Por Fausto Antonio (*)
Epigrafia do subterrâneo e da relativa equivalência dos gêneros.
O que é da mulher a loba não come; o que é do homem, com a força do tempo, tempero da gula, o lobo come.
O chá com ervas era servido, há muito tempo, no mesmo horário. No limite do relógio, eram dezoito horas em ponto. Na mesa, com um círculo contido num retângulo alongado, estavam apenas os casais da extensa e intrincada rede familiar ancestral. A matriarca da linhagem paterna, Joana Maria de Jesus, estava sentada numa das cabeceiras da mesa; na outra, estava Maria Prudenciana Luiza, sangue matriarcal da linhagem materna. O chá era, desde sempre, servido pelas matriarcas em duas rodadas. Na primeira, o chá era servido numa xícara verde. Depois de servida a porção verde,na segunda rodada, era servida, numa xícara correspondente, a vermelha. Sorvidas as porções, a matriarca materna abriu assim o ritual. É necessário, agora, cada casal imaginar, num torvelinho vindo do céu, o verde. A avó paterna acrescentou,então, de modo ancestral, que era fundamental cada casal imaginar, depois do verde turbilhão, o torvelinho vermelho , num desejado encontro com o verde, que no umbigo se entrelaçariam numa fusão. O ritual , depois do chá sorvido, seguiria, assinalaram as matriarcas.
O chá, além da ordem de acesso, era um mistério. Ninguém sabia nada a respeito da sua composição, exceto a alquimia do verde e do vermelho ; o que na fusão derivaria de outra essência e cor. Sim, derivaria também para outra essência e cor, de fato, consciência, com certeza. Ano após ano, os casais retornavam. Morava ali, nos retornos, a certeza de que era , de algum modo, revigorante o chá e os casais retroalimentavam as sucessivas voltas ao rito. As baixas, por razões ditadas pelo desenlace amoroso, eram raras e sentidas. Um dos casos ocorreu com um dos netos que, com as pompas do casamento formal na Igreja Nossa Senhora de Aparecida, teve o casamento invadido pelo alheio. O neto, agora separado; no passado, antes de passar pelo ritual,num momento de desespero, procurou um clarividente que era tido como bambambam das leituras do presente, do passado e do futuro. O oráculo se manifestou assim: Ela voltará, meu filho; o que é do homem o lobo não come. Sem outro consolo, o jovem, mesmo desconfiado, aceitou como válida e útil a previsão. Refeito o pacto, o casal tomou por anos o chá. A despeito do manto azul-iluminado de Nossa Senhora de Aparecida, a casa ruiu outra vez e no alicerce. O alheio voltou com a força do tempo e com o tempero da gula. Na mesa, as matriarcas, antes de liberar o neto, repetiram em uníssono o dito e filosofia popular atualizado. Meu filho, o que é da mulher a loba não come; o que é do homem, com a força do tempo, tempero da gula, o lobo come. Assim que ele saiu, o ritual seguiu o seu rigoroso curso. O chá era, no círculo ritualístico ancestral, o selo do juramento e do pacto amoroso.
(*) Fausto Antonio é escritor, poeta, dramaturgo e professor Associado da Unilab – Bahia.