O 8 de março é um Dia Internacional de luta das mulheres. É um tempo de comemorar conquistas, de reafirmar as pautas de luta, relembrar sua origem e dialogar com as mulheres de todo o mundo, manifestando solidariedade. Simboliza a busca da igualdade, a busca de uma sociedade justa e igualitária.
Texto publicado na edição de março do Jornal Página 13
Por Eleonora Menicucci (*)
8 de Março abre o calendário de lutas das mulheres brasileiras, e este é um ano decisivo para as mulheres e para todos os movimentos populares no Brasil. Um ano de lutas, onde continuaremos a dizer não ao neoliberalismo, ao autoritarismo, ao negacionismo e também qual e como é o país que queremos viver. É fundamental, nesta disputa, termos um governo pautado por outro projeto de país. Quando elegemos Lula Presidente, foi para construirmos um governo que se apoie em um projeto popular, feminista, antirracista e totalmente voltado para a classe trabalhadora e camadas populares.
Este é o maior desafio dos movimentos de mulheres e feministas, posto que o cenário tem demonstrado um governo de alianças muito amplas e de “pacificação nacional”, mas continuaremos pressionando com nossas pautas.
As mulheres, organizadas nos movimentos feministas, nos movimentos populares, têm sido as principais protagonistas das lutas de resistência à barbárie dos tempos pós-golpe de 2016, que tirou da Presidência da República a primeira mulher eleita e reeleita – Dilma Rousseff – sem nenhum crime de responsabilidade fiscal; nossa resistência continua como na luta contra a ditadura militar, nos anos 1964-1978.
Posicionam-se firmemente contra o atual modelo neoliberal, uma fase do capitalismo patriarcal e racista. Em 2015, a Marcha das Margaridas já denunciava a ameaça do golpe burguês, capitalista e misógino que Dilma Rousseff viria a sofrer em 2016. O golpe foi e segue como uma ameaça à democracia e à vida das mulheres, contra o qual seguem em luta.
As mulheres se posicionaram contra a eleição do Bolsonaro, fizeram uma forte manifestação naquele ELE NÃO, pois já percebiam o retrocesso de tudo que haviam conquistado nos governos Lula e Dilma, compreendiam o caráter retrógrado, conservador e inimigo da classe trabalhadora, das mulheres, das pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+.
Esse posicionamento contra o governo se expressou na votação das mulheres para as eleições de 2018 e na de 2022, bem como na rejeição ao governo Bolsonaro, por conhecerem no seu cotidiano o que tem significado o desmonte das políticas públicas para as mulheres, consolidadas pelos governos do Lula e da Dilma.
As mulheres estão na frente das lutas pela liberdade e democracia, contra as desigualdades, contra a guerra, contra as políticas neoliberais, a violência policial que mata seus filhos, o racismo e o genocídio dos povos negros e indígenas, nas comunidades defendendo seus territórios e modos de vida. Defendem a autonomia sobre seus corpos, exigem uma vida sem violência e sem feminicídios.
Neste 8 de Março no Brasil, estaremos juntas com a irmãs da América Latina, comemorando a ampliação da conquista do direito de interromper uma gravidez indesejada, aprovado pela Suprema Corte da Colômbia, no último dia 21 de fevereiro de 2022, que veio a se somar às conquistas anteriores: na Argentina (2020), no México (2021), no Uruguay (2012) e em Cuba.
E enquanto nossos vizinhos na América Latina avançam nessa pauta, no Brasil o desafio ainda é evitar retrocessos e manter a luta para ampliar conquistas. No Brasil, a realização do aborto é permitida apenas em três situações: gravidez decorrente de estupro; risco de vida da mulher, desde o Código Penal de 1940, e, em 2012, o STF aprovou a realização do aborto nos casos de gravidezes de fetos anencéfalos. É importante ressaltar que, mesmo nessas situações consideradas legais, temos assistido a um enorme retrocesso com a diminuição de hospitais do SUS que realizam o procedimento, situação agravada com as dificuldades de acesso. Lembro aqui o caso da criança de 11 anos estuprada durante quase toda sua infância pelo pai, do Espírito Santo, que, mesmo com autorização da mãe, nenhum hospital do estado autorizou o procedimento, fazendo-a deslocar-se para o estado de Pernambuco.
Um dado alarmante é que, no Brasil, o aborto é a quarta causa de mortalidade materna e a quinta causa de internação no SUS. O que nos escancara a hipocrisia e a falta de sensibilidade com a vida das mulheres com que o poder público e a sociedade patriarcal tratam a questão do aborto; sem a menor sensibilidade com a vida das mulheres e, pior, as mulheres que morrem em decorrência de um aborto com procedimento mal feito se tornam responsáveis e apenas mais uma estatística.
A principal referência histórica das origens do Dia Internacional das Mulheres é a Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, realizada em 1910, em Copenhague, na Dinamarca, quando Clara Zetkin e outras militantes apresentaram a resolução para instituir oficialmente um Dia Internacional das Mulheres. Nesta resolução, não foi definido uma data. É certo que, a partir daí, as comemorações começaram a ter um caráter internacional, expandindo‐se pela Europa, a partir da organização e iniciativa das mulheres socialistas. Antes desta resolução, já se comemorava um dia de luta das mulheres, especialmente nos Estados Unidos. Foi somente em 1922 que o dia 8 de Março passou a ser comemorado unificadamente e que corresponde ao dia 23 de fevereiro no calendário ortodoxo. É em referência à luta que foi travada pelas mulheres na cidade de São Petersburgo. Em fevereiro de 1917, as manifestações de mulheres tomaram as ruas. Eram manifestações contra a guerra, a fome, a escassez de alimentos. Ao mesmo tempo, operárias do setor têxtil entraram em greve. Essas manifestações cresceram, envolveram outros grupos e deram início à Revolução Russa.
Nos anos posteriores a 1970, este Dia passou a ser associado erroneamente a um incêndio que ocorreu em Nova Iorque em 1911. O que fica evidenciado, a partir de diversas pesquisas das fontes históricas, é que a referência a uma greve de trabalhadoras americanas, ou a manifestações de mulheres, ou a um incêndio com a morte de um grande número de mulheres como sendo a motivação para a criação de um dia da mulher não aparecem registradas nas diversas fontes pesquisadas no período. Uma das pesquisadoras é Renée Côté, que publicou, em 1984, no Canadá, sua instigante pesquisa em busca dos elos perdidos da história do Dia Internacional das Mulheres.
Neste 8 de Março de 23, as mulheres no Brasil convocam a todas as pessoas e todos os movimentos a lutarem Pela Vida das Mulheres, em defesa da democracia e pela punição para racistas, machistas, transfóbicos, lesbofóbicos e golpistas de 8 de janeiro; lutar contra o machismo, combater a fome, lutar contra o racismo e a LGBTQIA+fobia, dando uma resposta às necessidades concretas do nosso povo: comida, terra, água, serviços públicos, direito de existir sem violência. Essas lutas são parte da disputa pelo modelo de sociedade que queremos. Por direitos trabalhistas, legalização do aborto e sem anistia ao Bolsonaro e todos/todas golpistas.
A luta contra a fome e a pobreza passou a ter lugar de destaque na pauta feminista e dos movimentos de mulheres. Entre 2020 e 2021, primeiro ano da pandemia de Covid-19, a falta de comida saltou de 11,2% para 19,3% nos lares comandados por mulheres. A maior ocorrência da fome entre famílias tendo as mulheres como responsáveis pode ser explicada, dentre outros fatores, pela diferença de rendimentos que desfavorece as mulheres em relação aos homens.
Entre 2020 e 2021, mais de seis em cada 10 (63,0%) domicílios tendo as mulheres como responsáveis estavam em algum nível de insegurança alimentar, sendo maior nos domicílios cujos responsáveis eram pessoas pretas ou pardas.
E surge o conceito de relações de Gênero….
Considero importante um pouco da história da construção do conceito de gênero pelas mulheres feministas, para que se possa compreender o sentido do seu uso como uma categoria útil de análise histórica como nos disse Scott J. (Àvila, M B e Dabat, R C., 1991, SOS Corpo). Dessa maneira, costuramos os elos perdidos da História do Dia Internacional das Mulheres e reafirmamos que as relações de gênero, como as de classe social e de raça são absolutamente estruturantes de uma sociedade realmente democrática sem discriminações.
A democracia clássica, dos direitos naturais, não contempla a noção da igualdade entre as e os diferentes, ao contrário, toda sua construção teórica e prática, como afirma Rousseau (Pateman, 1992), exclui as mulheres da cidadania, portanto não se pode considerar igualdade sem a maioria da população. Aqui a questão da igualdade de gênero é fundamental para que a democracia seja ressignificada tanto teórica como prática. Gênero, raça e classe são, portanto, dimensões estruturantes da democracia.
