Por Wladimir Pomar (*)
Durante a crise econômica iniciada em 2008, alguns analistas ocidentais culparam a política industrial da China, assim como seus estímulos à circulação de mercadorias, como responsáveis por um hipotético aumento exagerado da capacidade produtiva em setores como aço, cimento e construção civil. Tal “exagero” teria causado sérias pressões em todo o mundo, funcionando como um estímulo à demanda e como um suprimento em excesso. Desse modo, as economias de outros países teriam sido levadas a reduzir as taxas de crescimento e os investimentos orientados, suprimindo postos de trabalho e salários.
Ou seja, tais analistas, assim como os negociantes e investidores americanos e de outros países capitalistas avançados, incapazes de olhar criticamente o regime de baixos salários e baixos padrões de investimentos de seus próprios países, reclamam da China por problemas que, de fato, são do sistema capitalista como um todo, e não dos planos chineses de desenvolvimento.
Esses analistas não se dão conta de que a lógica econômica que parece manter juntos a China e os Estados Unidos (alto desenvolvimento tecnológico, alta produtividade, queda dos preços e redução da força de trabalho necessária) não passa de uma ilusão de ótica. Tal lógica é real nos Estados Unidos e em outros países capitalistas desenvolvidos, mas não é a que move a economia chinesa, ao ser orientada pelo Estado.
Em outras palavras, por incrível que possa parecer, a lógica pura do capital tende a desintegrar os suportes econômicos, ideológicos e culturais da sociedade capitalista. Tal sociedade, como a dos Estados Unidos, não tem alternativas para o crescente desemprego causado pelo aumento da produtividade, o que leva sua intelectualidade a buscar alternativas, e explica algo que parecia impossível na sociedade norte-americana: o ressurgimento de correntes ideológicas e políticas socialistas.
Em tais condições, se as elites norte-americanas parecem impactadas pela queda simultânea do ritmo de seu desenvolvimento tecnológico, de seu crescimento econômico, da geração empregos, e da legitimidade e da unidade de seu sistema político, explicitadas na invasão “bárbara” do Congresso Nacional, em Washington, na China ocorre um processo inverso. Seu ambiente econômico, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, não tem qualquer indício de estagnação tecnológica ou produtiva, de baixa geração de empregos, e de ampliação da pobreza. E seu ambiente político “democrático popular”, apesar das constantes tentativas internacionais de demonstrar que a China é uma ditadura antidemocrática, continua aprofundando suas raízes populares, e ampliando sua força nos diversos setores da população.
Nessas condições, a questão capaz de interferir pesadamente nas relações globais consiste em saber se a nova administração Biden conseguirá superar o legado sinistro deixado pela ultradireita. Ou seja, se vai ou não armar um conflito tenebroso com a China, na suposição ilusória e trágica de que essa seria a condição para retomar o crescimento econômico e social, nacional e global, dos Estados Unidos.
Para sua própria sobrevivência, talvez a questão chave resida na busca, pelos Estados Unidos, de um caminho que supere a contradição básica de seu capitalismo. Isto é, de um lado, o alto desenvolvimento da produtividade, com oferta crescente e mais barata de mercadorias. De outro, alto desemprego e incapacidade social de consumir a crescente produção ofertada. O que torna cada vez mais evidente a divisão estrutural entre os proprietários e os não-proprietários de capital, levando tais proprietários a buscarem, cada vez mais, a lucratividade através da circulação e aumento do capital financeiro, enquanto os não-proprietários afundam na miséria.
A China, por seu lado, enfrenta tal contradição através da paulatina e crescente subordinação do mercado à orientação estatal. É evidente que o fato dessa política estar tendo sucesso há mais de 40 anos não significa que o trânsito dela para uma crescente superação do mercado, através da orientação estatal e da nivelação mais igualitária do conjunto da sociedade, esteja garantida. Os próprios governos chineses reconhecem que a corrupção, alimentada pela presença do mercado, é um perigo ao desenvolvimento de sua sociedade no sentido do igualitarismo social. O que transformou a luta perene contra a corrupção numa alternativa estratégica de primeira grandeza.
Falando a longo prazo, de acordo com as linhas gerais de desenvolvimento científico e tecnológico do país, assim como da crescente reorganização do trabalho e da redistribuição da riqueza produzida por toda a sociedade, a China talvez alcance, por volta de 2050, as condições para iniciar uma nova transição, mesmo lenta, de uma sociedade onde convivem o Estado e o mercado, para uma sociedade em que o mercado se torne supérfluo e o Estado se transforme, paulatinamente, num organismo administrativo dos processos produtivos e distributivos.
Porém, apesar dessas perspectivas, a equipe de Biden parece concordar, em termos gerais, com as análises e ações provocativas de Trump em relação aos supostos objetivos expansionistas e dominadores da China. Somente coloca em dúvida a estratégia e as táticas empregadas pelo trumpismo. Ou seja, a equipe do novo presidente estadunidense parece não haver se dado conta de que, na atualidade, as relações entre Estados Unidos e China, além de poderem ser pacíficas, são essenciais para os destinos da própria humanidade.
O novo governo estadunidense parece decidido a manter uma política de confronto que o leve a retomar a supremacia mundial que havia alcançado durante a Guerra Fria do século 20. Na pior das hipóteses, pretende forjar uma nova aliança intercapitalista capaz de segregar o socialismo chinês a seu próprio território. O que, no mínimo, vai exigir um esforço inaudito para os Estados Unidos recuperarem as alianças internacionais e os acordos comerciais que Trump atropelou, muitos dos quais foram recuperados pela China, especialmente com a crescente concretização da Nova Rota da Seda e sua política multilateral.
É evidente que o governo Biden pode obter algum sucesso na conformação de uma nova política anti-China, já que uma parte do capitalismo norte-americano reclama e deseja a adoção de ações que barrem o que chama de “práticas abusivas” das empresas chinesas. Tais “práticas” estariam relacionadas à propriedade intelectual, preços baixos, subsídios governamentais e transferências tecnológicas. O que inclui, ironicamente, multinacionais norte-americanas localizadas naquele país, assim como políticas da potência americana que tendem a representar crescentes perigos para a humanidade como um todo. Elas envolvem não apenas movimentos comerciais e financeiros, mas também operações militares que, em geral, sabe-se como começam, mas nunca como acabam.
Ou seja, como reconhecem alguns analistas americanos, Biden parece decidido a pressionar a China para abandonar a política de desenvolvimento industrial que retirou da pobreza centenas de milhões de habitantes das diversas nacionalidades chinesas e fez com que o país escapasse da subordinação econômica a outros países. Além disso, e por outro lado, a China já superou seu atraso científico, tecnológico e industrial, possui uma perspectiva real de se tornar a mais avançada potência do mundo nos próximos dez anos e, com seu projeto de Nova Rota, beneficiar, nos diversos continentes, não apenas inúmeros países em desenvolvimento, mas também países desenvolvidos dispostos a conviver pacificamente com ela.
Dizendo de outro modo, mesmo que Biden dê um novo formato à política de confronto, procurando formar uma frente única de países capitalistas ricos, a China não só tem avançado na construção de laços econômicos progressistas de longo prazo e multilaterais com tais países, como tem desenvolvido sistemas próprios de produção e de defesa que podem surpreender seus agressores. Na atualidade, a China já construiu um sistema econômico que dificilmente escorregará em alguma crise capitalista profunda, de caráter financeiro, como a que ameaça a economia norte-americana e europeia. E o envio e retorno de uma nave não tripulada à Lua, e outra à Marte, é apenas um exemplo de sua atual capacidade técnica e, em consequência, militar.
É lógico que os propagandistas norte-americanos e de outros países capitalistas vão continuar difundindo a suposta ausência de liberdade de imprensa na China, de sufoco das reivindicações de minorias nacionais, de perigosas pretensões territoriais no sul e sudeste asiático, e outras fake news a respeito da “brutal ditadura” do PC sobre a China, tudo de modo a criar um ambiente favorável ao confronto com os chineses.
O problema consiste em competir com a realidade que zerou o número de populações chinesas que viviam abaixo da linha da pobreza, que avança para completar o salto, de pouco mais de 70 anos, de transformação de um país feudal e semicolonial numa das duas maiores potências mundiais da atualidade, e que se empenha em superar ordenadamente as contradições que, nos Estados Unidos e em alguns outros países capitalistas avançados, estão agravando as condições de vida de parcelas crescentes de suas populações. Vale a pena conferir!
(*) Wladimir Pomar é escritor e jornalista