Por Valter Pomar (*)
Antes de mais nada, um esclarecimento: tudo o que segue é apenas ficção.
E qualquer semelhança é mera coincidência.
Isto posto, imagine um partido.
Um partido de esquerda.
Ele tem um estatuto.
Um estatuto democrático.
O estatuto determina como se deve proceder para alterar o próprio estatuto.
Mas como até o artigo 142 da Constituição possui várias interpretações, há quem diga que o estatuto do tal partido permitiria que o próprio Diretório Nacional, por uma maioria de 2/3, poderia alterar o estatuto.
Para facilitar a compreensão do que segue, admitamos a tal hipótese dos 2/3.
Pois bem: num determinado ano, no qual vão ocorrer eleições municipais, alguém tem a ideia de alterar o método pelo qual o estatuto determina como o Partido deve escolher suas candidaturas à prefeitura.
Este alguém leva o assunto para votação na executiva nacional do Partido.
Resultado da votação na executiva: 17 a favor da alteração do estatuto x 12 contra a alteração do estatuto.
Não teve 2/3 dos votos.
E, ademais, a votação foi na executiva, não no DN.
Quem perdeu faz imediatamente um recurso.
Primeira surpresa: apesar da votação ter sido na executiva, apesar de não ter tido 2/3, alguém divulga publicamente, num “ofício oficial”, que a resolução fora aprovada e que a regra fora modificada.
A fake news é tão absurda, que rapidamente a informação é retificada e o assunto fica pendente de votação no Diretório Nacional.
No Diretório, o recurso contra a decisão executiva vai a voto.
O recurso é rejeitado por 47 x 36.
Novamente não tem 2/3.
Mas novamente alguém é tomado de furor criativo e interpreta que, como recurso não precisa de 2/3, como o recurso foi rejeitado, então fica valendo a alteração.
Me inclino diante da esperteza: você não consegue 2/3 no mérito, mas consegue 2/3 para rejeitar o recurso, aprovando assim por maioria simples uma mudança que exigiria 2/3.
Mas como o diabo mora nos detalhes, a lei manda que o partido publique uma resolução.
E esta resolução tem que ser votada oficialmente no diretório.
E a tal resolução precisa incluir a tal mudança estatutária.
E quando chega na reunião do diretório – digamos, sempre lembrando que se trata de ficção, que esta reunião tenha ocorrido na semana passada – um membro do diretório lembra que mudança estatutária precisa de 2/3.
A presidenta do partido acha mais prudente tirar o tema da pauta e orienta que se façam consultas entre as partes, antes de votar.
As consultas acontecem? Desconheço.
E dias depois a votação é feita no grupo de zap do tal diretório (sim, na nossa ficção, muitas decisões são tomadas em votação feita em grupo de zap!).
Resultado da votação: 54 a favor da resolução, 26 contra.
Como o tal diretório tem 94 integrantes, dois terços seriam pelo menos 62 votos.
Portanto, desta vez não há dúvida alguma: no diretório, a proposta de alteração estatutária não teve 2/3 dos votos.
Detalhe: nesta votação no DN, algumas pessoas contrárias no mérito à alteração estatutária, preferiram votar a favor, não porque concordem com o mérito, mas porque o tribunal eleitoral exige que se publique a tal resolução numa data determinada.
Obviamente, sabendo da controvérsia, teria sido mais prudente levar a voto a tal resolução um mês antes. Mas, sabe-se lá por qual motivo, a resolução foi levada a voto dias antes do prazo fatal.
Seja como for, o fato é: a resolução não teve 2/3.
E sem 2/3 não tem como alterar o estatuto.
Apesar disso, por incrível que possa parecer, a secretaria nacional de organização do tal diretório começa a colher assinaturas para publicar oficialmente a norma.
Obviamente, vários integrantes do diretório já avisaram que não vão assinar.
Isto posto, sempre lembrando que se trata de uma ficção, resta a pergunta: quantas vezes um estatuto precisa ser atropelado, até que o dia-a-dia de um partido vire uma selva sem lei?
Concluo esta ficção satisfeito pelo fato de militar num partido onde nada disso nunca aconteceria.
(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT