Por Silvio Queiroz (*)
Artigo publicado na edição 14 da revista Esquerda Petista
A China entra no Ano do Coelho, segundo o seu tradicional calendário lunar, com sinais que parecem contrários às características que o horóscopo oriental atribui à regência do animal – calma, colheita e diplomacia. Lutando ainda para sair de mais um ciclo da pandemia da Covid-19, com seu impacto social e econômico, a República Popular fundada em 1949 sob a liderança de Mao Tsé-Tung se vê diante de mais um movimento do imperialismo norte-americano para impor-lhe o cerco militar. Desafio que não é propriamente novo, mas assume outro relevo em um cenário global marcado pela guerra travada pelos EUA e Otan contra a Rússia, usando a Ucrânia como peão.
Em visita à região, o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, selou um acordo pelo qual as forças militares americanas garantem acesso a quatro bases nas Filipinas. O arquipélago, que foi colônia americana até o fim da 2ª Guerra Mundial, abrigou instalações aeronavais ianques até três décadas atrás, quando chegou ao fim a longa ditadura de Ferdinand Marcos. A localização é estratégica para o acesso a dois focos de tensão que envolvem diretamente interesses chineses: o Mar do Sul da China e Taiwan. Com mais esse passo, na prática, os EUA fecham um arco que se estende pelo Pacífico, de norte a sul, partindo da Coreia do Sul e Japão até chegar à Austrália.
O Pacífico foi definido como centro do planejamento militar estratégico de Washington ainda no governo de Barack Obama (2009-2017). O alcance mais profundo dessa manobra consiste precisamente no reconhecimento da China como principal obstáculo à consolidação da hegemonia global do imperialismo americano. Afinal, não apenas o império milenar renasce como a locomotiva da economia mundial, a caminho de tornar-se a maior do globo. A ascensão econômica, conjugada à erradicação da pobreza extrema, se faz acompanhar pele reforço acelerado do poderio militar. Donald Trump dedicou os quatro anos de mandato a fomentar e conduzir uma guerra comercial contra a potência rival. Joe Biden deixou claro, desde os primeiros dias de mandato, que vai mantê-la e aprofundá-la.
Salto múltiplo
O último lance estratégico do imperialismo na região do Pacífico coincide com o que se insinua como nova etapa na história de sete décadas da República Popular, nos marcos da construção do “socialismo com características chinesas”, como definido pela sua liderança. Em outubro de 2022, o Partido Comunista da China (PCC) celebrou seu 20º Congresso e confirmou o presidente Xi Jinping para mais um mandato de cinco anos como secretário-geral da legenda centenária. Ainda na primeira metade de 2023, Xi deverá ser reeleito também para mais cinco anos como chefe de Estado, pelo Congresso Nacional Popular.
Ao emendar o terceiro período à frente da direção do Estado e do Partido, Xi quebra um precedente que vigorava desde a morte de Mao, em 1976. O sucessor do Timoneiro, Deng Xiaoping, teve posição dominante por duas décadas, mas não acumulou formalmente os dois cargos – seu posto mais importante era a chefia do Comitê Militar Permanente do PCC. No 20º Congresso, Xi inscreveu seu nome entre os pilares ideológicos dos comunistas chineses: além de Marx, Lênin, Mao e Deng, passa a ser estudado no país seu “pensamento sobre o socialismo com características chinesas na nova era”.
O ingresso no panteão da República Popular não se resume a alguma honraria formal. Em seu informe ao Congresso, Xi anunciou planos ambiciosos em múltiplas áreas, com o horizonte de encaminhar a China à posição de potência de primeira grandeza até a metade do século – quando o regime instalado por Mao deverá completar 100 anos. Os objetivos se estendem da “prosperidade comum”, na agenda socioeconômica, à “atualização da doutrina e do equipamento militar”, passando pelo desenvolvimento da ciência em todos os campos e pela “educação de classe mundial”.
