Por Carlos Serrano Ferreira (*)
O ano de 2023 na Europa continuará marcado pela nova fase do conflito ucraniano, que se arrasta desde o golpe de Estado de 2014, com a operação militar russa. O suporte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a escalada armamentista e a conversão deste conflito em um choque entre blocos geopolíticos e ideológicos distintos, não nos permite ver um fim próximo. A aposta vai se tornando mais alta, tendo em vista que a derrota ucraniana, que se converte a passos largos numa semicolônia dos EUA, significaria um duro golpe econômico para o governo estadunidense e grandes empresas militares e bancos desse país, com os enormes empréstimos para a máquina de guerra de Kiev.
O que a continuidade dessa realidade produz é o agravamento das pressões inflacionárias causadas pelas sanções unilaterais (e ilegais) contra a Rússia, que mais afetam a economia e a vida dos povos europeus do que a economia russa, que neste mundo multipolar tem encontrado saídas, ao contrário dos europeus, sem alternativas para suprir as necessidades energéticas, a não ser o crescimento da dependência energética dos EUA, com custos superiores ao fornecedor habitual.
A agravar o suicídio econômico e social europeu – ou seria homicídio, já que muito deriva das pressões e interesses estadunidenses – está uma política anti-inflacionista equivocada da UE. O aumento de juros é o remédio errado, pois a inflação não é um sintoma do aquecimento da demanda – que mal se recuperou da crise do COVID – mas do agravamento da escassez da oferta derivada do aprofundamento da ruptura das cadeias globais de valor com a política de sanções ocidentais. Não só dificulta a recuperação por encarecer o investimento de retomada, como envia os sinais errados aos agentes econômicos e aprofunda a recessão. Está a ser parida uma crise de estagflação.
A ação de sabotagem ao Nord Stream 2 – gasoduto de gás natural que liga Rússia à Alemanha, atravessando o Mar Báltico – levada a cabo pelos serviços de inteligência anglo-saxões; as ameaças de cortes maiores na entrega do gás pela Rússia; a recuperação chinesa com o afrouxamento da política de COVID-Zero, que irá absorver mais energia, aumentando os custos desta; e a sempre presente possibilidade de conflito Marrocos-Argélia, ampliam os riscos no fornecimento energético, com um efeito cascata na elevação dos preços e na desarticulação da produção. A alta de juros catalisa isso e pode haver mesmo o fim de bolhas especulativas, como as imobiliárias, existentes em países como Portugal. Este estouro da bolha pode, contudo, ser postergado, tendo em vista a mudança de parte da produção da Europa Central para a Europa do Sul, fugindo dos riscos de transbordamento da crise ucraniana para a vizinhança. Esta já quase ocorreu com a operação de false flag (bandeira falsa) de Kiev com o lançamento de mísseis ucranianos para território polonês, em meados de novembro, de forma a tentar envolver de maneira militar direta a OTAN no conflito. Esta tentativa foi frustrada pelos EUA, que preferem uma estratégia de desgaste lenta da Rússia, sem um conflito aberto, do qual nunca se poderia adivinhar como evoluiria, inclusive para uma confrontação nuclear. Desta forma, também os EUA desgastam as potências europeias, colocando-as ainda mais sob seu controle.
O aumento dos custos energéticos em indústrias fortemente dependentes de energia, como a produção de alumínio, aponta para o fechamento de várias firmas, com o fim mesmo de setores inteiros da economia europeia, e a deslocalização de muitas destas empresas para a China. Segundo um relatório da The Economist Intelligence Unit, o custo de eletricidade para a produção do alumínio é de US$5.200/tonelada, mais do que o dobro do preço à vista do alumínio de US$2.300/tonelada. Na indústria de químicos esse relatório aponta para a mesma situação: 70% da produção de fertilizantes do continente foram já suspensas, com a possibilidade da maioria não retomar, o que pressionará ainda mais os custos de alimentação, já crescentes devido aos problemas com o fornecimento de cereais ucranianos.
Cria-se assim um ambiente de crise social, com o aumento do desemprego e do custo de vida. Infelizmente, quer seja devido à debilidade dos partidos de esquerda, quer seja pelo discurso anticomunista promovido pela UE, quer seja pela debilidade dos movimentos sindicais e sociais, a possibilidade de que sejam setores progressistas à dirigirem a contestação social é pequena. Assistiremos a mais um ano de crescimento do fascismo na Europa.
E será preciso ficar de olho na evolução dos Bálcãs, pois devido às movimentações internas sobre temas não resolvidos, bem como a pressão desestabilizadora de agentes externos, o velho barril de pólvora volta a aproximar-se de explodir. Também com a crise social e a incapacidade de resolução das questões nacionais em âmbito das atuais estruturas institucionais, podem reemergir mobilizações independentistas na Escócia e na Catalunha, onde no primeiro caso a insatisfação com o Brexit é grande, e no segundo, onde o Estado Espanhol tem sucessivamente bloqueado iniciativas progressistas sociais e econômicas, tem se tornado a questão nacional em cada vez mais em uma questão social e de liberdades.
Essa decadência econômica europeia tem como reflexo uma perda de espaço de seus imperialismos em sua zona de influência mais direta, a África. A troco de sustentar a ofensiva estadunidense em áreas inalcançáveis e impossíveis de manter, como no ex-espaço soviético, vem debilitando a capacidade de intervenção europeia em seus espaços tradicionais. O caso mais sintomático é a presença francesa nesse continente, desafiada por China, Rússia e, cada vez mais, Turquia. No caso da Rússia, esta está a ocupar o espaço no combate aos fundamentalistas islâmicos, para o qual a França tem demonstrado total incapacidade em vários países.
Em relação à Turquia, as movimentações do presidente Recep Tayyip Erdoğan para frustrar as possibilidades de uma vitória da oposição nas eleições presidenciais de 2023 faz prever que não haverá grandes alterações na situação. E este país vem ganhando terreno, seja a apelar contra as heranças coloniais e a proximidade religiosa com os povos do Norte de África, seja com a venda de armamentos e tecnologia, seja mesmo com a instalação de bases militares, sendo hoje a maior fora de seu território a que está em Mogadíscio, capital somali. De facto, por mais que não seja comprovável, pode se suspeitar de algum tipo de suporte turco às ações terroristas do Estado Islâmico – com quem se aponta recorrentemente terem boas relações com o Estado turco – em Cabo Delgado, Moçambique, em 2021, e que coincidência ou não, ocorreram quando a operação de exploração de gás da francesa Total iria ser retomada. Este é o maior investimento em África desta empresa e do capital francês.
Esta realidade talvez explique a consciência do presidente francês, Emmanuel Macron, de que é necessária uma saída negociada rápida da situação bélica na Ucrânia, da qual só os EUA e a Turquia têm retirados ganhos no campo da OTAN.
Por fim, na UE se aprofundarão mecanismos antidemocráticos para resolução de divergências entre os países ou aprofundar-se-ão as tendências à desagregação. A crise aprofundará as incompatibilidades entre interesses nacionais.
O ano de 2023 não será um bom ano para ser-se europeu.
(*) Carlos Serrano Ferreira é investigador do LEHC/UFRJ, doutorando em Ciência Política no ISCSP e militante do PCP.