Algo de errado no front?

Pedro Pomar

O general de quatro estrelas reformado Sérgio Westphalen Etchegoyen, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), a quem está subordinada a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), sucessora do malfadado SNI, aparece como um dos homens-fortes do governo e um dos principais, se não o principal, mentores da intervenção no RJ
Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

A intervenção federal no Rio de Janeiro, decretada pelo golpista Temer com fins escusos, voltou a colocar as Forças Armadas, e particularmente o Exército, sob os holofotes da mídia e da sociedade. Logo se constatou que não houve planejamento algum que desse suporte organizado à intervenção, nem da parte do governo federal, nem da parte do Comando Militar do Leste, encarregado de assumir o controle da “segurança pública”. Porém, a intervenção veio acompanhada de certa militarização do governo golpista, como noticiado pela própria mídia.

Em primeiro lugar, assumiu posição destacada no governo o general de quatro estrelas reformado Sérgio Westphalen Etchegoyen, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), a quem está subordinada a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), sucessora do malfadado SNI. Etchegoyen aparece como um dos homens-fortes do governo e um dos principais, se não o principal, mentores da intervenção no RJ.
O ministro movimenta-se com desenvoltura. No dia 22/3, por exemplo, recebeu no GSI três contra-almirantes recém-promovidos e dez capitães-de-mar-e-guerra prestes a receber a promoção a contra-almirante (posto que equivale ao de general de brigada). “Ao parabenizar os almirantes pela promoção ao círculo de Oficiais Generais, o ministro Etchegoyen registrou a importância da contribuição dos militares para o País e ressaltou o espírito de abnegação dos homens e mulheres que compõem as nossas Forças Armadas”, registrou o site do GSI, explicando que o evento “fez parte do estágio para contra-almirantes recém-promovidos”.

No dia 5/2, menos de duas semanas antes do anúncio da intervenção no RJ (em decreto que conta com a sua assinatura), o general irrompeu em seara exótica ao defender, em vídeo divulgado pelo Palácio do Planalto, a chamada reforma da Previdência, tema que foge completamente às atribuições do GSI. Sem a reforma, advertiu Etchegoyen, o País pode enfrentar novas crises geradas por problemas nas contas públicas. “É uma batalha [em] que se exige coragem”, declarou. “Não permita que o discurso de má-fé desconsidere você e sua família. Não acreditem apenas no discurso que busca o seu voto para a próxima eleição”.

Recorde-se que o GSI havia sido extinto pela presidenta Dilma Rousseff. Foi recriado por Temer, que colocou à sua frente Etchegoyen, um oficial “linha dura”, filho e sobrinho de militares que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) designou no seu relatório final como torturadores a serviço da Ditadura Militar (1964-1985). Quando ainda estava na ativa, em 2014, Etchegoyen atacou a CNV por esse fato e anunciou que iria processá-la. Não foi punido.

Seu pai, general Leo Etchegoyen, chefiou o Estado-Maior do II Exército de agosto de 1979 a julho de 1981, período em que o DOI-CODI a ele subordinado sequestrou sindicalistas e advogados defensores de direitos humanos, como José Carlos Dias e Dalmo Dallari. Seu tio, coronel Cyro Etchegoyen, foi um dos principais responsáveis pela “Casa da Morte” de Petrópolis, onde vários militantes de esquerda foram executados. Apesar disso, o general Sérgio considerou o trabalho da CNV “leviano” e “patético”.

Mais generais

O Ministério da Defesa, a quem estão formalmente subordinados os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, foi confiado a outro general da reserva: Joaquim Silva e Luna, ex-chefe do Estado Maior do Exército (e desde 2014, no governo de Dilma, secretário geral de Pessoal, Ensino, Saúde e Desporto da pasta da Defesa). Assim, Raul Jungmann, que era o titular da pasta, foi deslocado para o recém criado Ministério da Segurança Pública (que, ao que tudo indica, terá funções decorativas).

Também são generais da reserva o chefe de gabinete da Casa Civil, Roberto Ramos (no cargo desde julho de 2016); o secretário nacional de Segurança Pública do antigo Ministério da Justiça, Carlos Santa Cruz (desde abril de 2017); e o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Franklimberg Freitas, desde maio de 2017. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) repudiou a nomeação de Franklimberg, indicado para o cargo pelo Partido Social-Cristão (PSC), ligado a ruralistas e a evangélicos.

