Por Valter Pomar (*)
Bolsonaro aposta no aprofundamento da crise.
Mas a direita gourmet age como se estivesse diante de uma criança birrenta.
Os motivos para esta atitude permissiva são políticos.
Entre outros, destaco dois:
1/a direita gourmet sabe que para resolver “como se deve” o problema, teria que contar com o apoio de Mourão e da cúpula das forças armadas, que até agora deram todos os sinais de que no limite vão dar respaldo a Bolsonaro;
2/a direita gourmet teme que um afastamento “a quente” de Bolsonaro fortaleça a esquerda.
Suspeito que esta última seja a maior preocupação da direita gourmet.
Pois de nada adiantaria – para eles – derrotar Bolsonaro, se o beneficiário final da operação for a oposição de esquerda.
Pois o que está efetivamente em jogo, para eles, não são as liberdades democráticas, nem tampouco as instituições.
O que está em jogo para a direita gourmet são as políticas neoliberais.
É por isso que, além das perguntas acima, a direita gourmet deve estar se perguntando se a esquerda:
1/estaria por exemplo disposta a tratar Mourão como tratou Itamar?
2/estaria disposta a fazer um pacto que preserve as contrarreformas neoliberais feitas desde 2016?
Sobre isso é preciso reconhecer que existe na esquerda quem se disponha a cumprir este papelão.
Ou seja: existe sim gente disposta a abrir mão do programa – ou de parte importante dele – e oferecer a esquerda como “reconstrutora da institucionalidade perdida”…
…. o que na prática significaria aceitar boa parte das contrarreformas neoliberais como fato consumado e reestabelecer a paz política em condições tais que o preço da crise continuaria sendo pago pelos de baixo.
O que não seria propriamente uma novidade.
Assim como não constituiria novidade se uma parte da esquerda viesse a cair nessa.
Mas seria simplesmente bizarro se o PT adotasse esta postura.
Não apenas porque o PT foi criado e organizado exatamente contra este tipo de postura (pacto das elites, transição pelo alto, conciliação de classes etc.).
Mas principalmente porque já se tentou uma variante light deste tipo de atitude e a história não terminou bem, ao menos não terminou bem para nós e para a maioria do povo.
Lembrando: nos governos Lula e Dilma, adotou-se uma postura bastante moderada.
E o que aconteceu ao fim e ao cabo?
O golpe!
Patrocinado e apoiado pelos que haviam “lucrado como nunca”.
Será que não aprendemos nada?
A verdade é: tem gente que não aprendeu nada e não consegue vislumbrar outro caminho que não passe pelo acordo com uma parte do lado de lá.
Sendo assim, vamos usar outro argumento.
O argumento é: estamos em 2021, não em 2001.
O mundo é outro, o Brasil é outro, a direita é outra e a esquerda também é outra.
Os setores da esquerda que arrastam a asa para um “acordo por cima” precisam lembrar, antes de mais nada, que o principal traço da conjuntura é a instabilidade.
E isto afeta todo mundo, da extrema direita até a extrema esquerda.
Daí decorre que 2022 não está garantido, sob nenhum aspecto.
A eleição não está garantida.
O resultado da eleição não está definido.
A posse de quem vencer não é fato consumado.
E o que ocorrer depois depende de variáveis que estão sendo definidas agora, em 2021.
Sendo que o cenário mais provável não é “céu de brigadeiro”.
Parte da esquerda subestima Bolsonaro. Subestimou em 2018, subestima agora.
Parte da esquerda superestima o compromisso democrático das elites. Superestimou em 2016, superestima agora.
Parte da esquerda acredita nas instituições. A fé da hora é concentra-se no STF, mais precisamente em Alexandre de Moraes.
Um relógio errado acerta as horas duas vezes por dia. E num ambiente de tanta instabilidade, tudo pode ocorrer, inclusive nada.
Mas se não quisermos depender do imponderável, nem ficarmos a reboque deste ou daquele setor das elites, a oposição de esquerda precisa lembrar quem é quem nesta confusão toda.
A direita gourmet quer preservar as “conquistas programáticas” do período 2016-2021.
Se agora estão em choque crescente com Bolsonaro, é porque querem evitar Lula, e querem evitar Lula porque a direita gourmet concorda com Ciro Gomes e acha que o “lulopetismo” é como o escorpião da fábula.
No fim das contas, eles acham que o escorpião vai ferroar o sapo.
(Eles se acham o sapo, o que é um absurdo, mas como estamos expondo o ponto de vista deles, sigamos).
Nesta “teoria”, como em toda teoria, por mais mentirosa que seja, sempre há um grão de razão.
No caso, o grão de razão é o seguinte: mesmo que venha a fazer alianças com um setor da direita golpista, a esquerda – se quiser sobreviver, se quiser continuar de esquerda, se quiser manter conexão com o povo – a esquerda precisará pelo menos revogar as medidas neoliberais adotadas desde o golpe.
E precisará fazer isso rápido, porque a crise é profunda demais e porque não haverá, contra um governo de esquerda, a mesma “tolerância” que parece existir contra os governos da direita.
Não haverá tolerância nem da parte do povo, nem da parte da direita gourmet, nem muito menos da parte da extrema direita.
Vale lembrar que a direita gourmet pode usar punhos de renda, mas conciliou com o bolsonarismo, pode chegar novamente a um acordo com a extrema direita, não tem questões de princípio contra o neofascismo e acha certo tratar o povo trabalhador na porrada e na privação.
Qual a conclusão que devemos tirar disto tudo?
Que para nós não basta derrotar o bolsonarismo, para nós é preciso derrotar o bolsonarismo como parte da luta contra o neoliberalismo.
Certamente nos interessa aprofundar o conflito entre a oposição de direita e o bolsonarismo.
Mas sem dependermos deles.
E sem nos misturar com eles.
(Aliás, quem propõe fazer um ato conjunto com a direita gourmet deveria explicar por qual motivo temia as confusões que poderiam ser provocadas por infiltrados em nossos atos no dia 7 e agora acha que vai ser tranquilo fazer um ato conjunto com a oposição de direita).
Melhor é deixar que a direita não bolsonarista faça seu próprio ato, convoque sua tropa com seu discurso próprio (que é antipetista), demonstre qual sua força efetiva, demonstre que está mesmo disposta a marchar..
… e que defende mesmo o impeachment.
Se não for afastado, Bolsonaro seguirá na operação “golpe em prestações”, que tem como objetivo continuar presidente depois de 2022, custe o que custar.
Também por isso precisamos convocar nova mobilização pelo Fora Bolsonaro, o mais rápido que for possível.
Organizando não apenas atos centrais, mas também atos nas periferias das grandes cidades.
Aumentando a pressão sobre Lira.
E preparando as condições para uma greve geral.
Sempre lembrando que nosso objetivo não é apenas derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo, mas também derrotar o neoliberalismo que a direita gourmet apoia enfaticamente.
Se Bolsonaro for afastado, corremos o risco de um governo Mourão servir para a direita se rearticular, como aconteceu com Itamar?
Sim, claro. Mas no cálculo custo benefício, é melhor para a esquerda e para o país correr este risco, do que fazer cálculos mesquinhos que nos conduzam a tolerar a continuidade de Bolsonaro.
Além disso, vamos falar a verdade: a direita se rearticulou no governo Itamar porque prevaleceu na esquerda a postura de uma oposição de baixa intensidade contra aquele governo.
Se tivéssemos feito oposição para valer, a história teria sido outra.
É o que precisamos fazer agora: oposição para valer.
(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT