Condições geopolíticas em torno da questão das terras raras

Por Gabriel Cavalcante (*)

A dialética nos ensina que assim como o movimento do real parte tendencialmente ao abstrato; assim também o abstrato deve ir em caminho das peculiaridades do concreto. Nesse sentido, devemos analisar passo a passo o atual estágio das condições do real quando se trata da exploração capitalista denominadas terras raras (ou minerais críticos) do ponto de vista global. Em um duplo caminho: do mais abstrato ao concreto e do mais simples ao mais complexo.

O primeiro ponto estruturante para a nossa análise é o de que a finalidade humana (ou valor de uso, como se queira) inerente às terras raras é a de servir à constituição de motores para carros elétricos, turbinas de torres eólicas e componentes avançados de Chips — para além de servirem para componentes bélicos avançados, mas aqui deixamos em segundo plano.

Por este sentido, a prosseguir a transição energética, os minerais críticos estão inseridos na sociedade humana no mesmo espaço social onde se inseriram os derivados de petróleo no século XIX. Aqui destaca-se que o petróleo cumpriu (e continua cumprindo) o papel de uma mercadoria sui generis, pois o capitalismo, de forma mais profunda e abrangente do que outras formações sociais, depende essencialmente do tráfico de mercadorias.

Para transportar as mercadorias e realizar o processo de produção do valor, o capital precisa entregar elas aos consumidores. Por essa lógica, o valor inerente à produção dos derivados de petróleo é parte integrante do valor da esmagadora maioria das mercadorias produzidas no capitalismo.

Em outra linha, a queima de hidrocarbonetos é parte integrante substancial (em maior ou menos grau) da produção de energia elétrica de todos os Estados nacionais existentes. Integrando as mercadorias derivadas do petróleo, enquanto parte integrante do valor de quase praticamente todas as mercadorias, também em função do processo produtivo seja ele qual for.

Se ainda houver dúvida a respeito da importância crucial do petróleo para a produção capitalista, basta lembrar que a nível global tanto Estados Unidos quanto Rússia – as duas potências que disputaram o planeta ao longo da guerra fria – eram e continuam sendo possuidores de reservas de petróleo. Coincidentemente, em ordem cronológica, são a primeira e a segunda nação a se estruturarem para a exploração capitalista do petróleo. Os EUA a partir da hegemonia da família Rockefeller, e a Russia pela família Nobel.

Para além disso, tanto na primeira quanto na segunda guerras mundiais, ocorreu a ocupação militar do Irã por potências estrangeiras para fins de controlar os poços e guarnecer as rotas de óleo para o fronte bélico.

Como as terras raras compõem essencialmente tanto a produção de turbinas eólicas e a produção dos motores elétricos, elas substituem em dois eixos cruciais o valor de uso do petróleo: produção energética e transporte. Por este caminho, passa a ser um elemento de crescente importância para as disputas geopolítica em curso.

O segundo ponto estruturante para a análise é o de que no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, a China detém cerca de 70% da capacidade de extração de minérios críticos e 90% da capacidade de refino. Aqui, ao fundo, explica-se a choradeira do Elon Musk (Tesla) ao governo Trump taxar os chineses em valores estratosféricos: péssimo para os negócios!

Sobre a produção chinesa, o Estado da China Popular criou, em 2014, 6 empresas estatais para controlar o setor, denominadas de Big Six. São elas: 1) China Northern Rare Earth (Group) High-Tech Co; 2) China Southern Rare Earth Group; 3) China Minmetals Rare Earth; 4) Aluminum Corporation of China (Chinalco); 5) Guangdong Rare Earth Group; 6) Xiamen Tungsten. Estando sob controle estatal, o Estado chinês mantém sob controle a exportação, pois o governo define limites anuais de mineração e refino para evitar excesso de oferta. Bem como todas elas organizam-se em Integração Vertical, dominando desde a mineração até produtos de alto valor — imãs, lasers, baterias e assim por diante.

Em 2021, o Estado chinês unificou todas as empresas denominadas “Big Six” em uma enorme Holding, a China Rare Earth Group, centralizando o controle sobre recursos estratégicos e diminuindo a concorrência. Assim, logo que a China detém a hegemonia sobre extração e refino, então o imperialismo está em atraso estrutural na produção de insumos que inexoravelmente (e gradualmente cada vez mais) serão essenciais para a reprodução do próprio capital.

Pausamos aqui para reposicionar a questão: enquanto na estruturação da indústria petrolífera uma parte das reservas estava em solo norte americano e outra parte foi saqueada, em grande medida, do Oriente Médio e da América Latina através de guerras e governo vassalos; na estruturação de cadeias globais de produção de minerais críticos, por onde o imperialismo tentará sair de sua posição atual?

A busca por sair da situação de desvantagem orienta diversas investidas recentes do governo Trump. A primeira quando celebra acordo com o governo Zelensky para constituir um fundo “para reconstrução da Ucrânia” em que os EUA terão acesso a 50% dos lucros e acesso a minerais, petróleo e gás ucranianos — “logicamente” os outros 50% serviriam em parte para ressarcir os gastos militares dos EUA na guerra da Ucrânia. Em segundo lugar, quando utiliza instrumento similar ao do caso ucraniano para “intermediar a paz” entre Ruanda e Congo e ter acesso a 50% dos lucros oriundos da mineração congolesa. O terceiro quanto manifesta interesse em anexar a Groenlândia, território que tem potencial mineral ainda não explorado no Ártico.

O terceiro ponto para análise é o de que, dado o desnível entre as atuais condições entre as principais nações imperialistas e a China, iniciativas vêm sendo desenvolvidas pelos respectivos Estados nacionais ocidentais para se “alterar a rota” através de incentivos (internos) e restrições (externas) à produção capitalista dos componentes derivados da mineração crítica.

Cabe então considerações a respeito de legislações como a “Chips and Science Act” nos EUA (em 2022) e a “Critical Raw Materials Act” na União Europeia (em 2023). A primeira iniciativa correspondeu a investimentos da ordem de 280 bilhões de dólares nos Estados Unidos. A segunda concebeu metas obrigatórias de que, até 2030, 40% dos minerais críticos sejam processados internamente na Europa.

Por último, as nações vêm produzindo alianças e realizando disputas em torno do acesso às reservas de terras raras e da constituição de cadeias produtivas ao redor do globo. Neste ponto vale ressaltar a constituição, em 2022, da ”
Critical Minerals Alliance (CMA); aliança composta por EUA, Canadá, Japão, Finlândia, Coreia do Sul, Alemanha, França, Suécia, Reino Unido, Comissão Europeia e a Índia como integrante a partir de 2023. Seu objetivo é romper o monopólio chinês, buscando fontes alternativas em países como Canadá, Austrália e nações africanas e criar rotas de importação “blindadas” contra embargos ou interferências geopolíticas.

A Critical Minerals Alliance é menos uma solução e mais um sintoma da crise do imperialismo ocidental. Enquanto a China controla o presente com sua cadeia integrada (da mina ao produto final), o Ocidente aposta em cartas geopolíticas do século XX – alianças extrativistas e discursos de “segurança”. O risco é claro: repetir a era do petróleo, onde guerras por recursos disfarçaram pilhagem sob retórica de “democracia”. Se a CMA obtiver sucesso, a transição energética pode se tornar o novo capítulo de uma velha história: o Sul Global sangrando para alimentar a máquina do Norte.

No campo da disputa, em 2010 aparentemente a China embargou a exportação de minérios críticos para o Japão em razão de um conflito desencadeado por um barco chinês que foi detido por autoridades japonesas. A redução da exportação teve, com efeitos reduzidos, o mesmo efeito dos choques de petróleo ocorridos na década de 70 e traz desdobramentos geopolíticos até o presente.

Nesse contexto, a América Latina se torna um tabuleiro importante para as disputas geopolíticas em torno da estruturação das cadeias globais inerentes à transição energética. Não só pelas reservas de minerais críticos, como também em torno, por exemplo, do Lítio, do Grafite, do Cobre e do Cobalto.

Surge então, aquilo que vem sendo denominado como o “trilema dos minerais críticos” , em torno da produção baseada em princípios ancorados em: 1) Segurança para a estruturação de linhas de extração e comércio viáveis e com autonomia estratégica; 2) Custo para garantir acessibilidade e equidade nas rendas derivadas da extração e refino; 3) Sustentabilidade, para garantir a promoção da extração e os usos sustentáveis do ponto de vista ambiental e social.

Assim, o processo histórico nos revela um padrão inquietante: toda grande transformação do capitalismo ressurge sob novas roupagens, mas com velhas contradições. Se no século XIX o petróleo foi o sangue que irrigou a revolução industrial, hoje as terras raras assumem esse papel estratégico na transição energética — repete-se assim (como farsa) os mesmos mecanismos de dominação imperialista, agora envolto por um discurso ecológico.

Portanto, as terras raras materializam a contradição central do capitalismo contemporâneo: a transição para tecnologias “verdes” reproduz lógicas imperialistas de exploração, concentração e conflito, enquanto a dialética entre abstrato (a produção de mercadorias) e concreto (a disputa por recursos escassos) expõe a crise sistêmica de u9m modelo dependente de commodities estratégicas. O futuro da acumulação capitalista — e da própria transição energética — dependerá da capacidade do ser social humano em resolver, ou explorar, este novo enigma mineral.

(*) Gabriel Cavalcante é militante da Articulação de Esquerda na Bahia.

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