Quanto ao novo ministro da Defesa, a Folha de S. Paulo informou que o comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas, declarou sobre sua escolha que “foi unânime o entendimento das Forças”, dando a entender que a Marinha e a Aeronáutica deram aval à escolha de Luna (e, portanto, à escolha de um oficial-general do Exército e não de uma delas). Como nos velhos tempos: as Forças Armadas decidindo quem ocupa os cargos estratégicos.

Por algum tempo, o general Eduardo Villas Boas encantou um setor das esquerdas que apreciou suas declarações favoráveis à não intervenção das Forças Armadas em assuntos civis, ou seja: nos rumos do país. Porém, ao mesmo tempo, Villas Boas justificava a Ditadura Militar, afirmando que, à época, as instituições estavam em crise e precisavam ser “tuteladas”. Além disso, Villas Boas pressionou o governador Roberto Rollemberg, do Distrito Federal, para que o memorial em homenagem ao presidente João Goulart não saísse do papel, e conseguiu, em 2015. “É uma afronta ao Exército”, declarou o comandante sobre o projeto de autoria do mundialmente famoso arquiteto Oscar Niemeyer, antes que o subserviente Rollemberg anulasse a concessão do terreno, situado no Eixo Monumental, onde seria construído o memorial.

Por isso, em setembro de 2017, quando o general Antonio Mourão, seu colega do Alto Comando do Exército, declarou em reunião organizada pela Maçonaria que uma intervenção militar estava sendo preparada, e defendeu essa possibilidade, Villas Boas recusou-se a puni-lo e ainda o elogiou. Quando Mourão passou à reserva, no final de fevereiro de 2018, tratou de elogiar, no seu discurso de despedida, o falecido torturador coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (que comandou o DOI-CODI do II Exército), chamando-o de “herói”, e declarou-se eleitor do ex-capitão Jair Bolsonaro. Não obstante, o comandante do Exército voltou a elogiar publicamente Mourão, como exemplo de “camaradagem, disciplina intelectual e liderança”.

Revista Piauí

A mídia alternativa e a imprensa estrangeira têm contribuído para iluminar aspectos obscuros ou pouco conhecidos da questão militar. Em reportagem publicada na seção brasileira do jornal espanhol El País, a jornalista Flávia Marreiro registrou: “Após 46 anos, o general Antonio Hamilton Mourão passou à reserva do Exército nesta quarta-feira [28/2] como um símbolo de que o alto escalão do poder no Brasil tolera militares que não só resistem a reconhecer os crimes de ditadura que se encerrou em 1985 como se mostram dispostos a flertar publicamente com a ideia de que os quartéis devem intervir na vida política do país” (encurtador.com.br/dJSX1).

O jornal digital Nexo chamou atenção para aquele que pode ser o guru intelectual do general Villas Boas: o cientista político norte-americano Samuel Huntington, um ultraconservador professor de Harvard citado por Villas Boas em mensagem no Twitter. “A manifestação do general suscita a possibilidade de que as Forças Armadas usem de violência, mesmo contra um governo, para defender a sociedade, a partir de questionamentos que eram feitos pelo cientista político americano Samuel Huntington a respeito dos limites da obediência das Forças Armadas ao Estado”, escreveu o jornalista Paulo Flores. “Ele foi influente na Ditadura Militar brasileira, sobretudo no planejamento da transição para a democracia durante as décadas de 1970 e 1980” (goo.gl/QqxX7v).

Porém, foi uma reportagem da revista Piauí, de autoria do jornalista Fábio Victor, que trouxe impressionantes revelações sobre a ideologia dos generais brasileiros (encurtador.com.br/cluV2). O jornalista teve acesso ao comandante do Exército e a alguns outros altos oficiais que lhe assessoram. “Villas Bôas expunha os ressentimentos que a cúpula do Exército tem com o Partido dos Trabalhadores. O ponto mais sensível, que exaltou os outros presentes à sala em sintonia com o comandante, era um trecho de uma ‘resolução sobre conjuntura’ assinada pelo Diretório Nacional petista [DN-PT] em maio de 2016”, explicou.

A resolução fora publicada dias após o Senado autorizar a abertura do processo de impeachment de Dilma e determinar o seu afastamento da Presidência por 180 dias. Nela, o PT faz uma autocrítica na qual inclui, entre os erros cometidos, haver deixado de reformar o Estado brasileiro e democratizar as Forças Armadas, o que incluiria promover militares progressistas e alterar o currículo das escolas militares. “Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado, o que implicaria impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de verbas publicitárias para os monopólios da informação”, admitia na resolução o DN-PT, em raro momento de lucidez.

