Por Valter Pomar (*)
Era uma vez um partido que reunia sua direção nacional para debater o projeto que seria apresentado em um determinado congresso constituinte.
Uma reunião foi realizada no auditório de um instituto dedicado à formação política. Calhou de esta reunião ser acompanhada por docentes deste instituto. Um destes docentes estava presente no momento em que se debatia o tema da interrupção da gravidez.
O referido docente ouviu, de alguém que então era membro do diretório nacional, a seguinte frase sobre o tema: vou votar a favor, porque defendo a democracia.
O cidadão que falou isso – para usar uma descrição atual – era homem, cis, branco, velho (pelo menos assim parecia ao observador em questão) e comunista.
O cidadão votou a favor, a maioria dos membros do diretório nacional votou a favor e, numa direção predominantemente masculina, prevaleceu a defesa do direito democrático das mulheres.
E, exatamente porque ser uma questão democrática, é importante que todo mundo se posicione a respeito.
Com um “detalhe” importante: garantir este direito não obrigaria ninguém a exercê-lo; mas negar este direito afeta as pessoas de forma totalmente desigual. Afinal, a interrupção da gravidez é, para dizer de maneira simplificada, um direito democrático das mulheres.
Como todo direito democrático, pode e deve ser regulamentado. Mas precisa ser reconhecido como um direito. Direito que nunca foi reconhecido pela nossa legislação, que só admite a interrupção da gravidez em alguns casos determinados.
Hoje, a extrema-direita quer impor uma legislação ainda mais restritiva, que inclui itens particularmente perversos, como o que penaliza com longas penas de prisão as mulheres que abortem a partir de 22 semanas de gestação. Uma análise a respeito pode ser lida aqui, neste texto que me foi sugerido por uma companheira de trabalho e militância:
https://blogdaboitempo.com.br/2024/06/14/perversidades-e-retrocessos-na-agenda-do-aborto/
A extrema-direita desencadeou uma brutal campanha de propaganda intimidatória. Contra esta campanha de intimidação, já está em curso uma forte reação, inclusive com manifestações de rua.
Entre os que reagem, há diversas posturas. Uma delas me chama a atenção, aquela que diz mais ou menos assim: “pessoalmente eu sou contra o aborto, mas defendo o que está previsto em nossa legislação”.
O que uma pessoa quer dizer ao falar que é “pessoalmente contra”? Quer dizer que ela própria não faria um aborto? Se for isso, respeito sem discutir.
Ou o que se pretende dizer é “sou contra que outras pessoas façam, exceto nos casos previstos em lei”?
Se for isso, não estou de acordo. Não estou de acordo porque – para além das questões de saúde, para além das situações decorrentes de estupro – as mulheres têm o direito de decidir.
Hoje a lei nega este direito para todas as mulheres. Mas, na vida real, funciona assim: quem tem meios, com maior ou menor sofrimento, com maior ou menor dificuldade, consegue driblar os impedimentos e encontra alternativas mais seguras. Mas quem tem poucos meios, ou não tem nenhum, tem o seu direito negado, corre alto risco de vida e de criminalização.
As mulheres pobres (e negras) são as principais vítimas da negação de direitos. E serão as que mais vão sofrer se prevalecer este retrocesso que a extrema-direita quer promover. Hoje devemos nos concentrar em deter o retrocesso. E devemos fazer isso, penso eu, sem abrir mão de defender plenamente a democracia. O que inclui garantir às mulheres o direito de decidir.