Do “verão quente” a um “novo sindicalismo” nos EUA?

“Estamos cansados de viver em um mundo que prioriza os lucros mais do que as pessoas. (…) Estamos cansados da cobiça corporativa sempre procurando mais ganhos, e vamos lutar juntos como nunca para mudar esse cenário” – discurso de Shawn Fain, presidente do United Auto Workers (UAW, o sindicato estadunidense dos trabalhadores do setor automotivo), 31 de agosto, 2023.

Marcha de trabalhadoras e trabalhadores da Starbucks em defesa da sindicalização

Por Jana Silverman (*)

O movimento sindical estadunidense, que tem sido alvo de críticas (legítimas ou não) nas últimas décadas por ter mostrado pouca consciência de classe e de ter adotado táticas mais conciliadoras nas mesas de negociação coletiva e nas alianças políticas forjadas com o Partido Democrata, parece, hoje, estar vivenciando o começo de um renascimento. Uma nova onda de ativismo sindical está surgindo da base, principalmente entre os trabalhadores jovens, mulheres e LGBTQ+ tradicionalmente excluídos dos espaços de poder nas grandes organizações sindicais. Impulsado por um governo federal pelo menos nominalmente mais pró-sindical do que as administrações anteriores e pelas suas próprias experiências de sobre-exploração e desproteção durante a pandemia de COVID-19, esta militância jovem está encabeçando novos processos de sindicalização em empresas e organizações de todo tamanho ao redor do país, e também liderando processos de renovação dentro de sindicatos importantes, como o acima referido UAW, através da construção e promoção de oposições sindicais. Mas ainda é cedo para determinar definitivamente se este momento de ressurgimento da classe trabalhadora estadunidense é apenas uma anomalia política ou se representa uma transformação mais profunda.

Diferentemente dos sindicatos em outros países desenvolvidos, o movimento sindical estadunidense nunca alcançou representar a maioria absoluta dos trabalhadores no país, e não conseguiu pressionar o governo para o estabelecimento de um sistema mais abrangente de proteção social que beneficiaria a todos os trabalhadores, sejam sindicalizados ou não, como existem nos Estados de bem-estar social na Europa. Esses fracassos vêm não só das escolhas estratégicas do próprio movimento sindical, mas também do fato objetivo de que a legislação trabalhista dos EUA é extremadamente antissindical e a influência preponderante da classe empresarial no poder Legislativo e Executivo do país tem obstaculizado a aprovação de propostas de reforma trabalhista que poderiam pôr fim aos grandes obstáculos legais que existem à livre sindicalização, à negociação coletiva a nível setorial, e à greve. O governo Biden introduzia uma proposta de lei conhecida como o PRO Act em 2021, que ajudaria a destravar novos processos de sindicalização e aumentaria o valor das multas financeiras impostas nas empresas que não respeitam o direito de livre associação dos seus trabalhadores, mas os interesses corporativos que permeiam tanto o Partido Republicano quanto uma fração majoritária do Partido Democrata têm inviabilizado a aprovação desta nova legislação.

De qualquer jeito, a classe trabalhadora estadunidense está se levantando e se sindicalizando agora, a despeito dos obstáculos existentes nas leis trabalhistas atuais. Este processo de reativação da militância sindical está ligado a um processo maior de radicalização e politização dos trabalhadores estadunidenses num sentido mais geral. Para as gerações mais novas, o consagrado “sonho americano”, que oferecia empregos estáveis e bem-remunerados que permitia um estilo de vida “classe média” para um contingente grande dos trabalhadores do país, agora é mais ilusão do que realidade. Os trabalhadores millenials (nascidos entre os anos 1981 e 1996), são a primeira geração de norte-americanos em tempos recentes que efetivamente tem uma renda menor e um estilo de vida mais precário do que as gerações anteriores.  Segundo dados da Reserva Federal dos EUA, apesar de representar a maior fração da força do trabalho no país, os millenials só controlavam 4,6% da riqueza estadunidense em 2020, enquanto a geração baby boomer, nascida após a Segunda Guerra Mundial, controlava 53,2% da riqueza do país em 2020 e possuíam 21,3% do estoque da riqueza quando tinham a mesma idade dos millenials de hoje.

