Fortalecer a solidariedade, construir políticas públicas e derrotar o neoliberalismo

Por Executiva Estadual da AE-RS (*)

O Rio Grande do Sul vive a sua pior catástrofe socioambiental. No total, são 154 óbitos, 104 desaparecidos, 806 feridos, 458 municípios afetados, 77.199 pessoas desabrigadas e 540.192 desalojadas, conforme boletim divulgado no dia 16 de maio pela Defesa Civil do estado. Tudo em consequência das chuvas que provocaram enchentes, inundações e deslizamentos de encostas em todo o estado.

Durante duas semanas, vimos o espírito de solidariedade do povo gaúcho, nas buscas por pessoas e por animais, procurando salvar vidas e manter o mínimo de dignidade. Foram exemplos de doação que certamente ficarão marcados para o resto das nossas vidas e para a nossa história.

Estamos também acompanhando, pela firme determinação do presidente Lula – embora muitas abordagens midiáticas façam crer que não integrem um esforço maior do governo federal – o trabalho, com toda a estrutura material, logística e humana colocada à disposição, por parte das Forças Armadas, no caso o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, bem como o envolvimento direto da Defesa civil, dos ministérios da Saúde, Direitos Humanos, Mulheres, entre outros, e dos servidores públicos em todas as esferas.

No entanto, precisamos a partir de agora iniciar uma reflexão acerca das seguintes questões: 1/causas e responsabilidades; 2/enfrentamento e gerenciamento da crise; 3/ e saída da crise. Esta reflexão precisa ser feita, ao mesmo tempo, em que continuam os esforços de solidariedade e de reconstrução do Rio Grande do Sul. Contudo, para que esses esforços sejam melhores aproveitados e na direção para que tragédias como essas não se repitam, precisamos interpretar a realidade e apontar saídas políticas que contribuam efetivamente para a superação da situação em que nos encontramos.

Entre as causas, estão aquelas no plano mundial, que tem relação direta com o tipo de desenvolvimento econômico impulsionado pelo capitalismo, em especial dos países mais ricos, que tem gerado consequências como o aumento do efeito estufa, o qual, por sua vez, tem relação direta com o aprofundando das mudanças climáticas. Inúmeros cientistas e especialistas da área – como amplamente divulgado – já demonstraram que essas mudanças cumpriram um papel crucial no volume extremo de chuvas que caíram em nosso estado.

No plano nacional, grandes empresas agrícolas, mineradoras e madeireiras devastaram biomas, florestas, matas ciliares e biomas que são fundamentais para o equilíbrio climático e para amenizar os efeitos de eventos extremos como os que presenciamos.

Também, estão entre as causas e seus efeitos, a lógica do lucro e da especulação imobiliária que regem o crescimento e a urbanização nas grandes cidades, colocando especialmente a população trabalhadora e mais pobre em áreas de risco e dificultando a criação dos sistemas de contenção de cheias.

Todas estas causas e sobretudo os seus efeitos são potencializados drasticamente onde vigora a lógica neoliberal, pois o mesmo desmonta as estruturas públicas existentes, desestrutura os programas públicos existentes e reduz drasticamente o nível de servidores. Portanto, o pano de fundo da catástrofe é permeado por fatores econômicos e políticos além dos ambientais.

Essa política macro acaba por eliminar e reduzir as possibilidades de defesa da sociedade diante de situações extraordinárias como as das enchentes que vivemos. Ou seja, todas as políticas de preservação ambiental e as políticas de prevenção e manutenção dos sistemas contra as cheias foram completamente desidratadas, bem como as estruturas de defesa civil do estado, da capital e de diversas cidades.

O exemplo mais nítido é o de Porto alegre, onde o governo municipal do prefeito tucano Nelson Marchezan Júnior (2016-2020) desperdiçou 128 milhões de reais que havia à sua disposição no PAC do combate as cheias e não usou na modernização e manutenção que deveria fazer. Estudos revelam que a cada R$ 1 gasto em prevenção ambiental economiza-se R$ 15 em recuperação pós-desastre e no caso da tragédia do RS essa proporção é ainda maior (confira aqui), mas a miopia neoliberal e curto-prazista é incapaz de perceber essa correlação.

