Por Glaucia Fraccaro (*)
Publicado pelo Laboratório de Estudos de História dos Mundos do Trabalho (LEHMT)
Existe luta feminista fora do feminismo? Os últimos textos escritos pela socióloga Elisabeth Souza Lobo tiveram o propósito de reunir numa análise única o movimento de mulheres e o movimento feminista que, nos anos 1980, pareciam estar apartados. Movimento de mulheres era uma designação que caracterizava movimentos populares, com reivindicações “socioeconômicas” e a palavra “feminista” era usada para os movimentos com ações de caráter “socioculturais”, tidas como clássicas: sexualidade, aborto e violência. A experiência relatada por uma trabalhadora rural, de Bico do Papagaio, em Tocantins, que fez parte de uma das numerosas pesquisas de Elisabeth Souza Lobo, parecia sugerir uma síntese: “Se reivindicar terra e direito à saúde for feminista, então eu sou”. Para Lobo, o sentido da igualdade entre mulheres e homens poderia assumir um conteúdo capaz de questionar as relações de dominação na família ou a divisão sexual do trabalho.
No entanto, ela não teria chegado a essa síntese sem uma valiosa trajetória política e intelectual. Elisabeth Souza Lobo nasceu em 1943, em Porto Alegre. Assim como muitos outros militantes políticos na cidade, iniciou sua atuação no movimento estudantil no Colégio de Aplicação local. Com o golpe de 1964, aderiu à Dissidência do Partido Comunista no Rio Grande do Sul e na sequência participou da fundação do POC (Partido Operário Comunista). Em 1968, ela e Marco Aurélio Garcia, com quem era casada, partiram para o Chile. No começo da ditadura de Pinochet, exilaram-se na França. Em diferentes momentos de exílio e estudos, contribuiu com centros de pesquisas feministas em países da América Latina e Europa. Em 1979, concluiu uma tese de doutorado em sociologia na Universidade Paris VIII, sobre a ditadura militar no Brasil.
Com a Anistia, voltou ao Brasil, e envolveu-se nos movimentos sociais e políticos que discutiam amplamente o futuro democrático do Brasil. Beth Lobo, como era carinhosamente chamada por suas companheiras, fez parte do grande movimento político que marcou o final da ditadura militar e resultou na fundação do Partido dos Trabalhadores (1980) e da Central Única dos Trabalhadores (1983). Ela atuava diretamente como militante do PT e como assessora das mulheres que integravam a central sindical. Em 1986, o grupo de mulheres da CUT, que reunia sindicalistas e estudiosas, criaram a Comissão Nacional sobre a Questão da Mulher Trabalhadora. Para Didice Godinho Delgado, que foi a primeira coordenadora dessa comissão, Lobo conseguiu fazer da sociologia uma ferramenta para a prática militante, conjugando pesquisas sobre mulheres e sindicalismo com sua “vinculação cidadã”.
Grupo de mulheres reunidas durante o I Congresso da Trabalhadora Metalúrgica de São Bernardo do Campo e Diadema em 1978. Fonte: Diário do Grande ABC.
Formação política, assessoria sindical, produção de textos, campanhas políticas, pesquisas universitárias e aulas na USP e na Unicamp. Esse conjunto de tarefas fazia parte das atividades de Beth Lobo junto ao grupo de mulheres do PT e da CUT. Sua produção científica, que conjugava ciência e política foi publicada em revistas especializadas sobre estudos do trabalho e apresentada em congressos da área. Beth Lobo se debruçou, então, sobre os números e indicadores que forneciam o cenário da classe operária urbana no ABC paulista. Foi aí que ficou atenta à organização das trabalhadoras, recolheu relatos e produziu análises. Sobre as greves no ABC, no final dos anos 1970, afirmou: “As reivindicações gerais dos metalúrgicos não retomam as das operárias, a discriminação sexista permanece oculta num discurso unificador; todavia, o sindicato é seu ponto de apoio”. A partir desse texto, escrito em 1982, em parceria com Leda Gitahy, John Humphrey e Rosa Lúcia Moysés, Lobo decidiu por considerar essa contradição colocada em seus próprios termos e, ao invés de entender o mundo das mulheres como apartado do trabalho, passou a tratar do tema a partir do conceito de divisão sexual do trabalho.
A existência de uma opressão específica, na forma de uma grande massa de trabalho realizado quase que exclusivamente pelas mulheres, um trabalho invisível, feito para outros e sempre em nome da natureza, do amor e do dever maternal, se tornou evidente nos anos 1970, tanto para a sociologia quanto para os movimentos sociais. Elisabeth Souza Lobo estava na França e fazia parte do Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris (CMB) quando esse debate tomou os grupos feministas. Diferente de outros grupos políticos formados no exílio, as feministas procuravam manter uma perspectiva mais internacional sobre a experiência das mulheres, deixando de lado as percepções confinadas nas fronteiras do Estado-nação. Por esse motivo, algumas brasileiras do CMB tomaram contato com diversas correntes de esquerda, incluindo, a Liga Comunista Revolucionária (LCR). Tratava-se de uma organização política que atuou com esse nome entre os anos 1969 e 1973, ligada a Quarta Internacional. Nessa articulação transnacional, elas procuravam compreender a experiência das trabalhadoras e duvidavam que as mulheres compunham o “exército de reserva”, diminuindo o valor da força de trabalho.O resultado desses debates apareceu em artigos de várias autoras brasileiras e francesas, em 1984, no livro francês Le Sexe du Travail. Ele foi traduzido e publicado no Brasil como O Sexo do Trabalho, em 1986, e contava com a contribuição de autoras como Danièle Kergoat e Helena Hirata.