Esta discrepância não surgiu do nada.  Exatamente quando muitos millenials estavam entrando no mercado de trabalho, a crise financeira de 2008 causou a perda de mais de 2,6 milhões de empregos, deixando os jovens trabalhadores sem possibilidades de trabalho e em situações de alto endividamento para pagar os custos exorbitantes de matrícula nas universidades do país.  E devido ao alto grau de financeirização da economia estadunidense, a recuperação após a crise de 2008 trouxe lucros recordes para os investidores e empresários, mas sem a geração de empregos de qualidade.  A pandemia do COVID-19 agudizou ainda mais as contradições de classe, com os trabalhadores mais precários nos setores da saúde, comércio, alimentação e logística obrigados a trabalhar sem as devidas proteções sanitárias e sem abonos para a insalubridade, enquanto os bilionários registrarem lucros sem precedentes. Um sentimento de mal-estar e de descontentamento com o sistema atual entre os jovens começou a brotar, primeiro em expressões políticas, como o movimento anticapitalista Occupy Wall Street em 2010, a pré-candidatura do Senador social-democrata Bernie Sanders pela Presidência em 2016, e o crescimento de grupos de esquerda, como os Socialistas Democráticos da América (DSA, no inglês), e agora na nova onda de ativismo sindical no país.

Esta militância sindical emergente se destaca tanto pela sua forma quanto pelos resultados de fundo. Ao contrário das campanhas mais tradicionais de sindicalização nos EUA, que costumeiramente dependem em grande parte da ajuda de assessores sindicais externos, conhecidos como organizers, as campanhas recentes, que conseguiram sindicalizar os trabalhadores da Amazon e da franquia de lojas de café Starbucks, têm sido dirigidas e implementadas quase exclusivamente pelos próprios trabalhadores de base sem um papel preponderante de assessores ou dirigentes sindicais sem conexões orgânicas a essas empresas.  Do mesmo modo, ativistas jovens socialistas de DSA, em conjunto com o sindicato dos eletricitários, o United Electrical Workers, criaram um projeto para dar assessoria grátis a trabalhadores de base que buscavam se sindicalizar, conhecido como o Emergency Workplace Organizing Committee (EWOC).  Só em 2020-2022, mais de 3000 trabalhadores utilizaram os serviços de EWOC para aprender como lutar pela representação sindical, resultando na sindicalização de novos trabalhadores nos setores da educação, serviços, comércio e transporte, entre outros.  Esta dinâmica de sindicalização desde e pela base está aumentando e está impactando qualitativamente e quantitativamente no movimento sindical. Por exemplo, em 2022, o governo estadunidense recebeu 2.510 solicitações para reconhecer a representação sindical para novos grupos de trabalhadores, um aumento de 53% em comparação com as 1.638 solicitações enviadas em 2021.

O embrionário “novo sindicalismo” estadunidense também se destaca, em sentido parecido ao novo sindicalismo brasileiro dos anos 70-80, por impulsar novas lideranças sindicais, mais democráticas e politizadas. Um caso emblemático é do UAW. Um sindicato originalmente formado, em parte, graças à militância de comunistas e trotskistas, terminou sendo controlado, por décadas, por uma agrupação mais conservadora (a tendência “Administration Caucus”), que, inclusive, estava implicada em escândalos de corrupção em anos recentes. Ao mesmo tempo, muitos estudantes de pós-graduação que trabalham como assistentes de pesquisa, docentes, e trabalhadores administrativos nas universidades públicas e privadas têm se filiado à UAW nas últimas duas décadas, e agora esse contingente de trabalhadores (com perfil mais jovem e politicamente mais à esquerda) representa mais de 20% da base do sindicato. Eles e os filiados da UAW do setor metalúrgico com uma visão mais crítica do Administration Caucus se uniram para montar uma chapa de oposição, que foi vitoriosa nas eleições realizadas entre dezembro de 2022 e março de 2023.  Agora, o novo presidente, Shawn Fain, está liderando a maior greve no setor industrial nas últimas décadas, envolvendo mais de 146 mil trabalhadores.

A greve da UAW parece ser apenas a ponta de lança de um movimento mais abrangente de militância sindical, o que alguns analistas e jornalistas têm chamado de “Hot Labor Summer” (“verão quente sindical”). Além dos metalúrgicos, há greves pipocando em mais de 500 localidades ao redor do país, envolvendo milhares de trabalhadores da saúde, da hotelaria, do comércio, e até de atores de Hollywood e Broadway. O aumento nas desigualdades econômicas, combinado com uma maior politização da classe trabalhadora estadunidense e as inovações estratégicas sendo praticadas para o movimento sindical, sugere que estamos num momento de inflexão para o sindicalismo norte-americano. Mas, até que haja maiores garantias na lei para o pleno cumprimento dos direitos sindicais e uma renovação da cúpula de outras organizações sindicais, é possível que o “verão quente sindical” venha a esfriar. Só o acúmulo político e organizativo das forças a favor da classe trabalhadora, medido contra a força do capital, vai determinar se estamos verdadeiramente na esteira de criar um “novo sindicalismo” estadunidense neste momento.

(*) Jana Silverman é coordenadora do Comitê Internacional, Socialistas Democráticos dos EUA (DSA).

 

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