Posteriormente Sebastião Melo (MDB) elegeu-se, em 2020, com o discurso de que cuidaria dessa política, portanto de forma consciente fez a escolha de não realizar a modernização e a manutenção das casas de bombas, dos diques, do sistema de contenção de enchentes como um todo. O Manifesto assinado por dezenas de técnicos demonstra facilmente que muitos dos efeitos poderiam ter sido evitados, com a simples manutenção ( confira aqui), no entanto a gestão Melo preferiu priorizar a sua relação com os interesses privados das construtoras da capital.

Outro exemplo, refere-se ao desmonte que o governo de Eduardo Leite fez do chamado Código Ambiental. Seu projeto eliminou ou alterou 480 pontos da lei ambiental do estado em 2019, em apenas 75 dias – só não transcorreu ainda em menor tempo porque uma decisão judicial impediu a tramitação em 30 dias sob regime de urgência. Era tempo de “passar a boiada” na legislação ambiental, como diria um certo ministro do Meio Ambiente à época.

Ou seja, o modelo neoliberal, ao privatizar e terceirizar, ao subordinar-se aos interesses do agronegócio e da especulação mobiliária, desassistiu a sociedade acreditando que isto nunca aconteceria, permitiu que acontecesse essa tragédia mostrando a sua visão negacionista de facto. Um estudo encomendado pelo governo federal em 2014, e publicado em 2016 no Plano Nacional de Adaptação para Mudança Climática (PNA) e que serviu subsídio ao Plano Plurianual (PPA), apontava a intensificação de ondas de calor, colapso de hidrelétricas, falta d’água no Sudeste, a piora das secas no Norte e no Nordeste e o aumento das chuvas no Sul. Assim como os governos negacionistas de Temer e Bolsonaro que nada fizeram, os governos estaduais de Ivo Sartori e Eduardo Leite ignoraram os alertas constantes da comunidade científica e de apelos feitos inclusive por professores e cientistas do RS. Pelo contrário, enfraqueceram a legislação e os instrumentos de proteção ambiental e de proteção civil a catástrofes.

Já a extrema direita, além da retórica negacionista, tem atuado para sabotar os esforços dos nossos governos municipais, a exemplo de inúmeros casos em São Leopoldo, e do governo federal, na linha de que são os “cidadãos pelos cidadãos” e de que os “governos nada fazem”, criando muita confusão por meio de uma avalanche coordenada de fake news. O objetivo visa bloquear e deslegitimar iniciativas estatais aos atingidos. Nem mesmo em momentos trágicos, como esses, o bolsonarismo se furta de polarizar, demonstrando mais uma vez, a quem duvidar, que não podemos recuar e baixar a guarda em nenhum momento à extrema-direita.

Já a grande mídia e a direita tradicional apelam incessantemente e sistematicamente às teses de que não podemos “politizar” a tragédia e nem “procurar os seus culpados”, numa evidente operação para blindar os governos apoiados por ela, especialmente o governo de Eduardo Leite, a quem em nenhum momento foi efetivamente cobrado de suas responsabilidades.

Em relação ao tema do enfrentamento da crise, o papel dos governos, nas suas mais diferentes esferas, fica cada vez mais evidente. Neste caso, o papel fundamental do Governo Federal, do presidente Lula, de assumir a condição de fiador da reconstrução do Rio Grande do Sul.

Lula veio ao Estado em três oportunidades, e na última anunciou a criação da Secretaria Especial de Reconstrução do Rio Grande do Sul, com a nomeação do companheiro Paulo Pimenta.

O Governo Federal já anunciou políticas de acesso ao FGTS no valor de até R$ 6.200, abono salarial antecipado, duas parcelas extras do seguro-desemprego e de pagamento de auxilio reconstrução no valor de R$ 5.100 a todas as famílias diretamente atingidas, entre outras medidas.  A prorrogação das dívidas dos agricultores e um abatimento, mediante planos de recuperação das propriedades agrícolas, de 25% nas prestações das dívidas com o limite de R$ 20.000 por projeto, o que beneficiará pequenos agricultores e assentados.

Anunciou também regras e linhas de crédito para a reconstrução de estradas e pontes escolas e creches, postos de saúde, hospitais. Também garantiu casas a todos que a perderam sem nenhum custo para quem tem renda até R$ 4.400 por mês e financiamento e subsídios especiais para quem tem uma renda maior. O pacote de socorro do Governo Federal já ultrapassa os 50 bilhões de reais, incluindo financiamentos, antecipações e crédito.

No entanto, estas últimas medidas serão coordenadas pela secretaria especial e executadas pelo governo gaúcho e por prefeituras municipais. A extrema-direita, a direita e o oligopólio da mídia reagiram com muitas críticas à criação de um órgão federal para coordenar a reconstrução, por pelo menos uma de duas razões: por demonstrar a negligência e inoperância do governo de Eduardo Leite e pelo fato da “autoridade federal” ser um petista, quando deveria ser um nome “neutro”, afinal de contas “não se pode politizar” as ações dos governos, como se a natureza destas ações não fosse eminentemente política e resultados dela.  O sonho da classe dominante, especialmente a gaúcha, é que o governo federal faça o serviço e o investimento necessários ao estado, mas que não haja reconhecimento popular desses esforços, ou que sejam capitalizados pelo governo tucano de Eduardo Leite.

Também no âmbito da reconstrução, propomos que sejam criadas comissões ou comitês de acompanhamento das obras e fiscalização do uso do recurso público, em todas as áreas e obras, garantindo a transparência e controle social do processo. Igualmente, todo os recursos e financiamentos direcionados às empresas precisam ter contrapartidas sociais e trabalhistas, entre elas a preservação dos empregos, dos salários e dos direitos trabalhistas. É inaceitável que trabalhadores sejam demitidos neste momento de tragédia. Ademais, devemos nos contrapor firmemente a possibilidade de construção de cidades de lona, como forma intermediária até a aquisição das moradias definitivas.

Ainda no âmbito das saídas, saudamos a suspensão da dívida do estado com a União por três anos. São 11 bilhões de reais com parcelas de pagamento da dívida e outros 12 bilhões de reais que serão poupados com o corte dos juros. Certamente será fundamental na reconstrução do estado e uma demonstração inequívoca do compromisso do Governo Federal com o Rio Grande do Sul. No entanto, acreditamos que as negociações devem avançar rumo a uma saída mais estrutural.  A dívida é um limitador do nosso desenvolvimento econômico e social e, como sempre afirmamos, já foi paga muitas vezes. Uma saída estrutural para a dívida, além de ajudar a impulsionar o desenvolvimento a médio prazo, elimina o principal pretexto para as privatizações, corte do gasto público e arrocho salarial promovido pelos governos neoliberais no Rio Grande do Sul.

Por fim, defendemos que no tema da saída para a crise haja a combinação de um compromisso fundamental com a preservação da vida e da natureza. Isso deve se refletir na educação, na saúde, na assistencial social, no acesso ao trabalho digno, no acesso à moradia, entre outras questões. Momento inclusive para repensarmos e transformarmos as cidades afetadas no sentido de uma reforma urbana. Precisaremos de mais políticas públicas, mais controle social, mais planejamento urbano e mais investimento público.

Para sairmos dessa catástrofe, e não voltarmos mais a ela, precisamos acabar com a lógica da privatização, do sucateamento dos serviços públicos, das terceirizações, do desmonte dos equipamentos públicos, do corte do gasto social, do privilégio aos interesses do grande capital em detrimento dos interesses populares e do meio ambiente. Por isso, as medidas e a sua implementação devem ter como horizonte a superação da lógica neoliberal e capitalista para que não sejam passageiras e destruídas logo ali na frente.

O povo gaúcho e brasileiro demonstrou na prática querer uma sociedade pautada pela solidariedade, por direitos sociais e por desenvolvimento econômico e social, ambientalmente orientado. Portanto, muita luta e trabalho para reconstruir e transformar o Rio Grande do Sul na direção de um futuro melhor.

17 de maio de 2024

Executiva Estadual da AE – RS


(*) Tendência petista Articulação de Esquerda do Rio Grande do Sul

Uma resposta

  1. Penso que a elite do Rio Grande do Sul, saiba tirar alguma lição desta tragédia, tomando consciência que o Sul faz parte do território brasileiro, muitos sulista pensa que tem um rei na barriga, o sul é muito importante pra os demais estados do Brasil, bem como o sul precisa dos demais estados brasileiros.

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