Todos essas discussões do feminismo somadas aos fortes debates do período sobre autonomia dos movimentos sociais influenciaram profundamente as reflexões de Beth Lobo. Na conjuntura dos anos 1980, a divisão sexual do trabalho entrava de vez nas pesquisas sociológicas e no debate feminista no Brasil, tendo as mulheres da CUT como algumas de suas protagonistas. Esse campo político, integrado por Elisabeth Lobo, alterou em definitivo as leituras sobre as relações de trabalho. Ao trazer a divisão sexual para o centro da análise das relações sociais, inseriram as mulheres nos debates sobre economia e luta por direitos. Ainda assim, a história desse grupo de mulheres e de sua contribuição andam em separado quando o assunto é a história do feminismo no Brasil.
Elas demonstraram e enfatizaram a existência da luta pela emancipação das mulheres em organizações que envolvem, de forma geral, a luta por direitos. Desta forma, tornaram possível perceber a participação de mulheres comuns, trabalhadoras do campo ou da cidade, na conformação de direitos e nos sentidos de justiça social. Para Elisabeth Souza Lobo, a dominação não implicava em passividade, mas também em violência, ação, conflito e relações antagônicas. Ao tentar entender a resposta que as trabalhadoras forneciam, ela conseguiu compor uma trajetória que conjugou o feminismo com a classe trabalhadora. Não raro, Lobo retomava E. P. Thompson nas suas análises conduzindo a experiência das trabalhadoras como parte da história do trabalho. Reunir o que parecia estar em lugares distintos resultou numa abordagem “vista de baixo”: a consciência da ação não estava fora dela, e assim, encontrou a luta feminista mesmo quando o feminismo parecia não ser reivindicado.
Elizabeth Lobo no 1° Seminário de Formação sobre a Questão da Mulher Trabalhadora, Baixada Santista, 1989. Foto reproduzida da revista: Teoria & Debate, n° 14, junho 1991 (Arquivo de Família)
O artigo em que Beth Lobo analisa o feminismo no Brasil se chama “Questões a partir de estudos sobre o movimento de mulheres no Brasil” e foi apresentado num seminário da Faculdade de Educação da USP, em 1989. Quase todos os seus textos foram reunidos no livro A Classe Operária tem Dois Sexos, publicado pela primeira vez em 1991, pela Editora Brasiliense. Embora fossem ainda reflexões iniciais, o artigo trazia uma análise fundamental sobre a atuação das “vistas de baixo” na história do trabalho e do feminismo no Brasil. O livro foi uma iniciativa de companheiras e de Marco Aurélio Garcia. Ele traduziu os textos de Lobo publicados fora do país. A edição contou com a participação de Ana Maria Goldani, Helena Hirata, Leila Blass, Maria Berenice Delgado Godinho, Maria Célia Paoli e Vera Soares. Elas selecionaram os ensaios e agruparam os textos de Lobo segundo unidades temáticas.
Elisabeth Souza Lobo morreu no dia 15 de março de 1991, aos 47 anos, junto com Maria da Penha Nascimento Silva, então com 42 anos, fundadora do Movimento de Mulheres do Brejo (MMB) e da Comissão Nacional sobre a Questão da Mulher Trabalhadora da CUT. O livro já ganhou novas edições em 2011 e 2021, ambas pela Editora Expressão Popular em parceria com a Fundação Perseu Abramo, e pode ser adquirido gratuitamente no site da editora. O título da publicação exprime a síntese entre mundos que parecem estar separados e foi usada por Lobo quando ela escreveu a orelha da edição brasileira de O Sexo do Trabalho. A classe operária tem dois sexos, soa até hoje como uma palavra de ordem.
(*) Glaucia Fraccaro é professora do Departamento de História da UFSC
Referências:
ABREU, Maíra. Feminismo no Exílio: o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris e o Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris. São Paulo: Alameda, 2014.
DELGADO, Didice G. “O legado de Beth Lobo”. Teoria e Debate, n. 92, 2011.
HIRATA, Helena (e outras). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora da Unesp, 2009.
HIRATA. Helena. “Elisabeth Souza-Lobo, 1943-1991”. Revista BIB, n. 31, 1991.
KARTCHEVSKY, Andrée (e outras). O Sexo do Trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
SOUZA-LOBO, Elisabeth. Crise de domination et dictature militaire au Bresil. Tese de Doutorado apresentada à Universidade de Paris VIII, 1979.
SOUZA-LOBO, Elisabeth. Domination et résistance: travail et quotidienneté. Paris: IRESCO, 1995.
SOUZA-LOBO, Elisabeth. Emma Goldman. São Paulo: Brasiliense, 1983.
SOUZA-LOBO. Elisabeth. A Classe Operária tem Dois Sexos. São Paulo: Brasiliense, 1991. Para baixar o livro na íntegra e gratuitamente: https://fpabramo.org.br/publicacoes/estante/a-classe-operaria-tem-dois-sexos-trabalho-dominacao-e-resistencia/