As páginas arrancadas da abolição

Por Fernanda Thomaz (*)

Luís Gama, André Rebouças, Maria Tomásia Figueira Lima, Adelina, Dragão do Mar e Maria Firmina Reis, importantes abolicionistas brasileiros. Foto: André Valente/BBC Brasil

Publicado originalmente na Piauí

Há pouco mais de um mês, o Prêmio Luiz Gama de Direitos Humanos foi instituído em substituição à Ordem de Mérito Princesa Isabel, promulgada em 2022. A função da premiação é reconhecer as pessoas que tiveram expressiva notoriedade na promoção e defesa dos direitos humanos. O motivo da substituição é evidente: em uma sociedade estruturalmente racista, nada melhor do que nomear o prêmio com uma figura que representasse a história de luta de homens e mulheres negras que atuaram pelo fim da escravidão no país. Sem dúvida, Luiz Gama cumpre este papel, por ter sido um ex-escravizado que lutou ativamente para garantir direitos às pessoas escravizadas e pelo fim do regime escravista.

A substituição escancara também a urgência de recontar esse passado que, por muito tempo, trouxe a abolição como uma dádiva da princesa branca, concedida aos negros passivos, ao assinar a chamada Lei Áurea em 13 de maio de 1888. Não se trata de impedir que uma pessoa branca possa compor a luta antirracista: trata-se de afirmar que a história que nos contaram teve páginas importantes arrancadas. Tampouco disseram que a princesa assinou a lei em meio às fortes tensões populares e que aquilo se configurava em uma estratégia política. Tampouco disseram que já havia um tempo em que milhares de pessoas escravizadas fugiam para os centros urbanos, quilombos e outros espaços como uma tentativa de escapar da exploração escravocrata. Tampouco disseram que já aconteciam inúmeras rebeliões e levantes contrários à escravidão.

Muitos escravizados conseguiam sua alforria por meio das ações de liberdade ou mesmo usavam ações judiciais como uma forma de reivindicar alguns direitos, bem como denunciar maus-tratos, castigos e torturas corporais. A história que precisamos saber é que mais de 90% das pessoas escravizadas já haviam adquirido a liberdade no dia 13 de maio de 1888, como relatam Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho em Uma História  do Negro no Brasil. E que também havia uma luta incansável de vários abolicionistas negros, assim como Luiz Gama, pelo fim da escravidão.

Tais manifestações encontraram correspondência no dia seguinte ao 13 de maio de 1988, quando as ruas de muitas cidades brasileiras estavam tomadas por festejos populares. Escravizados e abolicionistas desfilavam publicamente em comemoração ao fim de um sistema hostil às pessoas negras. Esses festejos generalizados em vários cantos do país nos deixam o legado de que o sentimento era de uma conquista popular, de que se abria uma nova era após a existência de muitas batalhas.

Em algumas cidades, o 13 de maio ainda é celebrado nos dias de hoje. Em Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, celebra-se a chamada festa do Bembé do Mercado, que é uma manifestação de rua cultural e religiosa e que acontece no mesmo dia desde 1889. Até recentemente, havia o chamado Baile de 13 de maio na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Por um lado, sabemos de forma deturpada sobre a história da abolição. Por outro, mesmo com a pouca visibilidade, a permanência desse festejo demonstra uma significativa resistência popular.

Quando afirmo sobre a necessidade de reescrever as páginas arrancadas de nossa história, também me refiro a uma atitude educacional que vai além do ensino formal. Trata-se de uma pedagogia dos saberes que formam nossa história e das mãos que de fato escreveram a história negada por séculos. É preciso um profundo reconhecimento cultural para descobrirmos quais ventos sopram e que tempestades nos trouxeram até aqui.

Lançada este ano, a composição Senzala e Favela, de autoria de Wilson das Neves em parceria póstuma com Paulo César Pinheiro, denuncia que ainda vivemos um apartheid social e que, portanto, ainda “temos que brigar por outra abolição”. “Desde a vergonha da escravidão/Na aflição da senzala/Se vê separação/De cor/O negro está sempre ao rés do chão/Nos degraus dessa escala/E isso não mudou.” Em seguida, os compositores traçam um paralelo temporal entre o fim da escravidão e os dias atuais. “Desde o momento da criação/Da primeira favela/A desagregação voltou/Negro ainda está nessa condição/De miséria e mazela/De quando começou/Chicote ou zunido de bala/Favela ou senzala/Não faz diferença”, concluem os artistas.

É por isso que continuo me questionando sobre como as lutas do povo negro pela abolição da escravidão ficaram esquecidas no nosso imaginário social. São apenas 135 anos de distância. Passaram-se algumas gerações que poderiam manter vivas essas histórias. Parte desse apagamento aconteceu porque a memória oficial valorizou apenas a elite branca, em detrimento do silenciamento das resistências da população negra.

Desde a Proclamação da República, o Estado brasileiro investiu na construção de uma memória nacional que afastasse o passado escravista ou, como aconteceu em boa parte do século XX, a violência promovida pela escravidão. Essa memória oficial, que publicizou a benevolência da princesa como uma única história a ser contada em torno de 13 de maio de 1888, nos deixou um legado muito doloroso até a contemporaneidade, que é o desconhecimento de grande parte de nossa história.

Gilberto Gil já dizia há 40 anos que a imagem que criaram em torno das pessoas negras estava próxima dos versos da composição A mão da limpeza: “O branco inventou que o negro/Quando não suja na entrada/(…)/Na verdade, a mão escrava/Passava a vida limpando/O que o branco sujava, ê/(…)/Mesmo depois de abolida a escravidão/Negra é a mão de quem faz a limpeza.”

Reivindicar o 13 de maio como mais uma data que simboliza a luta negra contra a escravidão e o racismo é disputar essa memória coletiva. A luta contra o racismo passa pelo reconhecimento tanto das injustiças do passado quanto das lutas e resistências das pessoas escravizadas, principalmente em um país onde o apagamento da história foi mais um instrumento de domínio e de violência pelo mando opressor sobre as pessoas negras.

Na data de hoje é importante que recordemos um país que não só negou o direito à memória da luta dos nossos ancestrais, como também não concedeu direitos básicos e inclusão socioeconômica e cultural ou tampouco reparou pelos danos causados às pessoas negras. É nesse país que devemos lutar pela memória de Luiz Gama. É nesse país que, para superar as violências do passado, precisaremos recontar essas histórias e reparar um futuro mais digno tão sonhado pelos nossos ancestrais.

Fernanda Thomas é professora e pesquisadora da história da África pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pós-doutora pela Universidade de Ibadan (Nigéria) e pelo Instituto Max Planck (Alemanha). É coordenadora de Memória e Verdade da Escravidão no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

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