Por Fausto Antonio (*)
Epigrafia dos retornos metatemáticos:
“A crentinha fresca, na opinião da mãe, foi atacada pelo sublime; o intangível sol azul da manhã de carnaval” (Fragmento da crônica “Manhã de Carnaval”, de Fausto Antonio, publicada na Página 13, 20 de dez. de 2022 ).
Além do retorno metatemático fixado pela crônica, há os pressupostos para o estudo da poesia e do poema como ressonância ancestral. Entram, na composição metatemática, os três pontos fixados por madame HPB na Doutrina Secreta. Numa síntese, a compilação nos ensina que há “a unidade fundamental da existência, a natureza cíclica de tudo e o caminhar sem fim das mônadas”.
A propósito dos pontos, eles são chaves presentes na ancestralidade compreendida como energia, cadeias e redes de nascimento, vida e mortes, restituição; trocas equilibrantes de energias e, portanto, política e filosofia. Política é referência ao modo de produção ancestral e, por causa e efeito simultaneamente, da existência sistematizada, às avessas do modo de produção capitalista e do acúmulo, pelo equilíbrio das trocas; o que deriva para o modo de produção restitutivo e/ou ancestral.
No que concerne ao tema, a primeira pergunta pode ser feita assim: o que significa a ancestralidade como filosofia e política? A questão nuclear passa pelo entendimento da ancestralidade não antropomórfica. O ancestral tem uma relação profunda com o gênero humano, mas não se limita ao grupo étnico-racial restrito no sentido histórico e igualmente teosófico. A despeito de o ancestral ser a própria eternidade, as relações são e estão encruzilhadas numa rede de trocas de veículos ou raças do ponto de vista teosófico, o que inclui as raças categorizadas historicamente. Na outra porção do ancestral, existe a unidade com a energia, a própria eternidade da vida, que engloba, como ancestral, tudo que há.
No sistema cultural negro-africano e diaspórico, temos exemplos bem pedadógicos a respeito. Os Dogons, grupo étnico nativo do Mali e habitante também de Burkina Faso, dizem que o ancestral é uma vibração. Na mesma linha de concordância, o sistema nagô e por igual natureza o sistema cultural banto concebem o ancestral, no espaço não localizado, como energia vital. No que concerne ao valor semiológico ou à fatura filosófica, a ancestralidade é categoria filosófica ou objeto da filosofia da ancestalidade como filosofia africana.
A rigor, a base ou núcleo ancestral se historiciza no sistema cultural negro-africano que, assim, é o objeto da filosofia da ancestralidade como filosofia africana. Em outros termos, o sistema cultural negro-africano é concebido como categoria filosófica. Do mesmo modo, o sistema cultural negro-africano, a partir de um motor exúsico, é categoria filosófica e modo de produção da existência restitutivo. Podemos afirmar que o quê empiriciza a filosofia da ancestralidade, como sistemas de ideias, teorias, conceitos e ações, é o milenar, complexo e sofisticado sistema cultural negro-africano e diaspórico. Na mesma lei de unicidade, o gênero humano historiciza a ancestralidade concebida como vibração cósmica; isto e, empiriciza a fundamental correspondência entre o macro e o micro universos.” ( Fausto Antonio, texto inédito)
Massas festivas sublimes, no carnaval de 2022, trouxeram de modo bem palpável, nos cortejos de rua, o tangível, epifânico e inesperado sol azul. No mesmo mês, tivemos outras massas em ação. Sim, massas do além e do mistério, é um outro fenômeno, projetaram e materializaram e/ou carnavalizaram intervenções extrafísicas no poema.
Enfatizamos que como veículo o poema torna a poesia carne; daí a alegoria carnavalizante. A poesia obra do sublime, nesta precipitação no poema, revelou que há sete veículos ou vestes para o seu ingresso no ritmo espacializado, que é a forma; a rigor, o poema na sua concretude.
No mundo das formas não existem seres intangíveis? Eles existem, mas ocupam os veículos ou corpos. É por tal ordem que a poesia, linguagem e/ou sopro, ocupa ou se manifesta pela espacialidade do poema. A linha e a agulha, é um paralelo para o entendimento da poesia e do poema, passam e são passadas pelo furo, metáfora do sublime. A agulha passa pelo pano ou pela costura do pano e no pano; há na circulação a passagem pelos furos. A linha passa pelo furo da agulha. O furo deriva para um portal, que revela, além da passagem, outros mundos.
A poesia é, com a devida margem imperfeita de comparação, aquilo que é tessiturado pelas palavras, que se dão nesta tessitura como poema. A linha é veículo de precipitações ou de inspirações. A agulha permite a relação. A linha e a agulha são veículos tangíveis, que realizam os sopros do intangível. A agulha é, como nexo comparativo, a palavra em estado denotativo; a linha, na tessitura inspirada pelo trânsito de tecer ou criar, é a palavra conotativa. Com a devida vênia aos seres intangíveis, eles são, no corpo físico, uma vibração.