De acordo com o relato da Piauí, essa moderada análise dos gargalos estruturais do Estado nacional brasileiro bastou para despertar a irritação da equipe de Villas Boas, e do próprio comandante. Vale a pena reproduzir o trecho seguinte da matéria, ainda que relativamente longo:

“Estavam na mesa os generais Otávio Rêgo Barros, chefe do CCOMSEx, o Centro de Comunicação Social do Exército; Tomás Ribeiro Paiva, chefe de gabinete, e Ubiratan Poty, chefe do Centro de Inteligência do Exército, além dos coronéis Alberto Fonseca, assessor do gabinete do comandante responsável por análises de conjuntura, e Alcides de Faria Junior, chefe da Divisão de Relações com a Mídia do CCOMSEx. Foi a eles que Villas Bôas perguntou se deveria falar ‘em off ou em on’ naquele trecho da entrevista. Todos sugeriram que o comandante abordasse o assunto ‘em on’.” (Essa terminologia indica que os altos oficiais presentes decidiram assumir abertamente o que diriam a seguir, ao invés de optarem pelo anonimato.)

“‘Isso nos preocupa porque, se por um lado, nós somos instituições de Estado e não podemos participar da vida partidária, indica uma intenção de partidos interferirem no Exército’, iniciou o comandante. O general Tomás o seguiu: ‘Isso para mim foi o maior erro estratégico do PT, foi uma coisa burra’. ‘Essa é uma coisa que não é admitida pelas Forças Armadas, a intervenção em nosso processo educacional. Esquece’, emendou o coronel Fonseca. ‘Isso nos fere profundamente. Está na nossa essência, no nosso âmago’, concordou Villas Bôas”.

“No embalo, o grupo expressou insatisfação com a Comissão Nacional da Verdade, instalada no governo Dilma para apurar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. Os militares se queixam de que a comissão restringiu seu foco à ditadura de 1964 a 1985 e só investigou violações ‘de um lado’, o deles”.

Acerto da análise

Aí está. Em primeiro lugar, os generais não compreenderam, ou assim deram a entender, que a direção do PT se referia a medidas que deixara de implementar nos governos que elegeu (Lula e Dilma), e que portanto dispunham de poderes legais e de ampla legitimidade para propô-las ou implementá-las. Em segundo lugar, a reação dos militares terminou por demonstrar o acerto da análise do PT, na medida em que as escolas militares (“nosso processo educacional”, como resumiu o coronel Fonseca), especialmente as que formam os oficiais, são determinantes para a reprodução de uma ideologia conservadora e reacionária, não apenas anticomunista, mas antidemocrática.

Ao dizer que as Forças Armadas “não admitem” mudanças nas suas escolas, ainda que essas mudanças sejam provenientes de governantes eleitos democraticamente, esses altos oficiais (a começar pelo próprio comandante do Exército) evidenciam que não pretendem acatar a orientação do poder civil.

A “insatisfação” desses militares com a CNV e a queixa de que essa Comissão só investigou violações “de um lado” somente reforçam a profunda distância entre a visão de mundo de generais e coronéis, de um lado, e aquela amplamente defendida não apenas pela esquerda marxista ou “radical”, mas até por organizações moderadas como a Comissão de Direitos Humanos da ONU, ou a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), pertencente à Organização dos Estados Americanos.

Infelizmente, portanto, os generais de hoje (e a grande maioria do oficialato) pensam como os generais de ontem. São profundamente conservadores e avessos às práticas democráticas. Muitos continuam a endeusar a Ditadura Militar e seus agentes que, em nome do combate à “subversão”, sequestraram, torturaram, perseguiram e assassinaram opositores. Iludem-se, assim, os que acreditam na suposta “modernização” e “profissionalismo” das Forças Armadas.

É por essa razão, aliás, que os militares sabotaram as investigações da CNV; exigiram que eventuais crimes cometidos por militares contra civis sejam julgados apenas pela Justiça Militar (o que foi atendido pelo governo Temer em 2017); e querem carta branca para agir nas operações de “garantia da lei e da ordem” (GLO) e na intervenção no RJ, sem ter de prestar contas a uma nova CNV.

Pedro Pomar é jornalista e militante do PT.

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