Ao utilizar o conceito de gênero nesse estudo, resgataremos o percurso teórico-metodológico enquanto categoria de análise, que transversa todos os campos de conhecimento em discussão nessa proposta
E é isso que a diferencia do uso tradicional da variável sexo (frequentemente com uma conotação descritiva) nas pesquisas, ao ser problematizada pelo feminismo quando mostrou que as relações de gênero não são produtos de um destino biológico, mas, antes de tudo, construções que possuem uma base matéria.
Assim, essas pesquisadoras francesas formularam, em termos de divisão sexual do trabalho, um quadro que permitiu conhecer simultaneamente a realidade e não mais os estereótipos do trabalho feminino em todos os aspectos.
Um trabalho paralelo de desconstrução e reconstrução dos conceitos usualmente utilizados e de desvendar sua neutralidade mostrando suas características sexuadas, conduzindo, necessariamente, a uma crítica dos modos de conceituação no conjunto das Ciências Sociais. (Kergoat, 1996)
O uso do termo gênero é aqui utilizado muito além do significado puramente gramatical, para tornar-se explicativo dos atributos específicos que cada cultura impõe ao masculino e ao feminino, a partir do lugar social e cultural construído hierarquicamente como uma relação de poder entre os sexos. O termo “sexo” reporta ao significado biológico, enquanto “gênero” representa, na perspectiva relacional uma elaboração cultural sobre o sexo (Oliveira, 1997)
Finalizando ….
As mulheres estão sempre, cotidianamente em Movimento, se transformando e buscando com suas pautas transformarem o mundo, e também sabem que toda transformação é dialética, cheia de ir e vir, de altos e baixos, de avanços e recuos. Mas, nesse movimento, ao se transformarem enquanto sujeito de direitos, percebem conscientemente que o processo dialético não abre possibilidade de retorno ao lugar de onde partiram, isto é, o lugar de não sujeitos, de oprimidas, subjugadas, sem direito à esfera pública. Essas são as mulheres que romperam com as diferentes desigualdades de classe, gênero, raça, geracional, orientação sexual que as oprimiam. São trabalhadoras do campo, da cidade, das águas e das florestas que seguem em luta ocupando diferentes espaços de poder e exigindo mais espaços de decisões em todas as frentes de luta seja, na sociedade civil, seja no parlamento, seja em cargos de governo.
A sociedade brasileira e o Estado têm uma enorme dívida com as mulheres e, principalmente, com as mulheres pretas. Sem dúvida, convivemos cotidianamente com a escravidão que não se acabou com a abolição. Todos os dados de pesquisa apontam que as mulheres negras são as mais estupradas, as que ganham 30% a menos que as mulheres brancas e que mais morrem; o feminicídio entre as mulheres pretas é uma chaga que não cansamos de denunciar. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, foram registrados 1.341. Desse total, 37,5% são brancas e 62% são negras.
Esses dados são subnotificados por diferentes motivos: as mulheres ainda têm vergonha de denunciar as violências e os profissionais que preenchem o atestado de óbito, em grande maioria, não colocam a causa como feminicídio.
Assim, são três os paradigmas fundamentais para conquistarmos a igualdade de gênero na sociedade: para trabalho igual, salário igual; garantia do exercício dos direitos sexuais e direitos reprodutivos, bem como o acesso à saúde integral de todas as mulheres; o direito da mulher estar no lugar que ela escolher e, principalmente, nenhuma mulher a menos, nos queremos todas VIVAS.
Bibliografia citada
1 – Estatísticas de Gênero- indicadores sociais das Mulheres no Brasil, IBGE, 2021 https//biblioteca.ibge.gov.br.vizualiação/livros/liv/78 info.
2 – https.//www.gêneronumero.media/retrato-das-mães-solo na pandemia
3 – Rede Brasileira dePesquisa em Soberania e Segurança Alimentar Nutricional (Rede Pensan)
4 – Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022
5- Scott, J, Gênero uma categoria útil de análise história, tradução de Àvila, MB e Dabat RC; SOS Corpo Recife, PE 1991
6 – Pateman, C.- O Contrato Sexual, Paz e Terra, SP, 2020
7- Kergoat, D, – Em defesa de uma sociologia das relações sociais: da análise criticadas categorias dominantes à elaboração de uma conceituação, In O Sexo no Trabalho, Paz e Terra, in A Mulher a sexualidade e o trabalho; Oliveira M E; Hucitec/CUT SP, 1997.
8 – Oliveira, ME – A Mulher, a sexualidade e o trabalho, Hucitec/CUT, SP 1997.
(*) Eleonora Menicucci é professora titular sênior da UNIFESP e visitante sênior da UFABC. Ex-ministra de Políticas para as Mulheres do governo Dilma Rousseff.