Já em andamento, essa arrancada se constrói sobre o alicerce da obra política que levou ao panteão Deng Xiaoping, mais conhecido como patrono das reformas econômicas, compreendidas como abertura do país a investimentos externos e a práticas do capitalismo. Depois de vencer a disputa interna pela sucessão de Mao, Deng enunciou sua “política das Quatro Modernizações”: agricultura, indústria, defesa e ciência/tecnologia. Em conjunto, essa estratégia possibilitou ao país erradicar a pobreza extrema, sobretudo no campo, e projetar-se como potência industrial de ponta, além de recompor a institucionalidade do sistema após os anos turbulentos da Revolução Cultural, lançada por Mao em meados dos anos 60. Esta, por sinal, se seguiu ao malogro do Grande Salto à Frente, arrojada política de industrialização forçada que desorganizou a produção agrícola e produziu fome em larga escala.
O programa de Xi para a primeira metade do século 20 evoca a ousadia da campanha malsucedida do Timoneiro, porém assentada sobre bases sólidas. E, se na virada dos anos 50/60 o foco se concentrava na indústria, o legado da era Deng encoraja a atual liderança a se engajar em um salto de múltiplas direções.
Uma só China
O diplomata norte-americano Henry Kissinger, um dos artífices da reaproximação entre Washington em Pequim, no início dos anos 70, marco histórico no desenrolar da Guerra Fria entre EUA e União Soviética, descreve em profundidade o sentido de renascimento do império milenar em seu livro Sobre a China. Nele, é possível entrever a compreensão peculiar do tempo para uma sociedade com a longevidade da chinesa. Dessa perspectiva, os séculos de decadência e humilhação por potências ocidentais, em especial o império britânico, correspondem a um hiato na trajetória histórica.
Essa percepção se espelha, hoje, na busca da reunificação plena do país, temperada pela proverbial “paciência de chinês”. No apagar do século 20, a República Popular recuperou a soberania sobre Hong Kong, colônia britânica por século e meio, e Macau, que viveu por quatro séculos sob domínio português. Resta, porém, um desafio mais recente, de dimensão territorial e político-econômica infinitamente maior, inclusive pela injunção direta dos EUA. Trata-se da ilha de Taiwan, para onde se refugiaram os nacionalistas de direita, liderados por Chiang Kai-shek, ao serem derrotados pelo Exército Popular comunista, em 1949. Desde então, instalou-se um regime amparado e tutelado pelo imperialismo americano e seus aliados, que o governo de Pequim classifica como uma província rebelada.
No 20º Congresso do Partido Comunista, Xi reafirmou, como parte essencial da agenda para o século 21, a reincorporação de Taiwan à soberania da República Popular. Embora não tenha definido prazos ou meios, frisou a opção preferencial por um desenlace pacífico, sem renunciar, porém, ao recurso da força, se necessário. Uma das “linhas vermelhas” traçadas para a disputa é a proclamação formal de independência pela ilha. Outra, que vale na esfera diplomática, é uma condição imposta para o estabelecimento de relações: o Estado que deseje mantê-las com Pequim não pode dar reconhecimento estatal a Taiwan, ainda que faça negócios. O princípio é conhecido mais amplamente como a “política de uma só China”.
Mesmo depois da histórica visita de Richard Nixon a Pequim, em 1972, e do reconhecimento da China Popular, os EUA mantiveram uma atitude de ambiguidade em relação a Taiwan. Desde logo, renovam a intervalos regulares seu “compromisso com a segurança” da ilha. Embora não tenham tropas in loco, asseguram o fornecimento de equipamento militar moderno, inclusive aviões, e marcam presença nas cercanias, em especial de sua força naval. Nos últimos meses, navios americanos têm se aventurado com maior frequência nas imediações do litoral chinês, inclusive no estreito que separa Taiwan do continente – um dos atuais focos de tensão na área do Pacífico.
Longa Marcha para o Ocidente
O cenário de enfrentamento com o avanço imperialista no arco estendido da Península Coreana à Austrália se articula com a observação atenta do cerco empreendido pelos EUA e pela Otan à Rússia, nos limites orientais da Europa. Não por acaso, pouco antes de lançar suas tropas na Ucrânia, Vladimir Putin visitou Pequim pela ocasião da abertura das Olimpíadas de Inverno. Lá, celebrou com Xi a assinatura de uma vasta gama de acordos de cooperação abrangendo desde o setor energético até a defesa. Nas palavras do presidente russo, uma “parceria estratégica sem limites”.
Da perspectiva chinesa, à parte as vantagens econômicas mútuas – e diretas –, o movimento traz embutido um recado endereçado a Washington. A ordem global multipolar que se desenha tem lugar ao menos para mais um polo de poderio militar, além de EUA/Otan e Rússia. De certa maneira, o presidente chinês refaz o movimento pendular de Mao, há 50 anos, quando buscou a aliança com Washington de modo a contrabalançar a pressão exercida então pela União Soviética. Desde o início dos anos 60, o Timoneiro se colocava em rota de colisão com a liderança soviética no âmbito do movimento comunista internacional. Disputas territoriais na fronteira norte deram origem a escaramuças e fizeram soar o alarme para uma guerra entre as duas potências nucleares.
A aliança aprofundada com a Rússia de Putin vai além dos desdobramentos geopolíticos de escala mais ampla. No campo econômico-comercial, os acordos firmados há um ano em Pequim asseguram à China o fornecimento a longo prazo de gás russo, em condições favoráveis – e, como contrapartida, compensam o impacto da suspensão de contratos de fornecimento para a Europa, em particular para a Alemanha. Mas o olhar chinês se volta para um movimento próprio de expansão rumo ao Ocidente.
Sob o manto da reaproximação com a Rússia, Xi aprofunda laços com as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central, de olho nas reservas de recursos e na posição geográfica. O conceito da Eurásia como região geopolítica se nutre e se fortalece do encontro entre os movimentos de Xi e Putin. Para o presidente chinês, representa a reedição da Longa Marcha empreendida por Mao e seus camaradas, nos anos 1930, cruzando a China de sul a norte com o Exército Popular, em etapa crucial da guerra civil. Agora, a bússola aponta para oeste.
Se uma civilização como a chinesa cultiva e atualiza seu passado e sua trajetória, não é de estranhar que o resgate histórico vá além do período pós-imperial. A aliança eurasiana tem também um aspecto complementar com a iniciativa conhecida como Nova Rota da Seda, ou Cinturão e Rota. Outro dos objetivos traçados para o centenário da República Popular, ela busca retomar o papel desempenhado na antiguidade pelo império chinês no comércio global. Foi pela Rota da Seda que mercadorias do Extremo Oriente chegaram ao Império Romano, assim como por ela chegariam à China os mercadores italianos do Renascimento Comercial europeu, como Marco Polo.
O novo projeto, lançado há 10 anos, se constitui de um conjunto de obras de infraestrutura, principalmente de transportes, capazes de conectar por terra o Pacífico ao norte da África e à Península Arábica – e, dali, à Europa e à América (neste caso, por mar). O percurso atravessa a Ásia Central e o Irã, outro destino crescente de atenções por parte da China. Até o ano passado, a Nova Rota tinha movimentado recursos da ordem de US$ 1 bilhão. A desaceleração da economia chinesa se apresenta como obstáculo conjuntural, mas pode ter na sequência da iniciativa um caminho para a sua superação. Afinal, o gigantesco superávit obtido no comércio exterior abarrota os cofres da China com U$ 3 trilhões em reservas – um capital que permite e até pede exportação.
Lugar para todos
Com a economia global ainda à procura de rumos para a retomada do crescimento, às voltas com os impactos da pandemia e diante da incógnita representada pela guerra na Ucrânia, é para o gigante do Pacífico que se voltam as expectativas de recuperação. E há lugar para todos na fila dos interessados. O Brasil, em particular, pode apostar fichas no relançamento do Brics, com destaque para o banco criado pelo bloco durante o governo Dilma. Agora, Lula programa para março uma visita a Pequim, e levará na bagagem o convite para que novos investimentos venham para o país.
Na esteira do complexo planejamento estratégico delineado no 20º Congresso do Partido Comunista, se esboçam caminhos para o estabelecimento de um padrão monetário alternativo ao dólar. A ideia é situada por boa parte dos analistas e estudiosos em um horizonte longínquo. Mas, novamente aqui, as dimensões em que o tempo é percebido na China fazem com que distâncias pareçam menores. E alimentam a proverbial paciência e sabedoria.
(*) Silvio Queiroz é coordenador-geral do Sindicato dos Jornalistas do Distrito Federal e militante da AE/DF