Por Roberto Ponciano (*)
Para a esquerda BBB canceladora, defender a estética do inimigo de classe através da indústria cultural e da sociedade é ser popular
“Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.”
Havia uma pedra no meio do caminho, mas não era a de Drummond, gauche na vida. Nem quero imaginar Drummond se, além de todas as patrulhas com as quais conviveu na vida, vivesse na “era do cancelamento e da lacração”. Qualquer primeiranista de Sociologia, que tenha lido a orelha de cinco livros na vida, vira crítico de Arte se tiver um canal no Youtube. Logo arregimenta um exército de seguidores que entendem tanto de Arte quanto eu entendo do funcionamento da Teoria Quântica.
A função de vigiar e punir, antes relegada à Igreja Católica, foi transferida para setores pós-modernos da esquerda, que, sob a influência de uma cultura anglo-saxã puritana, resolveu passar a limpo o mundo das Artes. Qualquer semelhança com a condenação nazista dos artistas modernos como “Arte degenerada” não é mera coincidência. A esquerda faz alarde quando fascistas invadem teatros tentando apedrejar artistas pós-modernos em suas performances, mas faz exatamente a mesma coisa, não somente com qualquer artista atual, mas, também, incluindo com a memória, da cultura popular que não se enquadre no purismo de suas cartilhas.
Há claros problemas de enquadramento na cultura do cancelamento. Óbvio que não é aceitável e nem tolerável que se faça humor racista, machista, misógino, etnocêntrico, ou que use da desculpa da Arte para pregar a intolerância. Mas a estética não é um discurso político determinista, sem espaço de alegoria e metáfora, que divide as pessoas e os artistas em duas categorias: de um lado, os que seguem a apedeuta nova cartilha do bom comportamento “bom-mocista” e os que entraram no seu puritano mundo anglo-saxão pós moderno, e, de outro, todos os que não seguem essa cartilha são “bolsominions” admiradores do nazista-mor de plantão. O que obviamente é uma mentira sectária, muito parecida com a divisão escatológica das seitas “neo-arrebatadoras”, entre “nós” e “eles”. “Quem não concorda conosco, é pecador, tem que ser punido (cancelado)”, é a máxima dos canceladores lacradores.
O primeiro erro imbecil dessa visão é confundir realidade com alegoria da realidade, com representação da realidade. Arte é alegoria, mitologia, simbologia e semiótica. Descrever um assassinato, por exemplo, não é fazer apologia de um assassino. Por uma visão tosca de estética, Edgard Allan Poe seria um serial killer que não realizou seus desejos mais secretos, assim como seria impossível ler e entender escritores reacionários, mas profundamente desvendadores da alma humana, como Lautréamont e Sade. Pela mesma linha teríamos que queimar, na mesma “santa fogueira vermelha”, Oscar Wilde (reacionário anticomunista), Balzac (monarquista antissocialista), Nelson Rodrigues (machista defensor da ditadura), Lispector (uma elitista alheia ao sofrimento social, segundo alguns) e a lista seria interminável. Na verdade, sobraria pouca coisa nas bibliotecas, passando por Milton, Dante (era do partido papal na Itália), Baudelaire, Paul Verlaine, Unamuno, Joyce, Proust, etc, etc, etc.
O primeiro erro enlaça, de maneira ainda mais acrítica e aterradoramente burra, o segundo erro da análise lacradora canceladora da Arte: o biografismo estreito. De perto ninguém é normal, diria Caetano Veloso. Confundir a biografia do artista com sua obra é de cair o cu da bunda. Seríamos proibidos de estudar Heidegger e entender a Fenomenologia (foi um apaixonado e fervoroso nazista, que discursou e escreveu elogios a Adolf Hitler) e teríamos que fechar, sem abrir, a filosofia de Nietzsche (sem a qual não poderíamos entender nem a Modernidade ou a Pós-modernidade). Aviso aos lacradores, que há trechos de ataques de Nietzsche aos anarquistas, aos socialistas, aos defensores de animais, aos veganos, às feministas!
Pela linha do biografismo infantil, nos prenderemos às frases soltas da obra do genial filósofo e deixaríamos de ler “A genealogia da Moral” e “Para além do bem e do mal” e seríamos proibidos para sempre de entender toda a filosofia posterior que se baseia na defesa nietzschiana do ataque a todos os ismos e do desvendar do mal que há na forçada bondade cristã.
Já dizia Dante que a Retórica é o rio mais raso do Inferno, no qual se atravessa sem molhar os tornozelos.
Para os canceladores é possível avaliar uma obra de Arte sem a entender, sem a ler minuciosamente e inclusive entender todas as chaves de leitura anteriores e aberturas posteriores que nela há. Os canceladores são mestres nas orelhas de livro e nas análises prévias, se gabando de saber sobre absolutamente tudo, sem precisar estudar com cuidado absolutamente nada.
O terceiro erro (ou seria forçamento na análise dos lacradores) é que pesam o hipertexto aleatoriamente para o lado que querem. Assim, quando gostam de Funk, passam pano para todas as letras sexistas, misóginas e machistas, alegando uma defesa anti-elitista do Funk (que seria uma música da favela, padecente de todo o preconceito do mundo e, com isso, com liberdade para falar o que quiser), mas acentuam todo e qualquer hipertexto contrário na análise de sambas da década de 50 e 60, os retirando de seu contexto social e fingindo que o Samba não sofreu (e muito mais fortemente que o Funk, já que os sambistas eram presos apenas por participar de uma roda de samba) o preconceito social. Lacradores não têm parâmetros, utilizam sua lupa para a direção que querem e fazem um tipo de análise prévia que é extremamente desonesta intelectualmente. Forçam a análise desprezando tudo que seja contra suas conclusões e realçando aspectos negativos de uma obra, escola literária ou movimento musical que queiram incluir no novo “Index proibitorum” dessa “inquisição vermelha”. Se isso não der certo, basta rotular ou xingar quem não concorda – velha tática da falácia de autoridade extrema invertida, reduzindo o adversário a um reacionário defensor do que há de pior na humanidade – para ganhar o debate sem precisar debater e aclarar a própria falta de conhecimento ou intimidade com a estética da obra de Arte.
É bom lembrar que comunistas e socialistas nunca foram muito bons quando tentaram circunscrever a Arte em algum limite. Foram melhores criadores de movimentos. O Obreirismo e o Realismo Soviético foram escolas toscas de Arte que não nos legaram absolutamente nenhum escritor insigne. Todos os grandes escritores socialistas e comunistas foram os que renegaram o patrulhamento dessa redução da Literatura a um panfleto de uma religião reificada pseudocomunista. O Obreirismo e o Realismo Soviético já perseguiram e proscreveram o Surrealismo (um movimento estético comunista) e foram responsáveis pelo pesadelo patrulheiro na vida de excepcionais escritores como Cortázar e Neruda.
Os canceladores/lacradores, de verdade, nem gostam muito de Arte. Preferem o BBB. Aliás, defendem com unhas e dentes que o BBB é “manifestação artística popular”. Confundem cultura popular, que tem um longo histórico de enraizamento nas lutas e manifestações do povo, com a receita de bolo e de produção em série carimbada pela mídia produzida para a Indústria Cultural. Nunca se deram ao trabalho de ler Adorno, Horkheimer, Guy Debord ou Walter Benjamin e defendem a ditadura da imagem única e o liquidificador cultural genocida, da sociedade do espetáculo como “verdadeira cultura popular”. Embora nunca tenham se debruçado sobre o tema da Cultura Popular, da sociedade do espetáculo e da reprodutividade técnica da obra de Arte, no e pelo capitalismo e da apropriação, da esterilização das formas populares pela Indústria Cultural, creem que basta rotular o adversário de “elitista” e de “alienado” para se tornar popular e antenado. Falar de astrologia e BBB os torna pops e antenados. Uma esquerda que fale de resistência cultural e que denuncie que, no fundo, eles defendem a estética do inimigo, também tem que ser ridicularizada e cancelada.
Para a esquerda BBB canceladora, defender a estética do inimigo de classe através da Indústria Cultural e da sociedade, é ser popular. Não à toa, somente corremos atrás do próprio rabo, não pautando mais a cultura da sociedade. Ficamos reduzidos a adoradores tolos dos produtos pasteurizados da ditadura da imagem e do oensamento únicos. Os lacradores canceladores são, no fundo, os amantes sofisticados da globalização imperialista e não têm nenhuma linha de resistência contra ela.
Gostam de cancelar a Arte e têm pouca ou quase nenhuma leitura de poesia estética. Mas opinam livre e corajosamente sobre as duas coisas. Podem não entender nada sobre Bossa Nova, mas em dois minutos condenam, heterocronicamente, o movimento como uma música da elite da Zona Sul e de velhos babões sexistas. Na verdade, toda a análise dos lacradores canceladores se resume nas rotulações e condenações apriorísticas de movimentos polifônicos, que permanecerão para a posterioridade, quando, enquanto os lacradores/canceladores de hoje serão ridicularizados como são os obreiristas das décadas de 40 e 50.
O quarto erro é o heterocronismo. Lacradores e canceladores são os fiscais da moral da Humanidade para além do tempo e do espaço. Receberam uma missão divina do Deus da Polinésia, e agora reclassificam toda a cultura debaixo da moral e da visão do século XXI. Ler a Ilíada e a Odisseia com os olhos de hoje é reduzir um tesouro imemorial a um apanhado de assassinatos e a um grande genocídio. Sem entender nada de metáforas e simbologia, reduzem toda a obra de Arte a um panfleto político que tem que pedir permissão aos dias de hoje para ser validado ou esquecido.
Imagino um público de canceladores/lacradores assistindo Saló, de Pasolini. Os imbecis reduzirão à obra à apologia do assassinato e do estupro?
Por último, canceladores e lacradores cometem o mesmo erro do Obreirismo comunista, do Realismo Soviético, do “ano zero” da Revolução Cultural chinesa ou mesmo da Revolução Francesa. São a-históricos. Pensam que o mundo começou hoje e que seus valores são atemporais. Eles são apenas frutos de uma cultura histórica como todos aqueles que eles condenam no passado, com tanta ênfase, continuarão a ser gigantes. Eles, os canceladores lacradores, entretanto, serão lembrados apenas como uma pequena igrejinha que tentava ser famosa lacrando na Internet.
(*) Escritor, mestre em Filosofia e Letras, especialista em Economia e doutorando em Literatura Comparada