A comunicação popular na esquerda

Por Zé Guilherme (*)

Sabemos que nós, das esquerdas e progressistas, erramos muito na comunicação nas últimas décadas.

Tem muitos dos “nossos” dizendo que a gente aprendeu e não vai errar mais. Como assim? Não começamos nem engatinhar na solidariedade de classe em relação aos radiodifusores e emissoras populares.

Temos muito, muito para aprender. As boas emissoras, os bons e as boas comunicadoras populares estão pagando um preço alto por não ter deixado de fazer trabalho de base diariamente e nem por um minuto. Sem solidariedade, não tem “nossa” comunicação, não tem NÓS, vira tudo eu.

Não quero falar de solidariedade, quero pedir duas contribuições solidárias para a comunicação, conto com a sua sensibilidade. “Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os Chicos Lobo e os Jerrys de Oliveira, militantes que vem lutando durante todas as suas vidas, e estes são imprescindíveis”.

Uma pequena apropriação de Bertolt Brecht. Entramos no transformador ano de 2022 com os companheiros Chico Lobo e Jerry de Oliveira passando por terríveis e injustificáveis momentos provocados principalmente pela falta de vivência e visão das esquerdas e progressistas em relação à comunicação e em especial, a nossa pouca cultura da prática da solidariedade de classe.

A nossa cultura é mais de abandonar os companheiros da comunicação popular à própria sorte, foi também assim quando a rede globo começou a espalhar que a gente derrubava aviões.

Foram cerca de 10 mil comunicadores populares condenados por causa de fake e por falta de menos de meio quilo de solidariedade. Vira e mexe, desconfio que uma comunicação popular e combativa incomoda muita gente “nossa”. Chico Lobo e Jerry estão entre as maiores referências da comunicação popular brasileira e continuam em campo. Ao invés de apoio, estão comendo o pão que o diabo amassou. Desnecessariamente, pois bastam gotas de solidariedade para tornar as coisas mais tranquilas e suaves. E olha que solidariedade não dói, faz bem para a saúde e para a alma de quem acredita.

Jerry de Oliveira sofreu um atentado de bolsonaristas e continua ameaçado de morte desde setembro de 2021. Não faz muito tempo que ele teve um AVC e está com a diabetes batendo mais de 400 de glicose, tem tido uma alimentação precária, além de outros problemas.

A jornalista e radialista Cris Costa, sua companheira de vida e de construção, manutenção e direção da Revolucionária, mais potente emissora popular urbana do país, continua também bastante abalada emocionalmente e tendo que tomar todos os cuidados com a segurança. Mesmo assim, tudo é motivo para o avanço da comunicação e da classe trabalhadora.

A Noroeste FM está fazendo do limão uma deliciosa limonada, radicalizou na digitalização e consolidou o seu caráter de rádio planetária e, assim, cada dia, os programas que são sintonizados e várias partes do mundo, agora também podem ser produzidos em qualquer lugar da comunidade do Boa Vista, de Campinas, São Paulo, do Brasil ou do planeta.

Se for necessário, como fazia a Rádio Favela FM, vira a “Outra FM”. Mesmo o Jerry sendo um companheiro de partido, o diretório municipal do PT de Campinas não se manifestou, o diretório estadual não discutiu o assunto e nenhum parlamentar do partido deu apoio ou fez algum pronunciamento até agora.

A história e a luta tem mostrado que quando não temos respaldo dos nossos parceiros e aliados, os adversários e inimigos botam suas asinhas e suas armas de fogo de fora. Não foi por nada que cerca de 10 mil comunicadores populares foram perseguidos pelos nossos governos (Ministério da Comunicação, Anatel e Policia Federal / Ministério da Justiça) e condenados pela INjustiça brasileira, quando o Brasil vivia o show da democracia, entre 2004 e 2014.

Depois do que aconteceu com o Lula, a gente tomou mais consciência de como pobre é tratado e da maldade que o Estado brasileiro é capaz de fazer, especialmente com os mais fragilizados.

A situação do Chico Lobo não é menos delicada. A história está muito difícil para os que continuaram caminhando na luta pela comunicação popular. As conquistas tem sido pequenas e as consequências e derrotas são muitas. Coincidentemente, e com muita tristeza, no dia 30 de dezembro de 2021, ano difícil para todos, recebi informações desses dois queridos amigos, nacionalmente respeitados e reconhecidos por suas contribuições para a luta. Contribuições essas que os tornaram duas das principais lideranças do movimento das rádios populares, livres e comunitárias, brasileiras, de todos os tempos. Além de serem firmes na política, são craques como radialistas, comunicadores e dominam muitas técnicas da comunicação. No fazer comunicação popular e na firmeza política, eles são militantes para todo mundo tirar o chapéu.

O Chico Lobo é um irmão mais velho da luta e o Jerry, um irmão mais novo. Fomos irmãos e cúmplices nessa vida. Os dois, mesmo com a saúde bastante debilitada e a vida tumultuada, continuam nas trincheiras dos bons combates, trabalhando e esperançosos das esquerdas acordarem para a necessária e precisa luta da comunicação. Eles avançaram e venceram em muitas batalhas, porém muito pouco em ajudar a companheirada ampliar a sensibilidade e solidariedade. É preciso, com urgência, alguém do Partido ou apoiador do Lula oferecer acolhimento e cuidados.

Chico Lobo está sem recursos econômicos, sem aposentadoria, não teve direito à ajuda emergencial, está doente cardíaco infartado, hipertenso, diabético, perdendo a visão e com artrose. Está sem família, filhos ou irmãos. Está só na megalópole de São Paulo. A existência e as circunstâncias dela, deram um nó na vida dele. Complicou e o bicho está pegando. Quem puder contribuir com Chico Lobo (pix 85879398820), mais do que a ele, vai estar ajudando a comunicação popular brasileira. Pois vamos precisar muito dele para esse novo Brasil que queremos reconstruir, a partir de 2023, afinal: Massificar O Fazer Comunicação Popular, É Preciso!

É no tempo presente que pela primeira vez na história, a classe trabalhadora tem os meios de pesquisa, produção, armazenamento e transmissão da comunicação nas suas mãos literalmente. Tudo pode acontecer e o Chico Lobo é mestre dos mestres. Podemos abrir mão dele?

Um pouco do Chico Lobo:

No início dos anos 90, o PT começa a mudar BH, elegeu 9 vereadores e o mandato de Gonçalo de Abreu, articulamos um coletivo para colocar a Rádio Legal 104,5 FM No Ar. Eu dei a ideia do nome e o genial artista plástico Gilberto de Abreu fez uma bela arte. Era a nossa contribuição para o movimento em BH, em Minas e no Brasil. Para essa empreitada, fomos beber na fonte, pegar as manhas e conseguimos o transmissor com o companheiro Chico Lobo.

Meados dos anos 90, o então rebelde cantor Lobão, quis apoiar o movimento de rádios livres e comunitárias, ele deu uma grande contribuição, naquela época foi o artista que mais se envolveu com o movimento. Para pegar as manhas, conseguir os contatos e articular com as Rádios, Lobão foi beber na fonte com o companheiro Chico Lobo.

No final dos anos 90, o cineasta Helvécio Ratton foi fazer o filme “Um Onda No Ar”, inspirado na Rádio Favela de BH. No mundo, essa ficção é uma das principais produções cinematográficas que aborda a luta das emissoras populares. Nela, sou representado pelo personagem João, o advogado. Ratton foi beber na fonte, pegar as manhas e conseguir detalhes sobre o movimento, nos anos 80 e inícios dos 90, com o companheiro Chico Lobo.

Pouca gente sabe que ele instalou mais de 200 rádios livres e comunitárias por todo o Brasil, deu mais de 80 cursos de produção radiofônica, militou no MST implantando rádios em assentamentos em 5 estados, ensinou o uso de equipamentos de radio-segurança para os camaradas do MST, escreveu duas apostilas completas sobre radiodifusão comunitária. Viajou por todos os sertões do Brasil ensinando companheiros do PT a fazer suas campanhas de rádio no horário eleitoral gratuito. Prestou um serviço enorme à Secretaria Nacional de Comunicações do PT ao lado de Gilberto de Carvalho e Chico Macena.

Perdeu-se a conta de quantos cursos Chico Lobo deu para a companheirada da CUT em sindicatos. Foi pego 3 vezes pela Polícia Federal, quando ajudava a companheirada a fazer rádio nas comunidades. Tudo voluntariamente a troco de passagem, comida e cama, algumas vezes como eu fazia, ia só com a passagem de ida, a de volta a gente via depois. Estou acabando de escrever um longo artigo que está virando a base de um livro: “Eu e a comunicação, em tempos que o imperialismo determinou nossas vidas”.

MASSIFICAR O FAZER COMUNICAÇÃO POPULAR, É PRECISO! Estou tentando fazer uma cuidadosa reflexão sobre nossas práticas, ou melhor, a não prática da disputa da comunicação desde os anos 80. Com as falas do jornalista e escritor Fernando Morais, o ex-deputado e ex-prefeito de BH, Dr, Célio de Castro e o senador João Calmon, e outros conteúdos, demonstro que os veículos de imprensa hegemônicos são mais instrumentos de guerra do imperialismo do que propriamente empresa de comunicação. Abordo o fato de que foi sob os comandos dos “nossos” ministros da Justiça e o “nosso” presidente da Anatel que, injustamente, perseguiram e fecharam milhares de emissoras populares e provocaram a condenação de outros milhares de comunicadores populares. Ações que impediram o florescer da maior experiência popular de comunicação dos últimos 40 anos.

Também falo do aborto criminoso realizado pelo ministério da Cultura sob o comando das “nossas” Ana de Holanda e Marta Suplicy em relação os Pontos de Cultura, quando transformaram o Cultura Viva em Cultura Morta. Os Pontos de Culturas foram o segundo maior movimento popular de disputa da comunicação nos últimos 40 anos. Ponto de Cultura com Rádio Comunitária transformam-se em Cultura de Ponta. Já que a comunicação vem sendo usada para desconstruir o Brasil e impedi-lo de avançar e se encontrar, vai ser ela, a comunicação, um pilar para a construção do autodesenvolvimento e integração nacional. Apresentamos as primeiras ideias do SUC – Sistema Único de Comunicação.

Sou da legendária Rádio Educativa Favela FM de BH desde 1996. Nesses 25 anos que acompanho a Rádio, ouvi muitas e variadas críticas vindas do nosso campo, quase nenhuma solidariedade nos muitos momentos de dificuldade e agressão sofrida. Raros foram os elogios, mesmo ela tendo um importante longa metragem – Uma Onda No Ar, de Helvécio Ratton, retratando sua história, a Favela FM sendo uma das maiores conquistas mundiais da radiodifusão popular, a 106,7 FM, a AUTÊNTICA Popular da Grande BH poder ser sintonizada com qualidade em mais de 20 municípios e estar entre as dez de maior audiências. E ainda, até hoje não ter vacilado quando teve que tomar posição de classe e/ou de raça.

O mais incrível é que, mesmo eu tendo assumido como secretário de comunicação do PT BH, na primeira gestão do PT na cidade, ter integrado a Coordenação do Setorial de Radiodifusão Comunitária do PT Nacional e o Misael ter sido um dos primeiros filiados do PT de BH, nunca deixaram o Lula conhecer a Rádio ou até mesmo dar uma entrevista por telefone.

Dilma nos deu a honra da sua visita. Ela foi por conta própria, por indelicadeza política, nenhum político, assessor ou militante com atuação em Minas acompanhou a presidenta. Era uma boa oportunidade, a Favela FM fica no maior aglomerado de vilas e favelas de Belo Horizonte.

Será que perguntaram a Dilma como foi lá?! O que mais me impressiona foi testemunhar que nestas mais de duas décadas quase nunca vi alguém “nosso” chamar o povo da Rádio ou mesmo o Misael para conversar. Especialmente conversar política. Nem mesmos as e os compas dos gloriosos movimentos sociais, sindicais e parlamentares “nossos” que fazem programa na Rádio há alguns anos. A relação vai muito pouco além de veicular programas.

Em 2.000, estive presidente da ABRAÇO Minas – Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária MG. De 2003 até 2007, estive Coordenador de Comunicação e Cultura da ABRAÇO Nacional e Secretário Geral do FNDC, Fórum Nacional Pela Democratização da Comunicação, quando construímos a Rede ABRAÇO de Rádios, Casa Macunaíma, Quilombos Midiáticos e muita luta.

O Brasil é o país no mundo que instalou mais emissoras populares em pouco espaço de tempo, foram cerca de 20 mil em menos de 10 anos. O represamento político era muito grande, com certeza, mas a ousadia do movimento força foi maior ainda.

No auge da minha militância, em abril de 2007, três meses do segundo mandato do Lula e o Brasil estando vivendo um dos mais intensos períodos de democracia formal, percebi com muita clareza que não iríamos avançar na democratização dos meios de comunicação, que não teríamos políticas públicas de universalização da digitalização e muito menos para radiodifusão popular. Infelizmente, hoje a gente vê e sente que é o que acabou acontecendo. Como não ia avançar, me distanciei radicalmente e fui tentar aprofundar ser pai, marido e avô.

Agora os filhos estão criados e a Carmen se aposentou; faz uns três anos que estou devagar voltando organicamente para o movimento da comunicação popular. É com tristeza que vejo a situação de calamidade da nossa companheirada. A situação está pior que antes de 2002. É uma vergonha para as esquerdas e os progressistas deste país. Fico a me perguntando como a direita e a extrema direita tratam os seus veículos e os seus bons ativistas da comunicação?

(*)  Zé Guilherme, de Belo Horizonte – MG,  é militante e liderança do movimento de rádios comunitárias de esquerda.


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

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