Por Renato Dagnino (*)
Muitos de nós abraçamos as ideias da Economia Solidária (ES) quando ela era apenas uma síntese da nossa utopia de justiça social, equidade econômica e responsabilidade ambiental e da nossa disposição de nos somarmos ao enfrentamento da fome, da miséria e da exclusão social.
Vimos como, resgatando da história experiências contra-hegemônicas de organização da produção e consumo de bens e serviços baseadas na propriedade coletiva dos bens de produção e na autogestão, a ES ia ganhando o status de um movimento.
E assistimos esse movimento pela ES ganhar força no ambiente da politics e da policy ao expressar aquela síntese que até então se limitava ao campo das utopias e da nossa disposição de luta.
Passavam a alavancar o movimento iniciativas surgidas da mobilização de atores agrupados no meio rural – como os empreendimentos solidários de agricultura familiar, no ambiente urbano, como as fábricas recuperadas, a organização dos catadores, etc., no meio universitário, como as incubadoras tecnológicas e cooperativas populares e na institucionalidade de governos subnacionais.
Participamos, então, de um novo momento. Sua ideia-força combinava a percepção de que nosso capitalismo periférico e selvagem derivava de uma opção da classe proprietária com a negação de uma concepção etapista que nos poderia levar, pela via da propriedade estatal e a heterogestão, à degenerescência burocrática do socialismo real.
Aproveitando vitórias da esquerda que ocorriam no País, a proposta da ES passava a disputar espaço na agenda com a visão que, por não aceitar aquela ideia-força, orientava de modo convencional a luta contra a fome, a miséria e a exclusão social.
Sem negar a importância da “distribuição de renda para os mais pobres” mediante políticas compensatórias que através da geração de demanda efetiva alimenta a estratégia convencional do “emprego e salário” e que depende da cooptação das empresas e do seu investimento, a proposta da ES foi demarcando seu espaço na agenda da esquerda.
Para conferir sustentabilidade àquele enfrentamento, a proposta apontava um caminho suplementar baseado naquela ideia-força. Resgatando o mote do “ensinar a pescar”, ela apontava um duplo contraponto. Defendia a “geração de renda pelos mais pobres” e uma estratégia de “trabalho e renda”. Mediante o fomento às redes de empreendimentos solidários e a alocação preferencial do poder de compra do Estado, ela antevia uma reorganização do tecido socioeconômico e produtivo do País.
Mas, seus partidários sabiam que isso dependia de um longo processo de acumulação de forças. Era arregimentando os excluídos para crescer no interior da economia “formal”, explorando espaços de muito baixa rentabilidade, que a ES teria que sobreviver à espera de uma correlação de forcas favorável.
Ela ocorreu com a vitória de uma coalizão de esquerda no âmbito federal. Embora aquela visão convencional predominasse no círculo dos fazedores da política do governo federal, que era de onde poderiam vir os recursos destinados à ES, a proposta foi ampliando seu espaço na agenda pública do País, graças à criatividade e ao compromisso de seus apoiadores.
Foi sendo armado um complexo conjunto de medidas de política que transversalizavam uma estrutura estatal institucionalizada com outras finalidades. A necessidade de combinar sinergicamente iniciativas no campo social, econômico, produtivo, formativo, financeiro, tecnocientífico, de orientação da compra pública, etc., levou à concepção de um enfoque sistêmico. Sem que fosse institucionalizado como tal, constituiu-se o sistema da ES.
A partir de meados da década de 2000 era possível prever que o amadurecimento de mudanças em curso na correlação de forças políticas, ao seguir provocando a alteração da configuração do aparelho de Estado, consolidaria o que se havia logrado. E que era possível a construção de um cenário desejável, em que a política da ES viesse a orientar outras políticas públicas.
Foi nesse momento que as políticas públicas formuladas segundo aquela visão convencional, combinando a estratégia do “emprego e salário” e da “distribuição de renda para os mais pobres” para o enfrentamento da exclusão social, começaram a dar certo.
Elas eram orientadas ao aumento do salário e à concessão de crédito aos trabalhadores, à expansão da previdência social, à contenção dos preços administrados pelo Estado, ao subsídio ao investimento produtivo das empresas, à ampliação da infraestrutura, à garantia de renda para os mais pobres, à expansão das oportunidades de formação e de emprego formal, à exploração das vantagens associadas à exportação de commodities, etc. E, pareciam mostrar, com o êxito que alcançavam, que a proposta e a política da ES eram pouco necessárias.
A ES já era considerada por alguns como uma ideia contrária aos interesses da classe trabalhadora. Para muitos, uma política que apenas se justificava pelo seu caráter filantrópico ou, no máximo, compensatório. Para alguns, até mesmo as ideias-força que a animavam passaram a ser vistas como distopias ingênuas ou mal-intencionadas. Enfim, como “ideias fora do lugar”.
Sucede esse período o que se inicia com o golpe de 2016. Agora, o quadro de fome, miséria, exclusão, destruição ambiental, privatização das coisas públicas, etc., passa a ser um objetivo de política das forças reacionárias ansiosas por diminuir o preço da força de trabalho e dos insumos de que dependem para aumentar o lucro que as mantêm. E o desmantelamento da política de ES se converte em parte dessa política.
A pandemia e a forma como ela é tratada pelo governo agravam ainda mais esse quadro. Aumenta brutalmente o contingente de excluídos e se altera sua composição. Nele ingressam milhões de profissionais que possuem conhecimento para atuar no mercado capitalista. Dado que dificilmente voltarão a ele, eles poderão dar um novo impulso à ES.
Nesse contexto, vai ganhando corpo no mundo inteiro a percepção de que o “novo normal” que emergirá do capitalismo neoliberal financeirizado terá que incorporar uma palavra mencionada à exaustão: solidariedade. Aparecem proposições (e a Economia de Francisco talvez seja a iniciativa mais representativa) que dialogam muito de perto com a problemática e a “solucionática” da ES.
Mesmo personagens alinhados com aquela visão convencional de enfrentamento da exclusão social, até agora exclusivamente focados na estratégia do “emprego e salário” e na “distribuição de renda para os mais pobres”, estão se tornando propensos a considerar a estratégia do “trabalho e renda” e a “geração de renda pelos mais pobres” como insumos para a tomada de decisão.
Contribui para isso a constatação de que experiências que dialogam com o conceito de ES levadas a cabo em vários países estão demonstrando seu potencial de solucionar os problemas que mais preocupam a comunidade internacional. E que, no Brasil, qualquer estudante do segundo grau e muitos dos excluídos sabem identificar inúmeros bens e serviços que, mesmo antes que possam contar com uma tecnociência solidária, podem ser produzidos com muitas vantagens por empreendimentos solidários. Para isso, basta que recebam subsídio equivalente ao concedido às empresas.
O entusiasmo d@s companheir@s com a vitória que depois de muitos anos alcançaram com renda emergencial e sua disposição de lutar pela sua permanência, faz com que comecem a ver a ES como um “ensinar a pescar” que pode atenuar o modo capitalista selvagem de produção e consumo de bens e serviços.
É para transformar a propensão dos que se agrupam para superar as múltiplas crises provocadas pela pandemia num convencimento que esta avaliação da trajetória da ES foi aqui esboçada. Ela pode fazer com que percebam que muito daquilo que desejam só pode ser alcançado se a construção da ES passar a ser um objetivo transversal agregador da sua ação.
Essa consciência é uma precondição para que a ES venha a ser encarada pelos fazedores de política quando ocorra uma retomada do governo federal onde ela, como política de governo e como sistema, chegou a se institucionalizar. Ela pode, também, motivar os que em breve serão eleitos para ocupar as câmaras de vereadores e prefeituras dos municípios, que é onde ocorre a maior parte dos problemas e das soluções sobre os quais opera a ES.
Ao fazer com que a ES seja visualizada como o eixo do nosso processo civilizatório de reconstrução nacional, estaremos acumulando a força necessária para a construção do futuro que nossa sociedade merece.
(*) Renato Dagnino é professor da Unicamp