Estado geral da África no começo de 2023

Por Jonuel Gonçalves (*)

Pessoas seguram velas e bandeiras etíopes durante um serviço memorial para as vítimas do conflito do Tigray em Addis Abeba, Etiópia.Novembro de 2022. EDUARDO SOTERAS/AFP.

Artigo publicado na edição 14 da revista Esquerda Petista

Durante décadas do século XIX e começo do XX, os poderes coloniais negavam a existência de História da África antes deles. Destruída essa narrativa, cresceu o interesse pela História do continente africano, desde antes dos europeus até as conquistas das independências. Porém, salvo alguns momentos, a atualidade africana tem estado ausente da grande mídia e até de movimentos de combate ao racismo, ao mesmo tempo que surgem, com frequência, afirmações de exacerbada especificidade africana, dando a impressão de a África não fazer parte do mundo e seus problemas comuns.

Este artigo foca a atualidade africana a partir de elementos em curso, reveladores das fortes semelhanças dos desafios e das lutas da África com o resto do planeta. Assim, as primeiras semanas deste ano tiveram alguns pontos de destaque, em geral continuidade de ocorrências, problemas e iniciativas de anos anteriores.

As eleições legislativas do Benim e da Tunísia, o terrorismo no Burkina Faso, a implementação do acordo de paz na Etiópia, a crise energética severa na África do Sul e a visita do Papa à República Democrática do Congo têm grande valor demonstrativo da conjuntura no continente.

Nas eleições beninenses ou tunisianas, o elemento que mais chama a atenção é a elevada taxa de abstenção, fato verificável em grande número de países africanos. A participação no Benim foi de 37,79%. A aliança dos dois partidos favoráveis ao atual presidente obteve maioria parlamentar com 81 dos 109 lugares. A oposição protestou e submeteu o protesto ao Tribunal Constitucional. Nas eleições anteriores, as forças oposicionistas boicotaram após proibição de vários candidatos. Desta vez, as reclamações são de erros na apuração e apresentam grande contraste com a vizinha e poderosa Nigéria, onde o equilíbrio de forças é mais acentuado e as regras de transparência mais respeitadas.

Na Tunísia, a abstenção foi arrasadora: cerca de 89%, resultado do boicote de forças liberais, de esquerda ou islamistas. Os deputados eleitos nestes limites são independentes e ninguém consegue garantir suas tendências ou se o governo vai alcançar maioria entre eles.

Desta forma, as eleições em ambos são vistas como produzindo legitimidades duvidosas, mas em campanhas eleitorais abertas e reconhecimento da fraca participação, portanto muito diferente da farsa eleitoral organizada, semanas antes, na Guiné Equatorial para “reeleger” o ditador Teodoro Obiang, no poder há mais de 44 anos.

Além de ditadura, o regime de Obiang é conhecido mundialmente pela sua corrupção extrema e existência de autêntica dinastia, uma vez que o vice-presidente é filho e herdeiro político do ditador. Os serviços governamentais publicaram dados habituais nas ditaduras: atribuem a Obiang 95% dos votos e todos os lugares no legislativo.

Defensores dos direitos humanos assinalam a existência de 500 presos políticos neste país rico em petróleo e acusam a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) de silêncio perante este quadro. Na verdade, a Guiné Equatorial é de língua oficial espanhola, mas pediu adesão à CPLP há alguns anos e foi admitida, apesar de várias objeções, com o forte apoio angolano e brasileiro. Mais recentemente, Angola pediu explicações ao regime equato-guineense sobre não cumprimento de normas mínimas, sem grande sucesso.

Campanha eleitoral merecedora desse nome está em andamento na Nigéria no momento da redação deste texto e, no segundo semestre de 2022, decorreram processos eleitorais em Angola, onde o MPLA, partido no poder, fez cerca de 51% e perdeu na capital, enquanto no Senegal a coligação dominante só se manteve com um deputado de diferença.

Ponto comum: em todas estas eleições – corretas, defeituosas ou de fraude gigantesca – a maioria do eleitorado absteve-se, proporcionando um bloco de reflexões em meios democráticos africanos sobre as legitimidades dos poderes, condição essencial para elaborar políticas de desenvolvimento. Por essa razão, as cinco unidades de integração sub-regional têm dedicado a maior parte de seus esforços à estabilidade institucional e resolução de conflitos.

Terrorismo e Golpes de Estado

A região do Sahel – extensa faixa entre o Saara e as savanas – é palco de duro confronto entre estruturas governamentais apoiadas por aliados externos e movimentos jihadistas armados. O Burkina Faso é dos que mais tem sofrido com atentados, ataques terroristas, e a má definição da política de defesa acabou por criar condições propícias a golpe de estado contra um regime democraticamente eleito. Aliás, a eclosão de golpe dentro do golpe levou ao poder um novo segmento do exército.

Apesar da mudança ter sido anunciada para maior eficácia na ação antiterrorista, a violência jihadista prossegue e, em finais de janeiro, deu uma prova de força através de ataque a forças de segurança e voluntários de autodefesa. Este ataque ocorreu nas proximidades da fronteira do Niger que, junto com o Mali, são palco de guerra terrorista contínua, havendo risco de extensão ao Benim e Togo, países do Golfo da Guiné, região petrolífera de impacto mundial e onde é notória a presença de pirataria, quase sempre com base na Nigéria, já tendo superado igual ameaça nas águas próximas à Somália.

Grande ameaça à navegação internacional, a dimensão da pirataria no Golfo é cada vez mais desafio no Atlântico Sul, ou seja, de alto interesse para países como o Brasil. Tanto ela como o terrorismo são conflitos cujo resultado depende da capacidade militar de resposta. A situação no Burkina Faso é, neste pormenor, significativa. Os dois golpes militares ocorridos neste país são adicionais a dois golpes anteriores – e ainda no poder – na Guiné Conakry e no Mali. Se as alianças internacionais guineenses permanecem sem alteração, no Mali e no Burkina Faso as juntas militares ordenaram a retirada das tropas francesas que se encontravam em seus territórios e assinaram acordos com a empresa russa Wagner, que se designa como provedora de assistência militar, mas é acusada pelas oposições e chancelarias ocidentais como entidade de mercenários.

O mais importante nesta matéria é constatar as fortes rivalidades entre grandes potências na África atual, com possibilidades de radicalização.

O conflito etíope conheceu três anos de choque entre o governo federal e o governo regional do Tigray, em torno dos direitos das províncias ou comunidades e da convocação de eleições. Milhares de mortos, centenas de milhar de deslocados, destruições de infraestruturas e populações inteiras ameaçadas de subnutrição conduziram a iniciativas da União Africana e a um acordo de paz ainda na fase inicial de aplicação. Guerra sem vencedores, sendo mérito deste acordo preservar a unidade da Etiópia num quadro que sua Constituição define como plurinacional, ou seja, os grupos populacionais componentes têm estatuto de nacionalidades.

Mesmo assim, houve uma intervenção armada externa, africana, no caso. Forças da vizinha Eritreia entraram na província do Tigray com acordo do governo federal de Adis-Abeba, gerando protestos em todo o continente em virtude do regime eritreu ser do tipo equato-guineense. O acordo de paz prevê sua retirada.

A Etiópia, além de ser sede da União Africana, enfrenta também um conflito não armado com o Sudão e o Egito em virtude da utilização da água do Nilo, fator estratégico de primeiro plano. As autoridades etíopes construíram uma super-represa numa faixa deste rio, causando protestos dos outros dois alegando retenção de águas que reduziria o caudal. É um tipo de conflito prolongado, também existente em outros pontos do globo, num momento de grande luta em torno de recursos energéticos e transições climáticas.

Os caminhos do desenvolvimento

Em geral, a capacidade e potencial energéticos africanos são vistos em termos de exportação, refletindo interesses externos. Porém, o próprio continente tem necessidade desses recursos para seu próprio desenvolvimento, não havendo países africanos sem obstáculos socioeconômicos tanto na água como na eletricidade. Mesmo na África do Sul, tal fato ganhou posição número um.

Nos últimos anos, os apagões tornaram-se tão frequentes neste país a ponto de funcionarem como poderoso gargalo de estrangulamento de toda a vida econômica ou doméstica. A poderosa empresa estatal Eskom vive em endividamento crescente, só resistindo com importantes subsídios estatais, e as grandes ou médias empresas adquiriram meios geradores próprios, aumentando os custos de produção e a fatura dos combustíveis nas contas nacionais. Naturalmente, tornou-se problema político com protestos de rua e, mesmo o ANC, partido governamental, é favorável a decreto de estado nacional de desastre.

De fato, o déficit de infraestruturas é geral na África, constituindo, junto com a ausência de valorização dos recursos humanos, impeditivo a qualquer processo de desenvolvimento. São duas prioridades fixadas nas cinco macrorregiões cuja solução depende da natureza das instituições nos diversos países.

Nesse sentido, as declarações do Papa Francisco em Kinshasa ganharam relevo. Tocou alguns pontos sensíveis perante multidões que nenhum político local consegue neste momento reunir. Sem dizer nenhuma novidade, o Papa enumerou várias causas do subdesenvolvimento africano já apontadas pelos movimentos sociais e lhes deu mais força moral. A República Democrática do Congo está, pela primeira vez na sua História, no caminho da democratização, estando no poder uma força política com décadas de oposição e alvo de repressão. Para os avanços democráticos, diversos movimentos sociais tiveram importância estratégica, prosseguindo sua ação em defesa dos direitos humanos e da paz.

Estes dois pontos aparecem estreitamente ligados, sobretudo nas províncias do Kivu, junto aos Grandes Lagos e à fronteira de Ruanda. Nessa área, está em curso uma guerra com dezenas de milícias étnicas e um agrupamento mais forte, o M23, apoiado pelo governo autoritário do vizinho ruandês. A insegurança persistente impediu a deslocação do Papa a Goma, principal cidade da região, mantendo-se a ameaça de confronto entre os exércitos dos dois países. As etapas já conseguidas de democratização na RDC e a ameaça de passagem do conflito a guerra clássica são dois pontos de elevada influência em toda a África Central.

Além de suas vastas riquezas mineiras e do potencial agrícola, a RDC possui a maior superfície africana e é o país com mais fronteiras, ou seja, cenário cheio de riscos de extensão, como ocorre no Sahel com o jihadismo. A presença do Papa chamou a atenção mundial para este contexto e para a contradição essencial na África desde sempre: continente rico com as populações mais pobres do mundo. As taxas de crescimento dos PIBs refletem, em geral, altas nos preços da matérias-primas ou períodos de grandes obras de infraestrutura, sem os indispensáveis benefícios sociais.

A fragmentação do continente em número excessivo de países – prática contrária ao panafricanismo – é um obstáculo suplementar, na medida em que a maior parte dos 54 países africanos não possuem condições materiais e humanas propícias ao desenvolvimento. Por essa razão, a União Africana lançou um projeto de mercado comum continental e as entidades de integração sub-regional procuram suscitar mercados comuns à sua escala ou criação de moedas comuns.

Denominadas Comunidades Econômicas ou Comunidades de Desenvolvimento, elas estão presentes nas referidas cinco macrorregiões – Norte, Oeste, Centro, Leste e Austral –, dependendo de sua efetividade a implementação do próprio mercado comum africano, tarefa para duas ou mais gerações. A fase atual é de lançamento das bases, a primeira das quais é a democratização. Sem ela, será impossível combater a concentração da riqueza frequentemente ligada à corrupção e definir prioridades. Daí as Comunidades Econômicas ou de Desenvolvimento sancionarem países com governos saídos de golpes de estado, ao mesmo tempo que a sociedade civil cresce por toda a África em total oposição a regimes autoritários.

A Fundação Mo Ibrahim, conhecida por suas pesquisas relativas ao desenvolvimento e governabilidade na África, publicou neste começo de ano o sempre muito citado relatório. Partindo de quatro indicadores maiores – oportunidades econômicas; desenvolvimento humano; direitos e inclusão; segurança e Estado de Direito – o relatório assinala que 70% dos africanos vivem em países onde se assiste a um processo de degradação das condições de vida, em larga medida pela queda nos níveis de segurança e nas bases do Estado de Direito, comparando com 2012.

Na tabela que elabora sobre governabilidade no sentido amplo – incluindo, portanto, democracia e níveis de vida –, os países melhor posicionados conhecem eleições justas e capacidade de gestão pública, sendo notável constatar que alguns desses países eram considerados como de futuro muito incerto no momento da descolonização. Nessa tabela, surgem nos lugares da frente três pequenos arquipélagos com pouco impacto mesmo nas suas sub-regiões, e a presença da Tunísia levanta algumas interrogações, devido a acontecimentos recentes condutores à mencionada hiperabstenção eleitoral.

