Por Jonatas Moreth (*)
Texto publicado na edição 14 da revista Esquerda Petista
É importante, em especial para o leitor não familiarizado, fazermos a tradução, em números, da importância cultural e política do futebol e de seu principal evento, a Copa do Mundo de Seleções.
Apesar da dificuldade em fazer este tipo de levantamento estatístico, existe um consenso em todas as pesquisas existentes de que o futebol é o esporte mais popular do mundo, girando em torno de 4 bilhões de admiradores (conceito não muito preciso, é verdade, mas envolve os praticantes, torcedores e telespectadores eventuais), seguidos, com alguma distância, pelo críquete (esporte semelhante ao beisebol praticado, principalmente, nas populosas Índia e Paquistão), com 2,5 bilhões de admiradores, e pelo hóquei (incluídos aqui seus dois formatos, no gelo e na grama), com 2 bilhões.
A FIFA – Federação Internacional de Futebol possui 211 organizações esportivas filiadas, representando países ou territórios, o que a coloca com maior número de filiados que a ONU – Organização das Nações Unidas e o COI – Comitê Olímpico Internacional, que possuem, respectivamente, 193 e 205 membros. Apesar disto, a FIFA tem menos filiados do que a World Athletics (Federação de Atletismo), que possui um a mais, ou seja, 212 membros.
Este número gigantesco de membros justifica-se por uma política adotada na década de 70, quando a FIFA era presidida pelo brasileiro João Havelange, que consistia em aceitar filiações de nações que não eram internacionalmente reconhecidas como países, tais como Macau, Hong Kong, Porto Rico, ou mesmo a situação de Escócia e Irlanda do Norte, que são vinculadas ao Reino Unido.
Já a Copa do Mundo de Seleções, apesar de contar com a participação de apenas 32 países, segundo dados da edição de 2018 na Rússia, teve uma audiência televisiva de 3,575 bilhões de pessoas, com 1,12 bilhão sintonizando para a vitória da França sobre a Croácia em Moscou, o que representa dez vezes a audiência do Super Bowl, a midiática final da Liga de Futebol Americano dos Estados Unidos. Apesar de os números ainda não estarem fechados, a previsão é de que algo próximo a 5 bilhões de pessoas assistiram aos jogos da Copa do Qatar.
Tamanho gigantismo tornou o futebol um cobiçado instrumento para política internacional
Pelas suas dinâmicas próprias, como a imprevisibilidade e uma verdadeira bolha de supersalários e contratações, o futebol não é necessariamente um investimento financeiramente lucrativo. Por isto seu uso, em um número cada vez maior de casos espalhados pelo mundo, como um passaporte para adentrar em espaços da elite mundial outrora exclusivo para Europa Ocidental e Estados Unidos.
Talvez o primeiro a fazer este movimento tenha sido o magnata russo Roman Abramovich, que em 2003, com apenas 37 anos de idade, pagou 140 milhões de libras pelo Chelsea, então tradicional, mas não muito vitorioso, clube inglês. Apesar do sucesso financeiro – eis que, em 2022, em virtude da pressão do governo inglês para venda do clube diante da conhecida relação de amizade do magnata com o presidente russo Putin, o clube foi vendido por 4,25 bilhões de libras –, Abramovich nunca escondeu ver o clube como um importante ativo para sua inserção política e comercial em outros centros econômicos.
Sobre este episódio, foi publicado, em 2020, o livro Putin’s People, da jornalista Catherine Belton, onde ela relata que a compra do Chelsea pelo magnata Abramovich teria sido realizada a pedido do presidente russo, Putin, como forma de expandir a influência russa no Ocidente.
