Ciência e sistemas técnicos nos cortejos carnavalescos

Por Fausto Antonio (*)

Epigrafia do território usado e  categorizado como encruzilhada

Território  entendido como  quadro de vida (SANTOS,2001), categoria de  análise defendida e elaborada pela  obra do geógrafo  Milton  Santos , foi  fio  condutor da análise pretendida pela redação desse texto.  Da nossa parte, num acréscimo fundamentado pela  ancestralidade, utilizamos, de  modo subjacente e no  limite de  fio condutor, a categoria  analítica território  como  encruzilhada (ANTONIO,2024).  É aqui, no  território como encruzilhada,  que podemos discutir, antes entender e depois mudar, o nosso lugar nos  cortejos  carnavalesco  e  na  sociedade em consonância com a mudança na operação política e na redefinição do lugar e do papel da ciência, do ponto de vista   do campo  negro-popular e  dos  trabalhadores(as), nos  contextos sociais, carnavalesco e  de  rua em geral.

Carnaval ,  território  sazonal de muitas  manifestações

 No  artigo  aqui delineado, registraremos reflexões a respeito do carnaval, do  carnaval de escolas de  samba e com  aplicação, é  a nossa hipótese, para múltiplas  manifestações  culturais de  rua, porém, compreendendo que são manifestações distintas e que  se convergiram, num determinado período histórico, na  forma ou formato  carnaval. O polo  pendular das convergências, num determinado contexto histórico, igualmente se aplica ao samba na forma, conteúdo   e  formato escola de  samba.  Não  é  demais enfatizar  que  samba, escola de  samba e  carnaval são manifestações distintas. O mesmo raciocínio pode  ser feito a  propósito de maracatus, afoxés, cordões, blocos  afros, bumba meu  boi  ou boi  bumbá, grupos de frevo   e  tantas  outras  manifestações, que  não  se  limitam ao carnaval na  escala do espaço, da forma, do  formato, do  conteúdo, do  tempo, da  existência cotidiana   e das suas  intrínsecas e extrínsecas  especificidades. Não obstante as referidas especificidades, no entanto ou apesar delas, as  apontadas  manifestações culturais  são realizadas sazonalmente nos domínios  carnavalescos.

Espaço carnavalesco, sistemas técnicos, culturais e  artísticos  

O  carnaval é, sem excluir outras  manifestações  culturais de rua, um privilegiado momento para compreendermos  que  os  sistemas  técnicos são  inseparáveis do  território. Como é, de modo  camaleónico,  um mosaico de múltiplas  manifestações culturais, o  carnaval facilita, de  certo modo, uma  visada sintética, sem redução da complexidade e multiplicidade aí transitivamente contidas.

Caso tivéssemos  a  pretensão  de  sintetizar o  carnaval de  rua  na  Cidade  de  Campinas -SP e em  outras metrópoles brasileiras,  de modo esquemático à  guisa de introduzir estudos seminais, contaríamos suas  histórias em conexão com as  transformações urbanas. Elas, as citadas transformações  urbanas,  são  mais  ou menos  caracterizadas  pela  maior  ou menor aquisição e  presença, nas  cidades,   de  sistemas  técnicos viários, ferroviários, aéreos, elétricos, comunicacionais, informacionais, industriais, sanitários, esportivos, artísticos e  festivos, entre  outros.

A concepção social vigente, responsável pela verticalização das cidades, no projeto de remodelação urbana , que  derivou para a eugenia e limpeza étnica iniciada no  final do século XlX, no desfecho do trabalho  escravizado, e acelerado  no transcurso do século XX, impôs transformações urbanas, que resultaram, primeiro ,   na centralização e ,depois, na  espetacularização dos desfiles de  escolas de samba e  também, no  geral,  das manifestações carnavalesca e de rua.

Não é  difícil percebemos , num estudo diacrônico das manifestações culturais de rua, a  relação  umbilical dos  desfiles carnavalescos, de escolas de  samba e de outras manifestações, como parte indissociável das transformações urbanas.

