Trecho bíblico, repetido por Bolsonaro, não passa de tentativa de controlar e iludir eleitores evangélicos e de cortina de fumaça para encobrir seus crimes
Por Paulo Sérgio de Proença (*)
A Bíblia está sempre em disputa; recorrem a ela fieis e ateus, na esperança de algum arrimo, de alguma vantagem, de algum apoio a argumentos e a interesses.
Citá-la, em qualquer contexto, passou a ser virtude beatífica. Como isso não significa segui-la ou nela acreditar, esse recurso pode ser a negação de princípios evangélicos, como atesta a revelação dos crimes de Bolsonaro, que tinha o trecho decorado de ocasião e de nenhuma adesão. Nem por repeti-lo deixou de cometer tantos crimes, que vêm à tona em quantidade assustadora, em compatibilidade com sua patológica obsessão delituosa.
Menções à Bíblia tinham por intenção abençoar a aliança entre o bolsonarismo e a direita evangélica, em conveniência patrocinada e testemunhada por conservadorismo exagerado, principalmente quanto a costumes, e por expectativa de algum privilégio, material ou simbólico, de seus apoiadores.
Lances da política recente no Brasil podem nos ajudar a remontar esse jogo. Em 1985, imediatamente após o término da Ditadura Militar, foi publicado o livro Brasil: Nunca Mais, que teve dezenas de edições e repercussão internacional. O prefácio do livro em sua parte final menciona João 8.32 (“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”), em referência à verdade até então escondida.
O projeto, dirigido por Dom Paulo Evaristo Arns, acompanhou a trajetória de presos políticos e de exilados; acessou centenas de processos; e, a partir de registros dos próprios algozes, comprovou-se a tortura como política de Estado, com a identificação dos autores e dos coautores desses crimes.
Para fazer face ao livro Brasil: Nunca Mais, nas entranhas misteriosas e assassinas do regime ditatorial, nasceu o projeto Orvil. É isto mesmo: Orvil é livro ao contrário, o discurso oponente. A intenção era oferecer a versão militar para criminalizar os resistentes ao regime, caracterizados como comunistas. O inimigo, então, passaria a ser identificado internamente: os filhos da pátria que corajosamente tinham dado a vida em defesa da liberdade contra a violência ditatorial.
Um parêntese, breve: abolicionistas foram considerados comunistas por escravagistas, no final século XIX, sem que houvesse aqui as condições econômicas, sociais e históricas para a instalação desse regime. Da mesma forma, hoje, é anacronismo infantil achar que o comunismo pode vir a ser ameaça. Esse termo, apesar de esvaziado, ainda assusta quem tem privilégios ou tem expectativa de vir a tê-los em nossa ordem econômica injusta. E, por falar em privilégios, deve-se reconhecer recortes de raça (como no tempo da escravidão), pois em nosso país, só brancos a eles têm livre acesso. O Brasil é racista.
João Cezar de Castro Rocha, no livro Guerra cultural e retórica do ódio apresenta resultados de exaustiva pesquisa sobre a forma como as motivações da ditadura militar engendraram o bolsonarismo, em funesta convergência com a extrema direita evangélica e as demais forças políticas retrógradas deste país. Segundo esse autor, o “Orvil foi, durante 19 anos, um projeto sigiloso do Exército brasileiro” e a ascensão da extrema direita é incompreensível sem o Orvil.
Assim, se o Brasil: nunca mais queria denunciar os crimes da ditadura militar e eliminar a prática de torturas no Brasil, o Orvil tinha a intenção de denunciar os crimes da esquerda armada, em processo de inversão especular.
Essa luta ainda não terminou. Vivemos agora batalhas de narrativas, tão cruéis e letais como as regadas a tortura e a sangue. Bolsonaro repete o verso bíblico para seduzir o eleitorado evangélico e para sugerir que a esquerda comunista era corrupta, apoiado nas teses da operação Lava-Jato.
Aqui se aproximam fatores aparentemente desconexos. Por exemplo, a Proposta de Emenda Constitucional 37 (conhecida como a PEC da impunidade) que, em junho de 2013, mobilizou multidões. Essa PEC propunha limitar atividades de investigação, que sairiam do Ministério Público para a exclusividade de Polícias. A proposta não foi aprovada, mas como resultado, nasceria o ativismo judicial, como indica João Rocha: “A ação das massas digitais mudou radicalmente a história política brasileira ao transferir sua força para o ativismo judicial”.
Um dado muito interessante: esse ativismo fez parte da tese de doutorado do então juiz Sérgio Moro, defendida em 2002, e da Operação Lava Jato. Os esforços militares, como testifica o Orvil, para combater o comunismo, agora passariam a ter apoio do judiciário, que agregaria a bandeira da corrupção. A verdade, agora conhecida, é que a corrupção estava do lado de quem dizia combatê-la. Ainda: o golpe de 2016 é a eclosão política desse submundo de mentiras. Aliás, esse foi um golpe de brancos racistas.
O fato de membros da Lava Jato terem apoiado o ex-presidente e Sérgio Moro ter sido nomeado para o Ministério da Justiça só confirma as afinidades e a união das vísceras ávidas de poder, que deveria ser conquistado e mantido por qualquer meio e por qualquer custo, sobretudo pela manipulação de textos sagrados.
A evocação constante à verdade associada à Bíblia e à religião, em discursos de nosso cenário político, é expressão dessa profusão de intenções espúrias. Se a verdade, de fato, fosse guia de Bolsonaro, por que o sigilo de 100 anos para sua carteira de vacinação e para outros documentos oficiais? A verdade escondida.
O que é a Verdade? Ela não passa de construto discursivo: é a versão de quem está no poder. É uma loureira. Ela, essa verdade bolsonarista, afinal, dorme na cama da Mentira e se lambuza nos crimes mais hediondos contra a humanidade.
“Conhecereis a verdade, e a verdade vos condenará”.
(*) Paulo Sérgio de Proença é professor da Unilab-BA