Indústria, por que te quero tanto?

Por Valter Pomar (*)

O que teria acontecido caso o cavernícola saísse vencedor das eleições presidenciais de 2022? Entre outras desgraças, o Brasil seguiria sendo uma economia primário-exportadora, dominada pelo rentismo financeiro, marcada por brutal desigualdade social e por uma “democracia” atravessada pela crescente presença da tutela militar, do paramilitarismo e da extrema-direita.

A vitória de Lula tirou Bolsonaro da presidência. Mas a dinâmica primário-exportadora e rentista, a desigualdade social, a tutela militar, a extrema-direita e o paramilitarismo seguem vivas e atuantes.

Logo, não basta ganhar eleições, é preciso superar os problemas estruturais. Sob pena das coisas não mudarem e, inclusive, sob risco de – não importa como, quando e com que protagonistas – a extrema-direita voltar à presidência. Pois afinal, as dinâmicas estruturais do país provocam, periodicamente, ciclos golpistas.

Seremos capazes de alterar as referidas dinâmicas estruturais?

O que podemos dizer com certeza é que, de 2003 a 2016 os governos Lula e Dilma conseguiram melhorar a vida do povo – em relação ao status quo ante – mas não conseguiram reverter as dinâmicas estruturais do Brasil.

Ou seja: não houve alteração qualitativa no peso e no papel da indústria, do agronegócio, do capital financeiro, do capital transnacional e do Estado; não houve alteração qualitativa no funcionamento e composição do Congresso Nacional; não houve alteração qualitativa na dinâmica das forças armadas e das polícias, no oligopólio da comunicação etc.

Embora tenham ocorrido mudanças efetivas e benéficas a grandes parcelas do povo, os governos Lula e Dilma não conseguiram reverter a dinâmica geral da sociedade brasileira. Melhor dizendo: nem mesmo tentamos fazer as famosas “reformas estruturais”. No fundo, nos limitamos a implementar meritórias e importantes políticas públicas. Políticas estas que os governos golpista e cavernícola rapidamente desmontaram.

O governo Lula iniciado em 2023 será capaz de, além de implementar políticas públicas que melhorem imediatamente a vida do povo, dar início a reformas que alterem as dinâmicas estruturais do país, ou seja, que afetem a distribuição de propriedade, riqueza e poder?

A questão central a ser resolvida, insuficiente em si mesma, mas sem a qual as demais não terão solução a contento, é a reindustrialização de novo tipo.

Em 1980, nosso país estava a caminho para converter-se numa grande potência industrial. Então, tivemos a crise da dívida externa, a transição conservadora e os governos dos dois fernandos neoliberais. Como resultado, o Brasil veio desde então se desindustrializando fortemente.

Os governos Lula e Dilma manifestaram a disposição de colocar um freio e até de tentar reverter o processo de desindustrialização. Mas aí tivemos o ciclo golpista iniciado no impeachment e continuado com Temer e Bolsonaro.

De quase potência industrial, viramos potência agroexportadora e minério-exportadora, além de prosseguirmos sendo paraíso do capital financeiro.

Essa “grande transição” – uma ponte para o passado que nos levou a situação similar, mas pior, do que a vivida na década de 1920 – afetou tudo: mudou a composição da classe dominante, mudou a composição e as condições de vida da classe trabalhadora, mudou o ambiente político e cultural no Brasil.

Foi nesse ambiente que os neoliberais vieram e seguem atuando e chantageando. Foi em reação a esse ambiente que a esquerda encabeçada pelo PT ganhou quatro eleições presidenciais de 2002 a 2014 e agora ganhou novamente. Foi também nesse ambiente que os neofascistas vieram e ainda não foram embora.

Por tudo isso e muito mais, o principal desafio estratégico do governo Lula é servir de ponto de partida para uma nova “grande transição”, desta vez, de subpotência agro-minério-exportadora & rentista para uma verdadeira potência industrial de novo tipo. O que inclui capacidade científica, tecnológica e industrial de novo tipo, ou seja, com uma relação totalmente diferente com a classe trabalhadora e com o meio ambiente.

A situação mundial, de profunda crise, é propícia a isto. Não é por acaso, aliás, que nosso ciclo anterior de industrialização teve início na sequência da crise de 1929 e em pleno entreguerras.

Quase cem anos depois, o terceiro mandato de Lula teve início em meio a uma situação mundial marcada pelos desdobramentos da crise de 2008, pela pandemia da Covid 19, pelo agravamento da situação ambiental, pela ascensão da República Popular da China, pela guerra da Rússia contra a aliança Ucrânia/OTAN e, destacadamente, pela tentativa que os Estados Unidos fazem de reverter seu declínio enquanto potência hegemônica.

Tudo isto abre uma janela para que mudemos nosso lugar no mundo. Mas para isso é preciso, entre outras coisas, colocar o tema da reindustrialização no centro de todas as nossas preocupações.

Adotar como objetivo central a reindustrialização nacional tem implicações em nossa política externa. Entre elas, estarmos preparados para enfrentar a reação dos Estados Unidos e não se deixar enganar pela Europa.

A Europa demonstrou, na segunda onda da crise de 2008 e agora na Guerra da Ucrânia, sua submissão aos interesses estratégicos dos Estados Unidos. Por outro lado, na relação econômica com o Brasil e com a região, a União Europeia insiste em firmar acordos que, se aceitos, vão reforçar a nossa condição primário-exportadora.

Quanto aos Estados Unidos, estes já demonstraram sua disposição de fazer de tudo – sabotagem, golpes, guerras, cooptação – para prejudicar a integração regional latino-americana e caribenha, parte essencial de nosso projeto de reindustrialização. Por outro lado, nossa reindustrialização necessita dos investimentos chineses e os EUA já anunciaram que a China é inimiga estratégica.

Portanto, fazer do Brasil um polo mundial industrial, científico e tecnológico entra em choque com as ambições e interesses dos ianques e europeus. Valendo dizer que os Estados Unidos não são uma nação qualquer, mas sim uma potência imperialista que precisa ser totalmente desbancada da posição hegemônica que ainda ocupa.

De quem depende o sucesso da reindustrialização – ou, como preferem alguns, da neoindustrialização? A classe dominante, o empresariado capitalista, já demonstrou inúmeras vezes que está dominando pelos rentistas, pela turma do agro e pelas potências estrangeiras. Se depender dos capitalistas brasileiros, nosso país continuará ladeira abaixo.

A reindustrialização do Brasil depende essencialmente da classe trabalhadora. Por isso o movimento sindical, em particular a CUT, tem que colocar o tema no centro da sua agenda. E o ponto de partida é começar a reforma agrária, retomar totalmente a Petrobrás e a Eletrobrás, colocar o setor financeiro sob controle do Estado e ampliar enormemente os investimentos públicos.

(*) Valter Pomar é membro do DN do PT e tesoureiro da Associação de Docentes da Universidade Federal do ABC. Este texto é uma versão modificada de artigo publicado na coletânea Brasil sob escombros: desafios do governo Lula para reconstruir o país, da Editora Boitempo.

 

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