Ciência, tecnologia, engenho ou engenharia elétrica, eletrônica, mecânica, informacional,   comunicacional e artística,  inseridas em trios-elétricos, sambódromos, bumbódromos, carros  alegóricos, baterias, comissões de  frente e  rainhas de baterias, são determinados pelo estágio de desenvolvimento dos  sistemas científicos,  técnicos e do arranjo político estabelecido pela  classe que hegemonizou governos e  Estado, sobretudo.        No  caso das  rainhas de bateria de  escolas de  samba, a engenharia  de informação e comunicação, no  geral conforme intervenção da mídia branca-burguesa-televisiva  e, em particular, defronte das baterias, determina  o papel ,a escolha e o lugar, nas mídias hegemônicas, que será ocupado pelas  rainhas de baterias de  escolas de samba. Trocando em miúdos, nas escolas de topo;primeiro grupo, as rainhas aclamadas pela mídia são preferencialmente brancas e  com trânsito financeiro e  imagético  assegurado pelo sistema televisivo, tele novelístico e congêneres. As  rainhas de  bateria são, com frequência e  notadamente  quando  não  têm vínculo orgânico  com as escolas de  samba, “peças” da  branquitude  e, o que  é  perigoso, “peças” de  consumo da branquitude totalitária.

A presença dos  sistemas técnicos avança, é  o  caso da  conjunção rainhas brancas, na  verdade, “peças” da  branquitude inseparáveis do sistema televisivo e  imagético, associada aos  valores de dominação, exploração, opressão  e poder da classe e da raça de quem se  apropria, controla  e usa, de  acordo com privilégios e poder, os  meios ou os sistemas técnicos. Sendo assim constituído o  espaço geográfico festivo, a  análise dos cortejos  carnavalescos, quaisquer que sejam, passa necessariamente pelo entendimento dinâmico do estágio de desenvolvimento dos  sistemas técnicos e da sua organização e controle. Há, nos  desfiles carnavalescos, entre  outros cortejos,  trabalho intelectual, artístico e cultural coletivo orientado por uma determinada hegemonia  política.

Na disputa por  hegemonia, então, como possibilidade para o porvir;o  futuro, as camadas negras, indígenas e populares podem reorientar o uso, nos  cortejos de escolas de  samba, blocos, maracatus, jongos, congadas,afoxés e boi  bumbá, entre outras manifestações, em conformidade com os  interesses dos(as) trabalhadores (as) , campo negro -indígena e popular.

O espaço carnavalesco é  lugar privilegiado para a  compreensão do estágio atual dos  sistemas técnicos e fundamentalmente do uso,que  retrata fielmente a  política, que se  hsitoriciza, além  da moção de mobilização, como intervenção negro-popular ou dos trabalhadorees(as), isto é, daqueles que são portadores, socialmente falando, da força de trabalho.

Uma  necessária noção de  força  de  trabalho

A  propósito da noção de  força de trabalho, ela significa dizer que a mudança, na investidura da luta de  classes, deve ser conduzida pelos manifestantes, que  sintetzam , a  partir dos lugares, não tão-somente a força de  trabalho artístico-cultural negro-brasileira mas, sobretudo e principalmente, pelo arranjo de um outro modo de uso coletivo e  social dos recursos científicos e tecnológicos e, ao mesmo tempo, de controle negro-popular  de tudo que  se refere aos  cortejos  em toda sua  extensão nas ruas , nas quadras, currais e nas realizações  extensivas e  inseparáveis da luta de classes entendida como um conjunto inseparável de classe,raça,gênero e território usado e  como  encruzilhada. Em outros termos, a mudança, revelando que os manifestantes são força  de trabalho stricto sensu e também   intelectual, artístico-cultural e corpórea, põe em destaque  a centralidade  da  política, compreendida como modo  de  organização dos cortejos carnavalescos, de rua e da sociedade ou da existência. A transformação o é igualmente  extensiva ao processo  e projeto  de  luta pela radical transformação ou superação  do modo de  produção capitalista, que  confere, subalternamente no momento histórico brasileiro,  aos manifestantes, o papel de controlados ou de “domesticados” “brincantes”,”foliões”, “passistas”, “sambistas”e tantas outras classificações.

Outra questão nuclear passa pela certeza de que os recursos científicos e tecnológicos presentes nas ruas, sambódromos,bumbódromo e nas  escolas de  samba   são, a despeito do trabalho isolado de alguns pesquisadores(as) e de certas áreas de conhecimento, historicamente produzidos pelo trabalho realizado pelo conjunto da sociedade e  pelos manifestantes especialmente; razão pela qual os recursos técnicos e científicos, pesquisados e transitados  pelas ruas,sambódromos e bumbócromos coletivamente, deverão retornar para o controle social.

Assim, o  carnaval apresenta, desde o trabalho escravizado e depois na esteira do desenvolvimento cafeeiro, industrial e  hoje no contexto das tecnologias de informação e comunicação, a exata dimensão desse fenômeno relativo à  inseparabilidade dos  sistemas técnicos do território e, por  igual constituição, do uso,istoé, da  política. Estamos  diante do processo que confirma que as técnicas e a ciência são recursos sociais, como o são também todos aqueles equivocadamente chamados de “recursos naturais”;a rigor, recursos sociais, e podem ou não atender aos reclamos da maioria para melhorar ou solucionar as péssimas condições dos sistemas de saúde, de transporte, de moradia, de lazer e, especialmente, organizar um novo projeto civilizatório e de  sociedade.

