Deus mentiu? Lula ganhou as eleições

Profetas e profetizas, em alta voz e audiência, predisseram a vitória de Bolsonaro. Se são porta-vozes de Deus, quem mentiu?

Por Paulo Sérgio de Proença (*)

A política partidária ocupou púlpitos e sacristias de templos cristãos, praticamente de todas as confissões, com raras e honrosas exceções. Com isso, antes das últimas eleições presidenciais, muitos falsos profetas previram a derrota de Lula.

Falsos profetas. Se Deus comanda a história, segundo a lógica religiosa, a vitória de Lula é vontade de Deus, contrariamente aos que desaprovaram Lula e decretaram a sua derrota por falsos oráculos, com a intenção de controlar a votação em um candidato e o resultado das eleições. Isso não é profecia; é crime de religião, porque engana, com apoio em princípios e símbolos de fé. Deus está longe disso.

O famoso pastor Benny Hinn (um dos príncipes da falsa profecia), por exemplo, previu que Jair Bolsonaro seria eleito:  “O trabalho de Deus está feito para o presidente do Brasil. Não é sobre mente, não é sobre poder, mas o Espírito. A sua vitória vai vir” (Portal Todocristão, 06/11/2022). Outros pastores e pastoras de diversas denominações declararam que o então presidente seria reeleito.

O que dizer, agora? Qual a vontade de Deus? De que lado ele está? Ronaldo de Almeida, professor da Unicamp, avalia a situação desta forma: “Você vai nas igrejas, e eles não sabem como explicar para o fiel como o Deus que está no comando escolheu Lula e não Bolsonaro. É uma igreja que sai fraturada, que já saiu fraturada em 2018, e agora mais ainda, pois jogaram todas as fichas na eleição do Bolsonaro” (portal Correio Braziliense, 07/11/2022).

O professor acrescenta que os chefes religiosos devem assediar o governo Lula, porque “essa característica governista das corporações da fé está ligada aos interesses particulares de cada igreja”. Curiosamente, após o resultado, a convicção profética deles parece estar mudando. Segundo o portal Correio Braziliense (07/11/2022), os pastores midiáticos que se opuseram a Lula, demonizando-o, agora estão virando casaca. Silas Malafaia e o bispo Edir Macedo e outros começam a mudar o discurso.

Contribui para desacreditar a manobra de falsos profetas o fato de que Mestre José, vidente não evangélico, além de ter previsto a derrota de Trump, acertou a eleição de Lula desde 2019, quando parecia muito mais incerta a própria sobrevivência política do então ex-presidente (portal Correio Braziliense, 30/10/2022).

A profecia é fenômeno bíblico historicamente configurado. Nasceu no contexto da monarquia do antigo Israel e com ela se extinguiu, após o exílio babilônico, no século VI a. C. Não era previsão de futuro, como muitos pensam ser. Era, antes, consciência crítica, denúncia ao risco da concentração de poder político e econômico promovido pelo regime monárquico. Profetas como Natan, Jeremias, Isaías, Amós e outros denunciavam reis e seus representantes poderosos, além dos desvios da formalidade religiosa. Vejamos alguns breves trechos:

“Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra!” (Isaías 5.8).

“Ai dos que decretam leis injustas, dos que escrevem decretos opressivos, para negarem justiça aos pobres, para privarem do seu direito os aflitos do meu povo, a fim de despojarem as viúvas e roubarem os órfãos (Isaías 10.1-2)

“[…] vocês que entram por estas portas, para adorar o Senhor […] Corrijam a sua conduta e as suas ações […]. Não confiem em palavras falsas’” (Jeremias 7.2-4)

“Vocês odeiam quem os repreende no tribunal e detestam quem fala com sinceridade […]. Vocês afligem os justos, aceitam suborno e rejeitam as causas dos necessitados no tribunal (Amós 5.1-13).

Isso é profecia.

Os escritos bíblicos a que temos acesso foram objeto de processo de transmissão oral e em posterior escrita, durante o qual passaram por ajustes diversos. Assim, as projeções relativas ao futuro, que não faziam parte do movimento profético clássico, formam uma espécie de profecia ex eventu, isto é, adaptada a conjunturas históricas já conhecidas e definidas.

Também deve ser considerada a intuição da Sabedoria antiga, para a qual valia as relações entre causa e consequência (“se fizer isso, vai acontecer aquilo”), em que o presente se projeta a um fato posterior, não por ser possível prevê-lo, mas como projeção de experiências acumuladas. Tudo isso foi influenciado e reinterpretado por tendências apocalípticas, posteriores à profecia clássica dos tempos da monarquia israelense antiga, influenciadas pela religião persa.

Nos tempos do Novo Testamento a profecia toma outra feição, ajustando-se às necessidades da catequese e da liturgia. O profeta era mais um intérprete, um professor, um líder carismático.

O movimento profético nos ensina que não se pode conhecer o futuro que, quando muito, pode ser projeção de vontade presente.

Havia falsos profetas nos tempos bíblicos. Um dos trechos mais emblemáticos sobre isso está no livro do profeta Ezequiel, 13:

Ai dos profetas insensatos, que seguem o seu próprio espírito sem nada terem visto! […] As visões que eles tiveram são falsas e as adivinhações são mentirosas. Dizem: ‘O Senhor disse’, quando o Senhor não os enviou.  E ainda esperam que a palavra se cumpra! […] Portanto, assim diz o Senhor Deus: “Como vocês anunciam falsidades e têm visões mentirosas, por isso eu estou contra vocês”.

É tempo de reflexão para o povo cristão do Brasil. Chega de falsas profecias. Quem quiser militar na política, que se filie a partidos e ocupe palanques. Nome de Deus em vão, não! É tempo de quaresma permanente nos vínculos entre religião e política. Virá a penitência?

(*) Paulo Sérgio de Proença, evangélico, professor da Unilab-BA.

 

 

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