Na criação e na encruzilhada das sete vestes, os intangíveis são materialidades não em si, mas nas operações que realizam no plano físico. Na criação artística, as manifestações chamadas de intangíveis são provavelmente oriundas dessa energia ou vibração inspiradora. Sem o entendimento dos veículos, que constituem a poesia e o poema, o perigo é reduzir o intangível a algo impossível de ser alcançado. Dentro desses limites, os intangíveis foram criados aqui mesmo; eles são criações do sistema literário. Segundo seus criadores, o sublime é intangível.
Depois de criado, a razão de Deus e o Diabo, o sublime intangível é o que somos ou o que queremos, diria o gênio e bruxo Machado de Assis. Pois bem, as artes, excetuam-se as criações de baixa voltagem estética, são sublimes e tangíveis; as obras de Jean Michel Basquiat, Beethoven, Machado de Assis, Arthur Bispo do Rosário e Rilke dizem que sim. Genialmente, às avessas das sublimações, Mestre Pastinha diz, no que concerne à capoeira, que o sublime é tangível: “é tudo aquilo que a boca come”.
A Boca é metonímia do suiblime, que tangível ou intangível; tanto faz, é e será sempre vivido e experimentado. No entanto, o sublime e o intangivel entraram na história à moda dos terraplanistas. Sim, entraram por achatamento ou por esmagamento brutal da esfera. Trata-se, no tema em pauta, da ficcionalização do tangível que, de um lado, vê; é o caso dos terraplanistas, a terra como intangível e, de outro, se acham, os terraplanistas e a ficcionalização, sublimes.
Eis a razão pela qual a sublimada pessoa, diante do objeto estético; o poema, diz categoricamente que a poesia é intangível. O enunciado quer dizer que o veículo da poesia, o sublime, é intangível? Certamente é uma vibração! Assim adentramos nas proposições afirmativas Às vezes, no entanto, o poema é uma poça de sangue. O sublime é sublime pela aparente imaterialidade ou o é pelo valor estético? O intangível não é sinônimo de sublime. O sublime é, em estado elevado de consciência , tomado como veículo , decerto não intangível à realidade. O poema é veículo da poesia que, por sua vez, o é do sublime. Estamos diante de um objeto híbrido que é veículo do sublime.
O sublime, então, é veículo do quê? Podemos inferir, em parte, que o sublime é igualmente veículo do intangível ? Uma radiografia do poema e nele a poesia, que é veículo do sublime, revela que, para que as ressonâncias fossem feitas nos respectivos corpos ou veículos, o sublime teria que ter “caído ” pelo menos sete vezes. Os dados materiais no poema e imateriais na poesia, concordes com o sete cabalístico, explicam o porquê do em parte intangível . O objeto às vezes indeterminado ou não indentificado, o sublime , que ocupa. no corpo espacializado, a forma ou o objeto estético poemático, é o resultado final de outros seis corpos precipitados ou ressonados.
Poema e poesia são manifestações distintas, no entanto formam, na unidade fundamental de toda existência, um corpo indissociável. O poema espacializa outros veículos estéticos feitos com as essências e potências de outros veículos ou corpos. O poema deixa na estrutura de superfície marcas físicas e, na estrutura profunda, registros que estão além do físico.
Realmente um poema, feito com o encruzilhamento harmonioso de outros corpos, é um objeto estético híbrido. Não é por outra razão, mas tão-somente pela sua natureza veicular complexa, que o poema, como sinônimo de poesia, é categorizado como manifestação do sublime e do intangível . A poesia, no seu estado ou estágio de inspiração ressonada, é corpo que abriga o sublime. A despeito da unidade fundamental de todos os veículos ou corpos ressonados ou precipitados no poema, estamos diante do entrelaçamento de estados de consciência estética complementares, no entanto distintos.
Há no poema os indícios, que exigem o desvelamento dessa teia de precipitações complementares. O poema pode ter sido abduzido pelo “serzinho” que pilotava o misterioso veiculo da poesia, que era pilotada pelo sublime. Precipitada pela poesia, como Eva das costelas de Adão, as chamas, que intensificam-se no trânsito pela poesia e pelo poema, são identificadas nos traços e nas marcas da centelha do sublime no objeto estético, o poema. Quais são os sete corpos do poema?
A poesia e o poema, que para alguns são uma coisa só, recusam simplificações. A poesia só se reconhece no poema quando ele é ritmo espacializado. O sublime, por sua vez, diz que o intangível é meio para atrair os artistas da palavra e as recepções ou as coautorias para a estrutura profunda do objeto estético e/ou do poema. Tudo, cara e caro leitor, a serviço do sublime e na contramão do traçado teórico que diz que o sublime é intangível. O poema é um trampolim para o poesia; a poesia é um trampolim para o sublime. Ele, o sublime, é intangível na origem ou fonte, mas no poema, tal como ocorre com a poesia, é vibração rítmica espacializada.
(*) Fausto Antonio é escritor, poeta, dramaturgo e professor da Unilab- Bahia
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