário Nacional da AE, realizado em 1996, fez uma balanço dessa derrota da esquerda petista e a apontou entre as “causas imediatas”: “a) o impacto da derrota de Lula, debitado em grande medida na conta dos que, formalmente, dirigiram o partido e a campanha presidencial; b) os erros cometidos pela esquerda durante o período 1993-1995; c) a cooptação, pela Unidade na Luta, de várias lideranças vinculadas à esquerda petista; d) o inchaço de diversos encontros municipais, beneficiando a centro-direita partidária; e) a cassação dos delegados eleitos pelo encontro da Paraíba, majoritariamente vinculados à esquerda”[v]

O Seminário também identificava causas “estruturais” e destacava que não se tratava de uma derrota passageira, mas sim de uma “derrota profunda no interior do PT”. E o pano de fundo dessa derrota “profunda” era marcado pela crise do socialismo, pela ofensiva neoliberal e pela acelerada descaracterização do PT.  O Seminário conclui que “a esquerda, quando maioria partidária, foi incapaz de ter políticas que se contrapusessem eficazmente a este quadro”.

Governo FHC e a resistência ao neoliberalismo

A derrota da esquerda petista, no 10° Encontro, ocorreu no primeiro ano do governo tucano. E à medida que o governo FHC implantava o programa neoliberal ficava evidente que o mesmo expressava um “projeto nacional” das classes dominantes: privatizações, financeirização da economia, endividamento brutal interno, desindustrialização, abertura comercial e subordinação do Brasil ao imperialismo.

No plano internacional, estava em pleno vigor a operação em nosso continente do “Consenso de Wasghington” e a ofensiva neoliberal no mundo, caracterizada por um quadro de ataques aos direitos trabalhistas e sociais, pela desregulamentação dos sistemas financeiros e pela “globalização”, no qual os Estados Unidos procuravam cristalizar sua posição de única superpotência.

Esse quadro, interno e externo, fez acelerar a desigualdade social no Brasil e “a implementação do projeto neoliberal por Fernando Henrique e seus aliados não somente piora a situação de vida e trabalho das grandes massas trabalhadoras e das camadas marginalizadas da população.  Ela atinge em cheio o padrão de vida das classes médias, leva à falência setores da média burguesia, força a desnacionalização de setores ainda não subordinados ao capital estrangeiro, desestrutura o Estado Nacional, aniquila o serviço público, alimenta uma crise  federativa gigantesca, rompe com os tênues mecanismos de democracia participativa e representativa conquistados nas lutas do passado, abre o país, sem qualquer restrição, à ação das corporações transnacionais, e ensaia liquidar qualquer traço de ação soberana e de solidariedade da política internacional do Brasil com os povos e países ameaçados pelo imperialismo.”[vi]

Portanto, quando chega o final do primeiro governo FHC, o Brasil está numa crise econômica e social enorme, a tal ponto que em 1998 o Brasil experimenta uma fuga de capitais, e está à beira de um colapso financeiro, “resultante dos mecanismos de liberalização financeira adotados, o real não pôde mais se sustentar (manter o seu valor em relação ao dólar)”.

Lula é novamente candidato às eleições de 1998. Contudo, FHC e os tucanos vencem novamente as eleições no primeiro turno, inclusive com o argumento de que a crise (fuga de capitais) era responsabilidade do PT e de seus aliados, pois decorria do medo de que os capitalistas tinham da esquerda e do receio destes de que pudéssemos vencer as eleições.

Editorial do Jornal Página 13, que passou a circular a partir deste ano, buscava compreender as causas da derrota de 1998: “FHC venceu novamente no primeiro turno entre, outros motivos, porque as debilidades da oposição de esquerda concederam uma grande margem de manobra para o governo (“trégua” durante a crise asiática de 1997), atraso em lançar a candidatura de Lula, comportamento frente às demissões da Volks, recuo na polêmica sobre a privatização da Telebrás”.  Ou seja, PT não deu o enfrentamento necessário ao governo e à direita, moderando sua atuação em muitas situações e subestimando a capacidade de reeleição de FHC e do governo tucano.

Encerrada as eleições, em novembro de 1998, o governo fecha um empréstimo gigantesco com o FMI de 41,5 bilhões de dólares. O país estava quebrado e, dada a política econômica de FHC e dos tucanos, ficava evidente a tendência de que o segundo mandato de FHC seria de uma longa e agonizante crise econômica e social; “vem aí o muito pior”, como intitulava uma resolução da AE.

Fora FHC, PT e a disputa da linha política

Frente a esse cenário político, houve uma forte disputa dentro do PT sobre a linha política a ser adotada frente ao segundo governo FHC. Um setor do Partido, incluindo a Articulação de Esquerda, defendia uma tática em torno da palavra de ordem “Fora FHC”, uma vez que FHC e seu governo haviam mentido sobre a real situação econômica do país, o que ficou comprovado na operação com o FMI poucos dias após a eleição.  O conjunto, ou a maioria do PT, admite essa situação de “estelionato” no II Congresso (novembro de 1999), quando afirma que “parte dos eleitores de FHC se sentem desde janeiro vítimas de estelionato eleitoral. O candidato-presidente usou em 1998 todos os instrumentos para mascarar a crise em que se encontrava mergulhada a economia brasileira.”[vii]

No entanto, no mesmo congresso, embora reconhecesse a “legitimidade da consigna FORA FHC”, não adotara a palavra de ordem e a linha política que ela representava, ainda que a maioria dos congressos estaduais do Partido a tivessem aprovado.

Na avaliação da coordenação nacional da AE, “o II Congresso do PT ficou aquém também das necessidades do povo e das possibilidades da conjuntura. Diante da brutal crise do capitalismo, o Congresso não elaborou uma estratégia socialista, preferindo acreditar na “inserção soberana” na atual ordem mundial e num programa reformista de “centro-esquerda”.  Ressalta ainda que “frente a um enorme desgaste do governo FHC, e às alternativas da burguesia, o congresso preferiu depositar suas esperanças no calendário eleitoral e nas amplas alianças municipais.”[viii]. Um dos principais argumentos era de que o PT deveria aguardar e se preparar para vencer as eleições em 2002 e não acelerar o processo ou se desgastar em outra tática.

A segunda grande divergência dizia respeito sobre qual política de alianças que deveria se construir visando as eleições de 2002. Prevalece no PT a ideia de adotar uma política mais ampla de alianças do que a de então. E isso se traduz, por exemplo, na incorporação do vice-presidente José Alencar, do PL, na chapa do Lula.  Empresário do ramo têxtil, foi também dirigente da Confederação Nacional das indústrias, representaria uma tentativa de aliança com os “setores produtivos” da burguesia brasileira.

A terceira grande divergência dizia respeito ao programa que apresentaríamos nas eleições. Em 2001, o PT realiza o seu XII Encontro Nacional em Recife, onde uma comissão apresenta uma proposta de diretrizes do programa de governo a ser apresentado nas eleições presidenciais de 2002. O companheiro Celso Daniel, prefeito em Santo André (SP), foi nomeado por unanimidade pelo PT para ser seu coordenador do programa.  Embora o sentido programático não estava no bojo de uma de uma estratégia democrática, popular e socialista, como no final dos anos 1980, o programa de governo é muito claro: o governo Lula deveria superar o neoliberalismo no Brasil, deveria haver uma “ruptura necessária” com “o modelo neoliberal”, o que “envolve mudanças estruturais no país”[ix].

Carta aos Brasileiros e a inflexão à direita

O brutal assassinato do companheiro Celso Daniel em janeiro de 2002, obriga o partido a indicar um novo coordenador do programa de governo. E o partido indica Antônio Palocci. Alguns meses depois, Palocci convence a coordenação da campanha, e depois leva à voto no diretório nacional, e aprova por maioria no diretório nacional, um novo programa consubstanciado na Carta aos Brasileiros. Enquanto o programa do Partido em 2001 falava em ruptura, a Cartas aos Brasileiros deixava claro que haveria continuidade em aspectos fundamentais da política econômica em curso no país.

Isso se traduzia na posição no trecho da carta que dizia manter estável a relação dívida/PIB, de maneira a honrar o pagamento da dívida e na perseguição a superávits primários. O governo também se comprometeria com a manutenção dos contratos, ou seja, as privatizações que foram feitas não seriam revistas, o banco central continuaria privilegiando o pagamento da dívida pública dos credores e não haveria ruptura em relação à política neoliberal. Para que se tenha ideia da inflexão, Palocci levou a voto no diretório nacional do PT que se retirasse a palavra ruptura, para que ficasse claro que esse sentido político.

Palocci e os defensores da reorientação programática utilizavam, entre outros argumentos, de que o programa de ruptura com o neoliberalismo estava sendo utilizado pela direita para responsabilizar o PT e a nossa candidatura, e a possibilidade de vitória, pela fuga de capitais do país.

A V Conferência Nacional da AE, realizada ainda em 2001, logo após as eleições e a vitória de Lula nas eleições, caracterizou assim a orientação política predominante no PT, na campanha, e no governo que se desenhava: “a defesa de um “capitalismo popular”; na defesa de “programa de transição” – lenta, segura e gradual – do modelo neoliberal em direção a um novo modelo; de uma política de alianças com setores do empresariado; do apoio dos movimentos sociais e dos partidos de esquerda à mal denominada “política de governabilidade”. E afirma que “evidentemente, será um governo em disputa permanente, em três níveis: pela direita e pelo grande capital; pelos diversos partidos coligados, no primeiro e no segundo turno; pelos diferentes setores do PT”[x]. Essa disputa pelos rumos do governo é tema do artigo a seguir da nossa revista.


[i] Marcos Jakoby é professor, militante do PT e editor do site Página 13

[ii] Socialismo ou barbárie: documentos da Articulação de Esquerda. Editora Viramundo, 2000.

[iii] Wladimir Pomar. Introdução ‘Resoluções de Encontros e Congressos 1979-1998”. Editora Fundação Perseu Abramo, 1998.

[iv] Apresentação do livro ‘Novos Rumos para o Governo Lula: documentos da Articulação de Esquerda (200-2004). Editora Página 13, 2004.

[v] Socialismo ou Barbárie. p. 62

[vi] Wladimir Pomar. Introdução ‘Resoluções de Encontros e Congressos 1979-1998”. Editora Fundação Perseu Abramo, 1998

[vii] Resoluções de Encontros e Congressos 1979-1998. Editora Fundação Perseu Abramo, 1998

[viii] Jornal Página 13. n° 05, fevereiro de 2000.

[ix] Resoluções do XII Encontro Nacional do PT, Recife, 2001.

[x] Novos Rumos para o Governo Lula: documentos da Articulação de Esquerda (200-2004). Editora Página 13, 2004

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