Tudo depende da política;  portanto, o que  define tudo, a favor dos manifestantes, é  o  uso.  O ponto cardeal enfatiza que a ciência e a política são um contínuo inseparável e, como base material da sociedade, é fato, o serão também nos  espaços  carnavalescos, que  herdam, como parte do social, o lastro técnico e científico sem, no entanto, assegurar  o poder ou domínio político correspondente que, salvo um processo de luta, está  sob o comando da classe burguesa.

A encruza dos sistemas televisivos informacionais e sambódromos

No mesmo contínuo das festas carnavalescas, tendo  em  vista os  interesses divergentes de  classe e raça,sem excluir outros,  política e ciência não andam apenas lado a  lado, os  sistemas técnicos, meios de produção dos cortejos carnavalescos e de rua e o modo de  organização, a política,   se interpenetram. Assim, temos que avançar além das análises que discutem o acesso a certos equipamentos tecnológicos, os computadores e a internet, entre outros, sem considerar o caráter necessariamente sistêmico do debate e das inevitáveis intervenções que, sem uma leitura do todo, consideram e/ou são reféns apenas das questões operacionais e conceituais de parte do sistema, sem, no entanto, avançar no debate impostergável da sociedade no sentido estrutural e com redobrada  atenção para  o modo pelo qual ela se historiciza, por  exemplo, no desfile de escolas de  samba e  nas  plataformas capitalistas,que definem ou impõem, aos  chamados  “usuários” a  mais valia nas redes sociais. Na  nossa concepção, os  manifestantes dos  cortejos são força de trabalho artístico-cultural e, nas redes, “os  “usuários” o  são também na produção de textos, imagens, afetos,empatias,contra-empatias  e consumos retroalimentados pela própria “aparente” força de intervenção, que é força de trabalho, a  despeito de restritas  às  bolhas, O  ponto fundamental, relativo à  comparação entre manifestantes e  “!usuários”, prende-se ao fato de  eles terem apenas a força de trabalho, pois  as plataformas são capitalistas e os sistemas técnicos sambódromos, bumbófromos, trios-elétricos e, a eles acoplados, o  que  dificulta  ainda  mais a questão, estão as  plataformas capitalistas informacionais e televisivas. É  útil  a  leitura do  artigo, publicado na  Página  13, com o título “  Mais-valia informacional, capitalismo de plataforma, o espaço e a socioespacialidade antirracismo e antibolhas”. (  Mais-valia informacional, capitalismo de plataforma, o espaço … 14 de out. de 2020 — Maisvalia informacional, capitalismo de plataforma, o espaço e a socioespacialidade antirracismo e antibolhas).

Sambódromos, bumbódromos, trios-elétricos,os  condomínios de luxo festivo

A ciência ou, se quiserem, os recursos técnicos e científicos, sem excluir os  seus proprietários e operadores,  estão nas ideias, nos objetos, no cotidiano, no corpo e na corporeidade e,por  equivalência aos desígnios do capital, estão nos  desfiles de escolas de  samba e na  totalidade dos  cortejos  carnavalescos  e de rua.   Os condomínios de luxo festivo; sambódromos, bumbódromos e trios-elétricos e  camarotes, a  exemplo de condomínios privados, “os prédios inteligentes”, estão e atuam  em oposição à  favela caracterizada de perigosa, à periferia distante e destituída de  bens materiais  e  imateriais , o bairro esburacado, sem  esgoto e segregado pela  violência  policial.  Não  são domínios, como um todo, apenas  dos discursos, mas de uma  vestes ideológicas que se interpenetra nos objetos, nos corpos, nos  coletivos e  oprime e, histórica e temporariamente, é  hegemônica,  pois pode ser revertida e transformada a serviço dos excluídos. Há, desse modo, urgente necessidade de discussão a respeito dos  condomínios festivos e,  de modo conjunto,      da ideologia capitalista e racista e  suas progressivas compreensões no tocante ao  uso da ciência e da política, principalmente.

Não podemos adentrar analiticamente  nos  espaços  carnavalescos e de rua, carregados  de ciência, de sistemas técnicos e das  complexas relações sociais, sem adentrarmos na constatada, no  artigo em pauta  e na  sociedade brasileira,  relação de interdependência posta e reposta na ação cotidiana e histórica no que chamamos de intervenção política ou relações de poder.  Desse modo, poderemos evitar o processo em marcha, delimitado pela política, pela ciência e pelos sistemas técnicos, de uso interesseiro desses recursos em função tão-somente do lucro , especulação e  espetacularização.