Mesmo assim, é um instrumento útil de análise:

  1. Maurícia
  2. Seicheles
  3. Tunísia
  4. Cabo Verde
  5. Botsuana
  6. África do Sul
  7. Gana
  8. Namíbia
  9. Senegal
  10. Marrocos

As cinco piores situações, segundo este documento, são:

  1. República Centro Africana
  2. Guiné Equatorial
  3. Eritreia
  4. Somália
  5. Sudão do Sul

Cabo Verde, apesar de ser o País de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) com menos recursos naturais, é o mais bem posicionado, tanto em termos institucionais como sociais. Dos outros, São Tomé e Príncipe surge em 11º; Moçambique, em 26º; Angola, em 40 º (com alguns progressos em relação a anos anteriores), e a Guiné-Bissau, em 44º.

O valor das instituições

Dois outros aspectos têm destaque no relatório da Fundação Mo Ibrahim: um vasto número de países tem líderes há mais de 18 anos consecutivos no poder e prossegue o afastamento dos ritmos necessários aos Objetivos do Milênio, aliás, neste momento já vistos como exigindo correção realista.

Esta correção passa por um processo simultâneo que exige muita determinação: por um lado, o reforço e ampliação do papel dos movimentos sociais; por outro lado, a renovação das lideranças partidárias ou mesmo a emergência de novas formações políticas. Sem estes requisitos, os esforços das Comunidades Econômicas ou de Desenvolvimento serão sempre contrariados por agentes do contradesenvolvimento, poderosos em certos Estados membros.

Importante é que, sendo a África o Continente com mais regimes violadores dos direitos humanos e os mais baixos níveis de vida, é na África que se travam as lutas mais duras pela democracia e sua base material.

No imediato, os efeitos das eleições nigerianas são de larga repercussão na África do Oeste, mas, nesta macrorregião, o ano pode ser preenchido também por mais atentados terroristas e por protestos de rua exigindo eleições aos regimes golpistas. A República Democrática do Congo, país presente em três macrorregiões (Central, Leste e Austral), onde os desafios vão desde o imperativo de convivência interétnica ao aproveitamento dos recursos em benefício do desenvolvimento com melhoria da vida cotidiana, tem eleições marcadas para final do ano.

A Norte, todos os países influem no Mediterrâneo e no Sahel. A principal potência continua sendo o Egito, mas nenhum dos outros é de se subestimar, incluindo a Líbia, apesar da instabilidade e insegurança ou por esses motivos mesmo.

A África do Sul está num cruzamento de opções. Tanto pode resultar na continuação de potência sub-regional como em situações de perigoso racionamento energético.

Este é um tema que relançou o grande interesse internacional pela África – energia. Angola, Nigéria e Argélia figuram no topo desta agenda, mas a Líbia recupera também o seu lugar anterior. No entanto, a importância finalmente concedida às energias renováveis coloca qualquer Estado africano em ótima posição.

A conjuntura internacional apresenta oportunidades para o continente, não só na energia, mas também no agroalimentar, outra parcela determinante na inflação mundial. Aqui é a questão dos “parceiros” que se coloca. Todos os grandes “parceiros” da África têm se conduzido da mesma forma que as velhas potências coloniais: busca de matérias-primas, prestação de serviços muito rentáveis e, no final, o continente recolhe alguns benefícios e enormes dependências. Nos novos relacionamentos ou na chamada “cooperação Sul-Sul”, este quadro já devia estar superado, porém só o será a partir do momento em que a África ganhe a força suficiente para ser tida em consideração. Isto implica diversificação das suas economias e liquidação dos regimes predatórios.

Os grandes eixos de luta na África são semelhantes aos do resto do mundo, com a diferença que o continente africano tem de recuperar rapidamente o tempo e terreno perdidos. A soma nominal dos PIBs africanos tem estimativa de 3,14 trilhões de USD este ano, quer dizer, inferior ao PIB alemão. Os 3,9% de crescimento previstos pelas instituições financeiras internacionais para este ano são insuficientes para essa recuperação, na medida em que partem de quantitativos muito baixos. O combate democrático não se pode instalar no fatalismo de que a África é mais lenta na matéria.

Os movimentos sociais internos vão sem dúvida ampliar-se e vários governos ditatoriais e ineficazes vão ter problemas. A dúvida é como se comportarão as grandes ou médias potências internacionais: se vão facilitar o caminho das forças da renovação ou se prosseguirão ajudando aquele tipo de governos.

(*) Jonuel Gonçalves é pesquisador em Economia Internacional. Tem doutorado pela UFRRJ e pós-doc pela UFF.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *