Por Ariana C. Rumstain (*)
Dedicados a lutar por melhores condições de vida e trabalho para a classe trabalhadora, nós, sindicalistas e militantes, devemos compreender um importante debate que se coloca hoje no Brasil: a valorização da economia do cuidado. Lembramos que em março de 2023 foi constituído um Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar uma proposta para a construção do Plano Nacional de Cuidados do Brasil (Decreto nº 11.460).
A criação do GT e a proposta de construção de um plano suscita um debate marcado por complexidades, interpretações diversas e análise de processos históricos, ou seja, o debate que fundamenta a criação do GT não é novo. De uma forma ou de outra, sempre nos deparamos com a temática em nossas lutas recentes, seja contra a Reforma da Previdência, quando se questionou a idade diferenciada para aposentadoria de homens e mulheres, seja no debate suscitado com a aprovação da conhecida “PEC das Domésticas” em 2013, quando a elite se indignou contra a conquista de direitos por pessoas que passaram a ser reconhecidas como trabalhadoras, e não “como se fossem membros da família”.
Também nos deparamos com a temática dos cuidados nos debates sobre transferência de renda, em que observamos “preocupações” sobre as “portas de saída” construídas a partir de iniciativas de “inclusão produtiva” dentro deste sistema de produção capitalista, muitas vezes com soluções precárias de incentivo a um empreendedorismo de sobrevivência. A base que sustenta as saídas fáceis para problemas complexos é igualmente rasa e cruel, como se o desemprego e a “dependência dos benefícios” fosse em razão da ausência de disposição dos sujeitos (marcada por essa visão do comodismo, da inércia, da zona de conforto). Todos esses debates apresentam como questão a desvalorização do trabalho do cuidado.
Movimentos de mulheres no mundo lutam pelo reconhecimento deste trabalho do cuidado, que é fundamental para a reprodução da vida, para o bem-estar das pessoas e que tem um impacto enorme na economia. Um trabalho invisível ou mal remunerado, que envolve o esforço físico e demanda tempo com atividades como a manutenção da casa (a limpeza, o preparo da comida, as compras realizadas, roupas limpas, a louça cotidiana lavada etc.) e o cuidado das pessoas: bebês, crianças, idosos, doentes, pessoas com deficiência, enfim, inúmeras horas dedicadas à reprodução, promoção e sustentação da vida.
Todo o debate em torno da valorização do cuidado nos possibilita refletir sobre as diferentes formas como as pessoas vivenciam o trabalho; a concepção de trabalho; e a compreensão de que a luta de classes não se restringe ao local de trabalho, como nos adverte Claudia Jones e Angela Davis, militantes e intelectuais que em seus trabalhos denunciam, entre outras problemáticas do contexto estadunidense, a centralidade da superexploração das mulheres negras.
A questão que se coloca é complexa porque não se trata somente da divisão do trabalho doméstico, em grande parte realizado pelas mulheres (a corresponsabilidade), mas sobre a centralidade deste tipo de trabalho no sistema capitalista, uma análise econômica em relação a este trabalho reprodutivo. Um levantamento elaborado em 2020 pela Lab Think Olga revelou que o trabalho de cuidado realizado pelas mulheres em todo o mundo representa uma economia 24 vezes maior que a do Vale do Silício. E acrescenta que, no contexto brasileiro, esse trabalho corresponde a 11% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, “mais do que qualquer indústria, e mais do que o dobro que o setor agropecuário produz. Apenas 4 economias do mundo ficariam acima deste valor”.
Dados do IPEA mostram como as mulheres dedicam mais que o dobro do número de horas semanais ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerado em comparação com os homens, carga ainda mais elevada entre as mulheres mais pobres e entre as mulheres negras (fonte: PNAD contínua 2021, elaborado pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome/ 2023). Essa carga impede muitas mulheres de ter um emprego em função das responsabilidades e cuidados com pessoas e afazeres domésticos.
Portanto, não há como pensar o trabalho do cuidado descolado da questão de gênero, pois são as mulheres que realizam a maior parte desses cuidados, e realizam esse trabalho não por escolha, vocação, natureza, mas por uma imposição, cuja naturalização revela a perversidade da exploração. Neste sentido, o debate amplia a concepção de trabalho e tem estreita relação com a crítica ao sistema em que vivemos.
Aliás, é justamente com o capitalismo que as diferenças se tornam desigualdades e se configura um sistema de opressão sem precedentes, momento em que há uma profunda desvalorização e perda de autonomia do trabalho realizado pelas mulheres, como destacou Silvia Federici (2017). O trabalho doméstico não remunerado, com a redefinição das tarefas produtivas e reprodutivas, passa a desempenhar uma função na organização da sociedade capitalista na medida em que produz a força de trabalho, trabalho que cria mais-valor (cria a mercadoria força de trabalho, que é vendida, criando uma relação entre trabalho reprodutivo e capital).
Mas há outras perspectivas críticas sobre este processo de debate em torno da reprodução social e do trabalho reprodutivo não remunerado, como o debate proposto por Ferguson (2019), que considera este trabalho não remunerado como essencial para a produção do capitalismo, mas que está fora do circuito de produção de mercadoria. Entender esses debates sobre trabalho doméstico, como destaca Susan Ferguson, implica diferentes estratégias de luta e construção de políticas. Por exemplo: criar estratégias de inclusão produtiva neste sistema ou lutar por uma vida não moldada pelas relações sociais de produção capitalista, como destacam as estudiosas. De toda forma, fica claro que a emancipação da opressão não é possível nos marcos de uma sociedade capitalista, como destacam as ativistas e pesquisadoras. Dentro do paradigma do cuidado, é preciso uma nova organização econômica.
O tema é central e urgente, especialmente em uma sociedade que já vivencia um processo de transformações demográficas com o envelhecimento da população, em que cada vez mais pessoas precisarão de necessidades de cuidado. Não é possível pensar em justiça, desenvolvimento e construção de uma nova organização social sem discutir as formas discriminatórias, violentas e opressivas que o debate da economia do cuidado suscita. As saídas que encontraremos para o problema representarão um avanço crucial na garantia de direitos, permitindo que o cuidado aconteça sem que as mulheres tenham que fazer sacrifícios para essa atividade sem garantia de renda, aposentadoria e autonomia.
O debate sobre a economia do cuidado coloca no centro a questão da baixa remuneração e não remuneração do trabalho, o direito ao cuidado e trabalho digno desses trabalhadores e trabalhadoras, a sobrecarga do trabalho e problemas de saúde gerados em razão dessa carga, mas também sobre o desenvolvimento de políticas públicas de cuidado: transferências de renda, oferta de creches, ampliação de serviços de cuidado (centros e domiciliares), serviços de assistência relacionados ao cuidado, política de recursos, regulação e fiscalização, reconhecimento previdenciário, licenças, jornada de trabalho e legislação trabalhista adequada, a possibilidade de organização e participação destes trabalhadores, além da inclusão do trabalho do cuidado na economia nacional. Como referência para essa construção, temos inúmeras experiências de luta no mundo e de criação de políticas públicas de cuidado ao longo da história, como na Rússia Soviética (Goldman, 2014).
Portanto, refletir sobre o trabalho do cuidado envolve pensar sobre questões sistêmicas e na construção de nossas estratégias para a luta que vamos travar pela emancipação humana.
(*) Ariana C. Rumstain é socióloga, servidora pública da Prefeitura de São Bernardo do Campo (SP), diretora de formação do Sindserv-SBC e pesquisadora independente na área de Antropologia Social.
Bibliografia
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo, Boitempo, 2016.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpos e Acumulação Primitiva, Tradução: Coletivo Sycorax . São Paulo, Elefante Editora, 2017.
FERGUSON, Susan. Women and Work: Feminism, Labour, and Social Reproduction. London: Pluto Press, 2019.
GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e Revolução. São Paulo, Boitempo, 2014
GONÇALVES, Fabiana & CALIXTO, “Feminismo da classe trabalhadora e Economia do Cuidado: contribuições para a Agenda Feminista da Articulação de Esquerda” IN: Revista Esquerda Petista 15, setembro de 2023. 46-51pp.
HIRATA, Helena. O CUIDADO: teorias e práticas. São Paulo, Boitempo, 2022.
Outras Referências
Mundo do trabalho das mulheres: ampliar direitos e promover a igualdade/ Organizado por Eugenia Troncoso Leone, José Dari Krein, Marilane Oliveira Teixeira – São Paulo: Secretaria de Políticas do Trabalho e Autonomia Econômica das Mulheres / Campinas, SP: Unicamp. IE. Cesit, jun. 2017.
https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/estudos-e-notas-tecnicas/fiquePorDentro/temas/economia-do-cuidado-set-2017, acessado em 28.set.2023.
https://lab.thinkolga.com/economia-do-cuidado/ , acessado em 28.set.2023.
https://sur.conectas.org/wp-content/uploads/2017/02/5-sur-24-por-helena-hirata.pdf , acessado em 28.set.2023.
Construindo a Política Nacional de Cuidados do Brasil. Secretária Nacional de Cuidados e Família Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome – 31/05/2023. PDF.