Por Adriano Bueno (*)
Desde o assassinato de Martin Luther King Jr há mais de 50 anos os EUA não balançavam diante de uma onda de manifestações de rua tão explosiva. Mais de 40 cidades estão em toque de recolher. Mais de 75 cidades registraram protestos nos EUA, além de Paris e Londres.
O Estopim
Minnesota, 25 de maio, segunda-feira. George Floyd, um homem negro de 46 anos, segurança desempregado, é acusado por um comerciante de ter passado uma nota falsa. Desarmado, Floyd é imobilizado pelo policial Derek Chauvin com força desproporcional e excessiva.
Com o joelho do policial sobre seu pescoço, Floyd implora: “não consigo respirar”. Desmaia, em frente a outros policiais que assistem passivos a cena de terror. 8 longos minutos e 46 segundos depois, Floyd morre assassinado.
Com tudo filmado, as imagens correm os EUA e o mundo. Os dias seguintes foram de intensos protestos, com mais imagens correndo o mundo: multidões nas ruas, viaturas incendiadas, saques, prisões e mais repressão policial.
A Contradição
Para entender o que se passa nos EUA, quero propor um retorno ao início de 2020, antes da pandemia e da quarentena. Duas candidaturas pleiteavam o direito de disputar as eleições norte-americanas pelo Partido Democrata: Bernie Sanders, de centro-esquerda; e Joe Biden, de centro-direita.
Após o caucus de Iowa, as primárias de New Hampshire e o caucus de Nevada, Sanders liderava a corrida eleitoral e despontava como favorito nas pesquisas. Biden, implicado em um escândalo de corrupção envolvendo uma empresa vinculada a seu filho na Ucrânia, apostou suas fichas nas primárias seguintes: a Carolina do Sul e a Super Terça, onde mais de um terço dos delegados seriam definidos.
As primárias em seguida, na Carolina do Sul, aconteceriam em um estado onde o eleitorado afro-americano compõe 60% da base social democrata. Para surpresa geral, a Carolina do Sul, com seu eleitorado majoritariamente afro-americano, foi o trampolim que impulsionou a vitória de Biden na Super Terça.
Como pode, com todas as suas propostas que priorizam protagonismo estatal em políticas de educação e saúde, Bernie Sanders ter sido preterido em favor do neoliberal gourmet Joe Biden? O que teria motivado a preferência dos afro-americanos por Biden? Eis um debate a ser feito. Nas linhas que seguem, quero sugerir algumas possibilidades.
O Nó
Joe Biden teve a seu favor o “establishment” democrata, que todos sabemos ser dirigido por Hilary Clinton. Na Carolina do Sul, o influente congressista afro-americano Jay Clyburn afirmou que “Biden daria continuidade ao legado do Obama”.
Como sabemos, Biden é o modelo padrão do homem de poder norte-americano. Advogado, democrata raiz, católico, branco e hétero. Existe toda uma simbologia no fato de ter “aceitado” a condição de coadjuvante de um protagonista afro-americano, o primeiro presidente negro dos EUA. Nem foi necessário que Obama se posicionasse. As suas imagens já estavam mais do que associadas.
Nem mesmo o apoio de importantes referências do movimento negro norte-americano do calibre do reverendo Jesse Jackson, do filósofo Cornel West ou do rapper Chuck D garantiu sucesso a Sanders, que em sua juventude frequentou protestos por direitos civis e chegou até a ser preso em um deles.
É necessário colocar na conta as diferentes características dos estados do sul dos EUA — predominantemente rurais, mais pobres e menos escolarizados — em contraste com grandes centros urbanos como Nova Iorque, Los Angeles ou Chicago.
A campanha de Sanders, com seus temas de vanguarda, dialogava melhor com o norte e dependia muito de um exército de militantes voluntários — predominantemente jovens brancos universitários e de classe média — que fizeram muita falta no sul contra a máquina eleitoral de Biden.
Por fim, vale ressaltar que não podemos olhar para afro-americanos do sul dos EUA pela mesma lente pela qual olhamos o movimento negro brasileiro, um movimento que renasce em 78, ao lado do novo sindicalismo do ABC e sob influência hegemônica de uma análise da escravidão e da inserção do negro na sociedade de classes pela ótica marxista. Quem no movimento negro ousou flertar com o marxismo nos EUA, como os Black Panthers Party, foi violentamente reprimido.
