Antecedentes, ruptura com a Articulação e o surgimento da Articulação de Esquerda

Página 13 começa a divulgar hoje uma série de artigos publicados na revista Esquerda Petista de número 15 que retratam a história da tendência petista em quatro grandes períodos, a saber: o surgimento da Articulação de Esquerda; o período de 1993 até 2002, de resistência ao neoliberalismo; o período de 2003-2016, em que fomos governo; e por fim o período do golpe de 2016 até de 2023. Também divulgaremos entrevistas com as companheiras Sônia Hipólito e Iriny Lopes sobre a trajetória da tendência, além de outros textos publicados na mesma edição da revista. Boa leitura!

A publicação “A Hora da Verdade e outros escritos” pode ser descarregada aqui

 

Por Leandro Eliel Pereira de Moraes (*)

O surgimento da Articulação de Esquerda, em 1993, pessoalmente, vivi como militante do movimento estudantil. Eram um jovem, com 20 anos de idade, no segundo ano do curso de Históri, na PUC Campinas, com atuação no Centro Acadêmico de Ciências Humanas e nas atividades do DCE, que foi conquistado pelos petistas numa disputa com o MR8, dois anos antes, em 1991. Na condição de militante petista “independente”, compreendendo superficialmente as disputas internas do PT, ainda é viva na memória o racha que houve no DCE, em 1993. Para compreender o que estava ocorrendo, não me lembro quem foi, mas tive a orientação de procurar o Arilson Favareto, hoje professor da UFABC, e o Juliano Maurício, hoje professor da UNESP, pois eram os principais expoentes daquela cisão na PUC Campinas. Hoje, ao que parece, ambos estão afastados da militância partidária. O surgimento da Articulação de Esquerda, para mim, apareceu dessa forma, o que me incentivou a buscar as causas daquelas divergências que vivíamos no movimento estudantil, a compreender um pouco mais sobre a história do PT e de suas tendências.

Para tratar dos antecedentes da Articulação de Esquerda, deve-se levar em consideração, como ponto de partida, a fundação do PT, em 1980, resultado da confluência dos sindicalistas – o “novo sindicalismo”, especialmente os metalúrgicos, bancários e petroleiros; de militantes de organizações de esquerda atuantes na oposição contra a ditadura (alguns entraram em caráter individual no PT, outros entraram por decisão de suas respectivas organizações); lideranças populares formadas pelas pastorais e comunidades da Igreja Católica, especialmente do setor progressista; parlamentares e lideranças atuantes no Partido do Movimento Democrático Brasileiro, o PMDB (durante muitos anos, o único partido de oposição legalizado no país).

Desde o início, o PT abrigou diferentes correntes de opinião, geralmente denominadas de tendências. A primeira tentativa de disciplinar a existência de tendências no interior do Partido ocorreu no 5º Encontro Nacional do PT, em 1987. A segunda tentativa ocorreu no Primeiro Congresso do PT, em 1991.

Uma compreensão do papel jogado pelas tendências no interior do PT deve levar em conta pelo menos duas variáveis: as posições políticas defendidas por estes grupos e a atitude geral que adotavam frente ao Partido.

De 1983 a 1993, por exemplo, existia uma tendência hegemônica e majoritária em âmbito nacional: a Articulação, cujas posições se refletiam nas resoluções partidárias.

Competindo com a Articulação, havia algumas lideranças e agrupamentos informais com posições mais moderadas (exemplo disso são os parlamentares que defenderam votar em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral). E havia, também, lideranças e agrupamentos com posições mais radicalizadas.

A maioria destes agrupamentos tivera origem anterior ou exterior ao PT. É o caso da Democracia Socialista (Organização Revolucionária Marxista/Democracia Socialista), do Partido Revolucionário Comunista (PRC), do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, da Organização Socialista Internacionalista (O Trabalho), da Ala Vermelha, da Convergência Socialista, entre outros.

Entre 1991 e 1995, em decorrência dos acontecimentos e debates descritos, ocorrem profundas alterações na vida interna do PT. Em primeiro lugar, todas as tendências passam a se considerar como “tendências internas” de um “partido estratégico”. Em segundo lugar, a Convergência Socialista e outros grupos saem do PT, criando o PSTU. Em terceiro lugar, a tendência majoritária passa por um processo de cisão, dando origem à Articulação Unidade na Luta e à Articulação de Esquerda. Em quarto lugar, lideranças e tendências situadas à esquerda e à direita da Articulação, invertem seus papéis (é o caso de Plínio de Arruda Sampaio, líder moderado nos anos 1980 e líder radical nos anos 1990; é o caso, também, de José Genoíno, que faz o percurso inverso).

