Por Jana Silverman (*)
Neste primeiro mês de governo da nova/velha administração Trump, duas imagens recentes caracterizam bem a estratégia, o tom e o teor da política doméstica e externa deste projeto neorrealista e neoautoritário. A primeira imagem data de 28 de fevereiro, quando um presunçoso Volodymyr Zelensky — desafinado com as novas sinalizações do governo Trump a respeito de manter os apoios, antes quase irrestritos, ao esforço bélico ucraniano — ficou atordoado e confuso após a reprimenda dada a ele, publicamente, na Casa Branca, por parte de Trump e seu vice, JD Vance. A segunda imagem data de 7 de fevereiro, quando, em resposta às medidas para reduzir drasticamente o tamanho da força de trabalho dos servidores públicos federais, deputados federais do Partido Democrata — cerca de uma dúzia — tentaram entrar nos recintos do Departamento de Educação sem nenhum sucesso, bloqueados, efetivamente, pelos jovens escudeiros de Trump e seu verdadeiro subchefe, Elon Musk. A primeira imagem nos assinala o colapso da política externa wilsoniana implementada por Biden, Obama e Clinton, baseada na projeção do poder do império estadunidense através do uso estratégico das organizações multilaterais. A segunda imagem nos demostra o fracasso total, até agora, da estratégia embrionária do Partido Democrata de enfrentar os piores excessos do governo Trump. Após o turbilhão desse primeiro mês de governo, resta ver como Trump vai aprofundar seus ataques na versão truncada do estado de bem-estar norte-americano e nas instituições de governança mundial, e se os Democratas, em algum momento, vão agir, mais coerentemente e contundentemente, como uma verdadeira oposição a esse blitzkrieg neofascista.
Em matéria de política doméstica, Trump entrou, decisivamente, placando seus aliados neonacionalistas e neopentecostais com seus ataques contra imigrantes e a agenda “woke”, que apoia a igualdade de gênero e raça. Concomitantemente a isso, ele deu passe livre para seus amigos neolibertários do Vale do Silício reestruturarem os órgãos do governo federal, em teoria, para cortar gastos, mas, em realidade, para criar um clima de medo absoluto entre os funcionários públicos ligados ao chamado “Estado Profundo”, que obstaculizaram alguns dos projetos políticos do Trump no seu primeiro mandato. Segundo dados compilados pela CNN, mais de 27 mil servidores federais já foram demitidos, além dos 75 mil servidores que, voluntariamente, aceitaram um pacote de benefícios em troca de sua demissão voluntária.
Mesmo que esse número represente apenas uma pequena fração dos mais de 2,2 milhões de servidores federais, as demissões são direcionadas contra agências e institutos que representam um freio às ambições políticas e pessoais de Trump. Por exemplo, 83% dos funcionários foram demitidos do Escritório para Planejamento e Desenvolvimento Comunitário do Departamento de Moradia e Assuntos Urbanos, uma agência que promove soluções públicas para a falta de moradia nos EUA, cujo trabalho corre totalmente contra os interesses econômicos e pessoais de Trump, que vive dos lucros da especulação imobiliária.
Outro exemplo nítido dessa política é o desmantelamento quase completo da Agência de Desenvolvimento Internacional dos EUA (USAID), que Trump realizou nas primeiras semanas da sua gestão. Esta agência foi construída para projetar o soft power dos EUA no mundo através do financiamento de órgãos humanitários multilaterais, como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), e a implementação de projetos de “fortalecimento da democracia” que financiam jornalistas, ONGs e outras organizações da sociedade civil em nível internacional, especialmente em regimes iliberais com governos em discordância com o projeto imperial dos EUA. Os ideólogos neorrealistas do governo Trump não enxergam a necessidade de utilizar as instituições multilaterais para projetar o poderio americano no mundo, e temem, também, o impacto das políticas de “promoção da democracia liberal” nos aliados neofascistas que atualmente governam em países “amigos”, como a Hungria, a Arábia Saudita e a Rússia. Ao mesmo tempo, o setor de Big Tech que está apoiando o novo governo Trump quase incondicionalmente, personificado por Elon Musk, Mark Zuckerberg e Peter Thiel, sabe que, hoje em dia, para exercer controle econômico e político sobre os países periféricos, a ajuda para o desenvolvimento tradicional oferecido pela USAID é muito menos importante do que as novas ferramentas de “imperialismo digital” controlado por empresas como Meta, Google e Amazon, como os algoritmos, as plataformas digitais e a inteligência artificial.
Em matéria de política internacional, o governo Trump 2, até agora, se caracteriza pelo desalinhamento com a Europa democrática e liberal, o desprezo para as regras e instituições multilaterais estabelecidas no período pós-Segunda Guerra Mundial (muitas delas ironicamente inventadas pelo próprio EUA), e um retorno ao Corolário Roosevelt da Doutrina de Monroe, que permite “intervenções preemptivas” por parte dos EUA dentro da sua esfera de influência nas Américas. Entretanto, tem uma grande chance de que suas políticas domésticas e externas entrem em choque num futuro não tão longe. Por exemplo, a intensificação das sanções econômicas e políticas contra a Venezuela e Cuba terão como desdobramento, provavelmente, uma massificação dos fluxos migratórios desses dois países para os EUA. Do mesmo modo, as tentativas de reaproximação com a Rússia, juntamente com o fim da ajuda militar à Ucrânia e o possível desmantelamento da OTAN, poderiam criar descontentamento entre os apoiadores de Trump que representam a indústria manufatureira de produtos bélicos (o famoso “complexo militar-industrial”).
Precisamos estar muito atentos aos próximos movimentos desse contra-ataque do império estadunidense, que está mostrando sua cara mais petulante e grosseira tanto para os grupos subalternos dentro do país, como os imigrantes e pessoas LGBTQ+, quanto para os aliados de outrora, de Bruxelas a Berlim. Com o fracasso absoluto do neoliberalismo progressista, personificado por Biden e Kamala Harris, e a fraqueza atual da esquerda contra-hegemônica no país, personificada pelo senador Bernie Sanders e a bancada diminuta de socialistas democráticos na Câmara de Deputados, está sendo muito difícil montar uma resistência a esse contra-ataque brutal projetado por Trump. O império estadunidense mostra-se receoso de aceitar o diagnóstico de ser um império em declive, então, está tentando arrastrar o resto do mundo até a cova com ele, aos gritos e berros. Tomara que, mais cedo ou mais tarde, a esquerda norte-americana e internacional possa montar seu próprio contra-ataque a esta barbárie antes de que sejamos todos engolidos pela policrise global exacerbada pelas políticas atuais desse império moribundo.
(*) Jana Silverman é professora de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC) e membra do Comitê Executivo do Comitê Internacional dos Democratic Socialists of America (DSA).