Essa fórmula, que foi reproduzida em outras ocasiões menos midiáticas e bem sucedidas, se sofisticou ao ponto de termos hoje clubes-nações, dos quais destacam-se: a) Manchester City (Inglaterra), que em 2008 foi adquirido pelo Abdu Dhabi United Group, holding para o desenvolvimento e investimento dos Emirados Árabes Unidos; b) Paris Saint Germain (França), comprado em 2011 pelo Qatar Sports Investments, fundo de investimentos ligada à monarquia do Qatar; c) Newcastle (Inglaterra), adquirido em 2022 pelo Fundo de Investimento Público (PIF) da Arábia Saudita.
Para alguns observadores, este fenômeno enquadra-se no conceito de sportwashing, que é utilização do esporte para melhorar a imagem ou reputação de um indivíduo, grupo, corporação ou estado-nação.
Portanto, é neste contexto que deve ser compreendido o esforço e a engenharia política e financeira que a monarquia do Qatar fez para ser a sede da Copa do Mundo masculina de futebol em 2022. Engenharia essa que escancarou o uso do futebol para fins políticos e de imagem, eis que, do ponto de vista futebolístico, não há um único argumento para defender essa escolha.
A comprovação de que não se trata de uma movimentação financeiramente rentável está no estratosférico investimento que o Qatar teve que fazer para sediar a Copa do Mundo, tendo em vista seu pequeno tamanho geográfico e sua pequena estrutura de estádios e outros equipamentos, tais como a infraestrutura de mobilidade urbana.
Estima-se que o pequeno país tenha investido mais de 229 bilhões de dólares, um valor 16 vezes maior do que o gasto pela Rússia, que investiu 11,6 bilhões de dólares para sediar o torneio em 2018. O Brasil, em 2014, investiu 15 bilhões de dólares.
Considerando que o Qatar é um regime autoritário e com incalculáveis denúncias de violações de direitos humanos de seus cidadãos e também de estrangeiros que cruzam a fronteira em busca de emprego, sediar a Copa foi uma operação perigosa, mas, segundo seus dirigentes, exitosa, ao ponto, inclusive, de o país cogitar se lançar para sediar uma olimpíada.
Em entrevista à BBC News Brasil, a diretora do Conselho para Compreensão Árabe-Britânica, Chris Doyle, assim sintetizou o legado da copa para o Qatar: “Políticos britânicos que sequer sabiam que o Catar existia ou como pronunciar seu nome começaram a prestar atenção ao país. (…) Grandes eventos começaram a acontecer. Então, a Copa do Mundo, de muitas formas, é o ápice desse processo. Não poderia ter acontecido sem todas essas mudanças que aconteceram antes. E acho que isso foi a forma máxima de dizer: ‘o mundo vai vir a nós’. E isso, de certa forma, será o legado (do atual emir)”.
Neste pequeno texto, comentamos uma parte do fenômeno que vem transformando o esporte mais popular do mundo, mas existem outros, tais como a entrada dos fundos de investimentos estadunidense na compra de clubes em todo o mundo e o fim dos clubes enquanto associações sem fins lucrativos para entrada dos clubes como Sociedades Anônimas.
Nenhum esporte, por mais popular e enraizado que seja, sai incólume a tamanhas transformações.
Ao ver sua legitimidade e prestígio adquirida em mais de dois séculos de construção sendo utilizada politicamente para interesses não esportivos e sociais, caberá à comunidade futebolística, formada por atletas, praticantes e torcedores, também utilizar-se da política para, mais do que resistir, construir uma revolução cultural e esportiva no futebol.
É momento para a comunidade futebolística trazer para o centro de suas reflexões e preocupações o combate ao racismo e à xenofobia no futebol; a defesa da maior igualdade de investimentos e quantidade e qualidade das transmissões televisivas do futebol feminino; a regulamentação do controle acionário dos clubes por investidores, de forma a não retirar a força decisória dos torcedores; a implementação de efetivos e rigorosos sistemas de fair play financeiro, com vistas a evitar o domínio dos principais torneios pelos denominados supertimes.
É este o verdadeiro legado que o futebol precisa.
(*) Jonatas Moreth é advogado e militante da AE DF.