O surgimento da Articulação de Esquerda foi fruto de um processo de divergências no interior da Articulação desde as eleições de 1989, ou, sendo mais preciso, do balanço daquela derrota. Nesse debate, um setor defendia que nossa derrota foi fruto do radicalismo da campanha e do programa, que afastou setores médios, que deveríamos ampliar o diálogo com setores ao centro, flexibilizar nosso programa político e eleitoral, adotar uma postura mais pragmática, adotar uma moderação política. Outros setores defendiam que a quase vitória de Lula nas eleições de 1989 foi fruto de sua nitidez política, de seu radicalismo, que os processos eleitorais eram parte de uma luta pela transformação social, pela construção de uma sociedade socialista, portanto, a defesa de um partido radical era necessário para enfrentar as elites que sempre produziram transições conservadoras.

Essas divergências se arrastaram até o início de 1993. No dia 4 de fevereiro, o texto Manifesto aos Petistas (a hora da verdade) foi circulado, e marca o surgimento da Articulação de Esquerda, formalizada no Seminário Nacional, realizado nos dias 18 e 19 de setembro, em 1993. Esse texto ficou conhecimento também como o “Manifesto hora da verdade”, assim como os seus signatários foram tratados como HV, nesse momento inicial. No início do texto há um alerta:

“É inegável que convivemos com o risco, diante do qual sucumbiram inúmeros partidos de origem operária e popular, de nos convertermos num partido da ordem. Em alguns momentos parecem estar esmaecendo os traços que nos distinguiram dos partidos do sistema, como na campanha das diretas, no episódio do Colégio Eleitoral, na recusa aos sucessivos pactos das elites: a contingência de estabelecer alianças, em torno de programas ou de propostas pontuais, transforma-se em objetivo a qualquer custo; a interlocução necessária com a sociedade cede frequentemente à tentação do senso comum, ao nadar-a-favor-da-corrente, num processo de hegemonia às avessas em que o discurso dominante nos iguala, tornando-nos, portanto, mais palatáveis”. (POMAR, 2022, p. 17).

O Manifesto alertava sobre o processo de moderação que a Articulação (Articulação Unidade na Luta, após a cisão) defendia, que descaracterizava o PT como um partido de combate ao sistema, burocratizando-o, afastando sua militância e que enfraquecia sua democracia interna. O que estava em curso era o abandono da estratégia democrático e popular e a adoção de uma estratégia de centro-esquerda, a substituição da disputa pelo poder por uma disputa apenas pelo governo. O documento também críticava a posição ambígua do PT em relação ao governo Itamar, que se transformou numa colaboração disfarçada.

Os rumos do PT pareciam caminhar para um processo de conciliação de classes, criticado pelo Manifesto nos seguintes termos:

“Historicamente violentas e ex¬cludentes, as classes dominantes brasileiras resistem secularmente a transformações estruturais. As mudanças que se impuseram foram conquistadas a ferro e fogo, frequentemente após as elites terem infligido derrotas aos “de baixo”. Veja-se o exemplo da Abolição da Escravatura e das leis trabalhistas de Getúlio, para ficar em apenas dois casos. Nada indica que este comportamento tenha mudado. Portanto, é ilusório sonhar com uma sociedade de consensos, sem disputas, um capitalismo sem conflitos sociais, bem geren¬ciado por governos de coalizão, em que acordos setoriais e ações parlamentares pluripartidárias ditem o ritmo, a forma e o conteúdo das reformas. Não é função do PT agradar as elites: nossa aspiração é estar ao lado das maiorias, dos trabalhadores, dos deserdados, contra os de cima, contra os poderosos, os exploradores”. (POMAR, 2022, p.19).

Os signatários da Articulação de Esquerda defendiam que a construção de uma sociedade socialista seria obra de milhões de pessoas, num processo de acúmulo de forças, de conquistas e lutas e de ruptura com o atual modelo de desenvolvimento capitalista. O texto dialogava com as posições do PT diante do governo Itamar e de sua abdicação de enfrentá-lo com radicalidade, diante do avanço da burocratização partidária, do afastamento das lutas das classes trabalhadoras. O Manifesto conclui com a defesa da construção de um programa de governo para 1994 que recupere a estratégia de caráter democrático popular, apontando a necessidade de reformas estruturais articuladas com o socialismo.

No 8º Encontro Nacional do PT, em agosto de 1993, os signatários do Manifesto “A hora da verdade” integraram a chapa “Opção de Esquerda”, que obteve 36,48% dos votos e, junto com a chapa “Na luta PT”, que obteve 19,11%, conquistaram maioria na Direção Nacional do PT. A cisão da AE permitiu que os setores mais à esquerda conquistassem 56% do novo Diretório Nacional. Logo após, no Seminário da AE, foi produzido um balanço desse Encontro, que está no texto “O melhor está por vir”, cujas expectativas apontavam para vários desafios.

“A nova direção nacional do PT tem sob sua responsabilidade conduzir o partido nas disputas deste e do próximo ano, dirigir a campanha Lula 94 e enfrentar o quadro pós-eleitoral, que será, em qualquer caso, extremamente complexo. O sucesso no cumprimento destas tarefas dependerá de uma série de fatores, entre os quais destacam-se: a reorganização partidária e a reconstrução de nossa capacidade dirigente; um salto de qualidade nos movimentos sociais; a sincronia entre nossa tática política e a ação das prefeituras e bancadas; um programa de governo, uma política de alianças e uma linha de campanha à altura dos desafios nacionais; e uma postura mais ofensiva e socialista na luta político-ideológica”.

Desse ponto de vista, o 8o Encontro Nacional foi extremamente positivo, na medida que aprovou resoluções e elegeu uma direção comprometidas com o equacionamento, pela esquerda, de cada um destes elementos. Entretanto, o 8o Encontro deve ser considerado como um primeiro passo de um processo de resgate dos princípios partidários, que está longe de se concluir.

O texto apontava para a importante tarefa de transformar as posições à esquerda em hegemônicas no PT num quadro de enormes dificuldades: maioria das direções estaduais dirigidas por posições moderadas, com enorme influência sobre a militância petista, mas que perdeu força a medida em que não soube responder com posturas mais radicais diante da conjuntura. Os desafios para consolidar essa nova hegemonia passavam por (1) consolidar um núcleo dirigente no PT a partir da chapa Opção de Esquerda, Na luta PT e aliados, (2) pela ampliação da elaboração estratégica, envolvendo o conjunto da militância petista, (3) enfrentar os enormes problemas operacionais e políticos decorrentes de centros autônomos de poder em detrimento das instâncias e (4) lidar com a grande visibilidade institucional e a experiência dos expoentes dos setores moderados, que foram derrotados pelo giro à direita.

O surgimento da Articulação de Esquerda impediu que a Articulação e o Projeto para o Brasil (corrente ainda mais moderada e que propôs o abandono da perspectiva socialista para o PT) se aliassem em posições ainda mais recuadas e a tentativa de unidade entre a Articulação Unidade na Luta e a AE, o que colocaria em segundo plano as divergências existentes na velha Articulação, que foi buscada por setores da Unidade na Luta que afirmavam a inexistência de diferenças políticas entre as duas correntes.

Além dessas divergências com a Unidade da Luta com o Projeto para o Brasil, havia também um desafio interno.

“É evidente que a própria Articulação/Hora da Verdade possui diferenças políticas internas, expressas, por exemplo, no timing com que cada setor se integrou ao nosso movimento, na maior ou menor tolerância ante a Unidade na Luta e Na Luta PT. Até por isso, a nossa consolidação como tendência supõe um debate político sobre as propostas para o próximo Encontro Nacional etc. Será o grau de unidade política em relação às tarefas futuras do Partido que determinará o grau de organicidade que poderemos assumir.

De toda forma, devemos evitar a inorganicidade e a falta de solidariedade que marcaram a experiência da Articulação, especialmente em sua última fase. Importante também é entender que a nova fase da vida interna impõe a construção de campos políticos, mais do que tendências no sentido estrito da palavra. Até porque não há terceira via: ou bem a Opção de Esquerda materializa as aspirações que nos possibilitaram vencer o 8o Encontro, ou será total o nosso descrédito. Por isso, devemos ter abertura para estreitar laços, nos estados e nacionalmente, com setores da Opção de Esquerda ou não”. (POMAR, 2022, p. 27).

Ao enfrentar esses desafios internos, a AE apontava para o alerta de que as forças que empurraram o PT para a direita continuavam atuando: a crise do socialismo, que, com a queda da União Soviética, permitiu ao capitalismo livrar-se das concessões que havia feito diante do campo socialista, das organizações trabalhistas e social-democratas, ampliando o grau de exploração sobre a classe trabalhadora tanto nos países centrais quanto nos periféricos por meio do avanço de medidas neoliberais, além da “[…] advertência sobre o risco de uma onda neofascista não deve ser descartada como o mesmo otimismo que levou tantos acreditar que após a queda do Muro, viria uma era de paz e prosperidade mundiais.” (POMAR, 2022, p.36).

Outros alertas são apontados: as dificuldades de atuação dos movimentos sociais, a cooptação institucional, as experiências dos partidos que abandonaram o socialismo e a revolução. “Por isso, como dizia o apóstolo, é preciso orar e vigiar. Porque o melhor (e o pior) ainda está por vir.” (POMAR, 2022, p. 28). Foi diante desses desafios que a Articulação de Esquerda surgiu.

(*) Leandro Eliel Pereira de Moraes é militante do PT Campinas

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