Assim, se temos nas manifestações  carnavalescas e de rua a  conflituosa  “convivência”  dos sistemas técnicos e da política, quer seja como ideologia ou definidora de quem tem, de  fato,  acesso ou não à  festa e de como deve ser a festa de rua, devemos considerar, para a análise dos  desfiles de escola de  escolas de samba, que elas, como parte do território brasileiro, são manifestações  racialmente segregadas.

Na questão  que toca  ao artigo em pauta, os  sistemas técnicos, instalados  e inseparáveis das pessoas envolvidas,  agem diretamente, a partir do território, do  corpo e do acesso  e difusão desiguais, nos elementos estruturais e estruturantes da sociedade; o que  é  extensivo aos sambódromos, bumbódromos , trios-elétricos, desfiles de escolas de  samba e  de inúmeros  cortejos carnavalescos e de rua. Tudo, é  aconselhável  a ênfase, na razão do território  usado  e de encruzilhada.

Território como quadro de vida e como  encruzilhada

Território  entendido como  quadro de vida (SANTOS,2001), categoria de  análise defendida e elaborada pela  obra do geógrafo  Milton  Santos , foi  fio  condutor da análise pretendida pela redação desse texto.  Da nossa parte, num acréscimo fundamentado pela  ancestralidade, utilizamos, de  modo subjacente e no  limite de  fio condutor, a categoria  analítica território  como  encruzilhada (ANTONIO,2024).  É aqui, no  território como encruzilhada,  que podemos discutir, antes entender e depois mudar, o nosso lugar nos  cortejos  carnavalesco  e  na  sociedade em consonância com a mudança na operação política e na redefinição do lugar e do papel da ciência, do ponto de vista   do campo  negro-popular e  dos  trabalhadores(as), nos  contextos sociais, carnavalesco e  de  rua em geral.

A tarefa dos  processos  educativos  formais , não formais e dos  partidos    

A mudança de enfoque, afinal falamos de política e ciência, não pode prescindir da universidade, dos sistemas de ensino, das pesquisas, do trabalho intelectual, dos movimentos sociais negros, carnavalescos e visceralmente dos partidos políticos de esquerda, que querem os recursos sociais, da ciência, à disposição de uma nova construção política, civilizatória e socialista.

O papel das universidades, dos sistemas de ensino, dos processos  educativos não formais advindo das escolas de samba, afoxés e manifestações  carnavalescas correlatas  e de  rua em geral, dps movimentos  negros e assemelhados,   dos intelectuais e dos partidos políticos de esquerda, apoiados na ciência eticamente concebida a  serviço da transformação para os debaixo socialmente falando , é construir e sistematizar as bases para outra relação entre os cortejos festivos  de rua e a produção do  protagonismo negro-popular  para  superar as desigualdades de  classe e  raça reafirmada nos cortejos  carnavalescos atuais, século XXl.  Relação que implicará numa nova sociedade, num novo modelo de existência e de convivência no qual os  sistemas técnicos, como parte da  ciência e  especialmente  do  território,  ficarão subordinados aos interesses da  política redefinida pelos manifestantes negros(as), populares e trabalhadores(as).

Referências 

SANTOS, Milton et al. Território e sociedade: entrevista com Milton Santos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. 2001.

ANTONIO, Fausto. HQ Territórios Negros: a força dos currículos estabilizados e expandidos pelos lugares. São Paulo:Página 13. 2024

HQ Territórios Negros: a força dos currículos estabilizados e …

1 de set. de 2024 — Os textos apresentam, na edição que contém 30 páginas, a partir de variados tipos e formas, os processos políticos, em Campinas, SP, na escala …

(*) Fausto  Antonio  é  professor  Associado  da  Unilab, Malês, Bahia, escritor, poeta e  dramaturgo.

 

Uma resposta

  1. Realmente professor existe a necessidade de uma intervenção negro-popular na forma de controle coletivo e social sobre os recursos técnicos e científicos que permeiam os cortejos carnavalescos.

    Observando conceito território como encruzilhada é bastante central para compreender essas manifestações como espaços de disputa política, onde diferentes grupos tentam redefinir o uso dos recursos técnicos e culturais em prol de projetos alternativos de sociedade. Essa luta deve se orientar por um novo modo de organização que recupere o controle social sobre os recursos científicos e tecnológicos, em oposição ao controle capitalista e racista que atualmente predomina.

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