Por Marcos Jakoby (*)
Desde que a burguesia abandonou sua linha política, na qual “tolerava” a existência de um governo das forças democráticas e populares, embora fizesse oposição, e resolveu partir para a radicalização golpista, afirmávamos que tal comportamento tinha um triplo propósito, seja por meio da direita tradicional ou por meio da extrema-direita: 1) reduzir a remuneração direta e indireta da classe trabalhadora; 2) reduzir as liberdades democráticas; 3) reduzir a soberania nacional e subordinar a política externa brasileira aos EUA.
Os onze meses de governo Bolsonaro comprovam tal diagnóstico. Foram inúmeros ataques aos trabalhadores e ao povo brasileiro em consonância com o programa neoliberal, hegemônico na burguesia, nos setores médios e com influência e adesão em parcelas da classe trabalhadora. Num cenário como esse, cabe às esquerdas agirem com muita lucidez e demonstrarem, em todas as ações e gestos, o caráter de classe e nefasto das medidas do governo e da coalizão golpista. Opor-se, sem vacilação, conciliação ou capitulação, ao programa das classes dominantes, evidenciando o seu aspecto antipopular, antidemocrático, reacionário e entreguista.
Pois bem, no âmbito da soberania nacional, a ofensiva das elites também tem nos imposto muitas derrotas. Um dos últimos ataques desferidos, estamos falando da aprovação do Acordo de Salvaguardas Tecnológicos (AST) do Centro Espacial de Alcântara com os EUA, contou ainda com um agravante: a adesão de parte da esquerda. Uma luta travada há bastante tempo evitou que um acordo entreguista desta natureza fosse concretizado ainda em períodos anteriores. Mas agora, num contexto de governo de extrema-direita, que tem se revelado como um dos mais subordinados ao imperialismo em toda nossa história, sofremos essa dura derrota.
O Acordo foi assinado por Bolsonaro e Trump no dia 18 de março e permitirá aos EUA utilizarem a base de Alcântara, no Maranhão, para o lançamento de foguetes e satélites. No dia 21 de agosto, a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados aprovou relatório acerca do Acordo. PT e PSOL votaram contra, enquanto PSB, PDT e PC do B votaram favoravelmente, embora com ressalvas. Essa divisão no campo da esquerda gerou várias interpretações e justificativas.
Uma das linhas de argumentação, dos que votaram favoravelmente, é de que se trata de um acordo técnico, que visa simplesmente resguardar a tecnologia dos norte-americanos, que dominam o setor. Que é um acordo que vários países realizam e não impede que façamos também com outros países. E que, portanto, não viola a soberania nacional. E se isso acontecesse, caberia às instituições do Estado brasileiro agirem .
Em outros textos a respeito (www.pagina13.org.br), temos reiterado o equívoco deste posicionamento, basicamente pelas seguintes questões:
a) o acordo estabelece os termos para o uso de parte de nosso território por uma reconhecida potência imperialista, que historicamente agiu em nosso continente, e em nosso país, para impor os seus interesses, seja por meio da espionagem, seja apoiando golpes militares, seja financiando organizações reacionárias e golpistas, ou seja pela sua presença direta. Não podemos esquecer: recentemente, há poucos anos, ficamos conhecendo a espionagem eletrônica norte-americana sobre a Petrobrás e a ex-presidenta Dilma. Ainda não podemos desconhecer a situação política de momento do nosso continente.
b) o acordo é entre Brasil e EUA, e mesmo a base sendo em nosso país, os norte-americanos impõem condições e critérios para que outros países a usem. Em outras palavras, não teremos plena soberania para definir quais são outras nações que poderão também usarem a base.
c) não há uma cessão formal da base aos norte-americanos, mas o acordo estabelece que “apenas pessoas autorizadas pelo Governo dos Estados Unidos da América deverão ter acesso aos veículos de lançamento (…) (nas) áreas restritas. (…) (O) livre acesso a qualquer tempo, para inspecionar, nas áreas controladas e restritas (…) O acesso às Áreas Restritas deverá ser controlado pelo Governo dos Estados Unidos da América”. Ou seja, na prática estamos cedendo o controle de parte sensível da base.
d) embora o acordo seja para fins comerciais e não militares, ele estabelece que cabe ao governo dos Estados Unidos da América, conforme a sua legislação, permissão (e não obrigatoriedade) aos seus funcionários ou representantes fornecerem informação ao governo brasileiro acerca da presença de materiais radioativos ou outras substâncias potencialmente danosas ao meio ambiente ou à saúde humana, que possam estar presentes nos veículos de lançamento, espaçonaves ou equipamentos dos Estados Unidos.
e) não há previsão nenhuma de transferência de tecnologia para o Brasil, o que poderia ser atrativo ao Brasil para o desenvolvimento do setor. A lógica do acordo é justamente a oposta. Há inclusive cláusulas que limitam o uso dos recursos obtidos com Acordo no desenvolvimento do programa aeroespacial brasileiro.
f) outro aspecto do acordo: lideranças quilombolas do município de Alcântara alegam que, mediante expansão a área do Centro de Lançamento Espacial de Alcântara, o acordo representará uma ameaça ao modo de vida de mais de 800 famílias que vivem no litoral. Segundo as lideranças, o acordo implicará no deslocamento para o interior de cerca de 27 comunidades tradicionais. A migração causaria risco à subsistência das famílias, uma vez que as principais fontes de renda são a pesca marinha e a agricultura.
Numa matéria em seu site (“PCdoB faz ressalvas ao acordo, mas vota favorável à base de Alcântara“), visando justificar a sua posição, o PC do B alega que “se a qualquer momento no curso da aplicação do Acordo houver prejuízos ao país, à sua soberania, o Acordo deve ser denunciado, ou seja, extinto”. Mas levando o raciocínio mais à frente: quem vai “exercer a soberania” e dizer para os americanos que por eventuais ações terão que se retirar, o Exército brasileiro, que vem se mostrando totalmente entreguista e subserviente aos EUA, o STF e o judiciário que operaram a Lava-jato em conluio com aparatos de estado dos EUA, o parlamento brasileiro, que sempre foi conservador em sua maioria e alinhado aos EUA? E se os americanos disserem que não?
A orientação e o voto da bancada do PT foi votar contra. Porém, o deputado Zé Carlos (MA) optou em não seguir a orientação partidária e se absteve da votação no plenário da Câmara dos Deputados. Como procuramos demonstrar, há um conjunto de questões graves que integram o Acordo. O PT e a sua bancada corretamente identificaram tal situação e definiram posição contrária ao projeto. Por isso, consideramos grave a atitude do deputado em não seguir a orientação sobre o tema. O que se pode esperar é que a bancada federal e a direção nacional do Partido tratem do assunto e tomem as medidas cabíveis.
Por fim, reafirmamos que o voto favorável dos parlamentares do PC do B, PDT e PSB se trata de um equívoco político. O voto destes foi usado pelos representantes do governo Bolsonaro como demonstração de que o acordo seria bom, pois conta inclusive com apoio de parte da oposição. Isto é, esses votos deram mais legitimidade para um ato que consideramos entreguista, concluído com a aprovação no senado no último dia 12. Então, o que realmente ganhamos com esse acordo? Talvez alguns recursos para o “desenvolvimento regional”? Por isso, vista a situação de conjunto, reiteramos a pergunta: mas a qual custo?
(*) Marcos Jakoby é militante petista e professor.