Raça e Classe: o Racismo é um dos Pilares da Dominação Capitalista
O identitarismo tem muita força entre afro-americanos, para os quais representatividade parece ser um caminho para resolução de dilemas de raça e classe social. Entretanto, nas palavras cortantes do filósofo afro-americano Cornel West em análise recente para a CNN, “o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) surgiu sob um presidente negro, um advogado geral negro e um chefe da segurança nacional negro”.
Durante a pandemia causada pelo Coronavírus os negros registraram uma taxa de mortalidade maior, tendo procurado hospitais tardiamente ou até mesmo falecido em casa por não terem condições de pagar pelo serviço privado de saúde. Tudo isso pouco tempo depois de Bernie Sanders ter empunhado a bandeira do Medicare For All, uma espécie de proposta de SUS para norte-americanos. Uma trágica ironia.
Mas antes de culparmos os afro-americanos da Carolina do Sul — ou os latinos do Texas, ou os eleitores negros do Bolsonaro — devemos pensar em como a ideologia neoliberal hegemonizou o debate econômico no mundo todo. A ponto de, no processo eleitoral norte-americano deste ano, os dois principais candidatos — o republicano Donald Trump e o democrata Joe Biden — terem um programa econômico cuja essência é idêntica.
A política de segurança pública que encarcera em massa e aborda com violência, tratando negros como inimigos internos nos EUA e no Brasil; assim como a sabotagem do isolamento social como único mecanismo de combate ao espalhamento da Covid-19 que fatalmente levará ao colapso do sistema de saúde, são ambas consequências diretas de escolhas erradas feitas na economia, a favor do Capital e em detrimento da vida.
O Brasil importa esse modelo fracassado, e não por acaso alguns dias antes viu a polícia assassinar um garoto negro de 14 anos, o João Pedro, dentro de sua casa, com tiros de fuzil. Lá como cá, os capitalistas alcançaram êxito eleitoral para implementar o neoliberalismo pela chave do fascismo, aprofundando contradições já expostas pela política econômica neoliberal.
O Neoliberalismo Não nos Deixa Respirar
Os protestos se espalharam com a mesma rapidez do vírus e a juventude norte-americana calculou que o risco da contaminação é menor do que o risco de silenciarem-se diante da violência racial. Cidades como Los Angeles, Filadélfia, Nova Iorque, Boston, Portland, Washington ou Minnesota, onde tudo começou, estão em chamas.
Mortes de negros por estrangulamento por parte de policiais são uma triste rotina nos EUA. No final dos anos 80, há mais de 3 décadas, o filme Faça a Coisa Certa (Do The Right Thing) do Spike Lee nos apresentava o personagem Radio Raheem sendo assassinado por estrangulamento por um policial. Na sequência uma multidão enfurecida apedreja e põe fogo na pizzaria onde o confronto começou.
Em 2014, Eric Garner foi assassinado — por estrangulamento! — diante de uma câmera de celular, após ter sido denunciado por estar comercializando cigarros soltos na calçada. Sua última frase: “não consigo respirar”.
Diante do caos instalado, Trump anuncia o uso da força. Previsível. No Brasil, seu boneco de ventríloquo trabalha pelo caos desde o princípio da pandemia, para assumir plenos poderes impondo-se pela força também.
Já o Partido Democrata, equilibrando-se entre dissociar-se da violência ao mesmo tempo em que considera os atos legítimos, não consegue expressar o desejo das massas nem propor alternativa. O analista negro Asted Herndon escreveu no New York Times que os negros americanos possuem uma mensagem aos democratas: “tirar Trump não basta”.
O movimento avança. Já são 9 dias seguidos com multidões na rua. Não há sinais de que a mera punição vá resolver o impasse: a juventude que ocupou as ruas quer mudanças na estrutura de segurança pública do país.
Será possível operar mudanças estruturantes na política de segurança pública dos EUA sem alterar substancialmente a política econômica? Difícil acreditar, pois uma me parece consequência direta da outra.
Não sabemos qual será o desfecho. Mas desde já sabemos que o candidato que melhor poderia enfrentar a pandemia e a violência policial, permitindo aos negros ao menos respirar, está fora do páreo.
Que os manifestantes tenham a percepção e o desejo de enquadrar o movimento anti-racista numa perspectiva cujo sentido seja anti-neoliberal, com um horizonte anti-capitalista de longo prazo.
E que o movimento negro seja lembrado por colocar em xeque o consenso de Washington que nivela democratas e republicanos como duas faces da mesma moeda, em um processo de superação do modelo neoliberal fracassado. Tanto lá, quanto cá.
(*) Adriano Bueno é militante do MNU e do PT Campinas