Por Lucas Arieh (*)
Medidas como a garantia da Tarifa Zero do transporte público ajudariam a combater a inflação pelo lado certo e proporcionariam ao governo a possibilidade de envolver a sociedade em grandes temas
1. “Ele cansou; nada nunca muda de verdade pra quem é pobre”
Deixe-me começar esse texto com uma experiência anedótica que, a meu ver, pode jogar luz sobre os dramas da atual conjuntura.
Certo dia, dialogando com uma amiga que, desde os inacreditáveis oito anos de idade, trabalha como doméstica, ela me disse que seu irmão – um homem trans que sobrevive como bom brasileiro, “sevirando” –, “petista de carteirinha”, havia chegada a um ponto inaudito: desistiu de votar – assim como ela, que não vota desde a primeira eleição do presidente Lula, em 2002. Segundo minha amiga, “ele cansou; nada nunca muda de verdade pra quem é pobre”.
Por mais que, como militante petista, eu tenha na ponta da língua os vários avanços dos governos petistas, a exemplo do aumento real do salário mínimo (que só ocorreu consistentemente sob nossa liderança[1]), aquela sentença me impediu de debater e me provocou enorme reflexão.
Especialmente no atual cenário, com a inflação de alimentos mais significativa que a inflação geral, as classes populares se desgastam com o governo, vão perdendo aquele élan que foi construído pelas mudanças transformadoras, embora claramente insuficientes perante a contraofensiva conservadora, que o petismo construiu antes do golpe de 2016.
Novas demandas surgiram e, não atendidas, moldaram uma subjetividade baseada na percepção de imobilismo permanente para as frações mais pauperizadas da classe trabalhadora. Essa base, em regra não organizada e extremamente precarizada, é o que para Singer conformaria a principal base social do lulismo. E, a preço de hoje, cada dia que passa de “mais do mesmo” ela parece se desmanchar no ar.
O presidente Lula é uma liderança indiscutível do nosso povo, das esquerdas e do PT, e não pretendo apontar-lhe o dedo, muito pelo contrário. Mas, como militante, não posso me furtar de tentar apontar o que, em consonância com o acúmulo partidário – especialmente o espírito socialista, democrático e de massas, concretizado na formulação sobre o “socialismo petista”, que segue, ainda que com debilidades, uma linha de continuidade entre o Quinto Encontro Nacional (1987) e o Sexto Congresso (2017) do PT[2] –, podem ser ideias para superar a sinuca de bico em que se encontra o governo, hoje refém de agendas palacianas e da sanha de dois tubarões que se retroalimentam: o Centrão e a grande burguesia financeira. Só jogando com pautas amplamente respaldadas pelo povo e o envolvendo na disputa, é que temos chance de vencer o campo conservador e acumular forças para os próximos combates.
Que fazer, portanto, nesses tempos estranhos?
Uma boa pista nos dá o ex-vice-presidente boliviano e grande teórico do marxismo do país plurinacional, Álvaro García Linera. Segundo ele, os governos da “segunda onda rosa/progressista” – por hora, herdeiros de baixo perfil da primeira – devem ter bandeiras claras de transformações[3]. Medidas com potencial de unificar as camadas populares e parte importante das camadas médias, possam realmente chacoalhar a percepção de imobilismo que paira tenebrosamente sobre a consciência da classe trabalhadora, levando-a ora ao desalento político ora ao extremismo de direita que sabe muito bem quem é o inimigo, imputando-nos a responsabilidade por todos os problemas.
Sem prejuízo de outras ideias[4], uma bandeira transformativa parece ter capacidade e, a um só tempo, condição de incidir favoravelmente na estrutura inflacionária, aliviando o bolso das famílias trabalhadoras; criar incentivos para o uso do espaço público; e ativar cadeias de valor estratégicas, no campo da transição ecológica.
Falo aqui da “Tarifa Zero”, que foi uma das mais, se não o principal aspecto dos programas das esquerdas nas campanhas municipais de 2024 e que, é bom lembrar, acionou a pólvora dos barris das Jornadas de Junho de 2013, ainda hoje um grande fantasma para parte do petismo.
2. Por uma grande missão “Tarifa Zero Brasileira”
A inflação é quiçá o sintoma mais perceptível para o povo da saúde econômica. As pressões inflacionárias vêm de vários componentes. Certamente, uma das mais decisivas é a advinda dos gastos com transporte. Sejam pessoas das camadas médias ou populares, que se locomovem de formas distintas, grosso modo, todo mundo sente o impacto dos gastos com mobilidade.
Não é incomum, inclusive, especialmente nas grandes cidades, onde há sistemas de transporte coletivo mais ou menos funcionais, que partes expressivas das camadas médias o utilizem. Não encontrei pesquisas a respeito, mas certamente o número de pessoas que, usuárias de transporte individual motorizado, optariam pelo transporte coletivo em melhores condições deve ultrapassar em muito o número de usuários, que vem declinando ano após ano. O apelo é enorme: redução do stress com a direção, do tempo de deslocamento e dos gastos com mobilidade; aumento da segurança (especialmente para motociclistas), entre outros pontos positivos.
Dito isso, enfrentar a inflação levantando a bandeira de uma grande missão “Tarifa Zero Brasileira” pode ser uma das saídas para a camisa de força imposta pelo bloco hegemônico da classe dominante, liderado pelas grandes finanças. É claro que esse setor espernearia e prepararia para nos derrotar, mas o governo poderia, inclusive, aproveitar a contradição da suposta defesa do financismo contra a inflação e surfar nessa onda, defendendo que o estabelecimento da Tarifa Zero certamente contribuiria para rebaixar o peso inflacionário contra “os mais pobres”, fortalecendo a demanda agregada (pela renda disponível que resultaria) e o poder de compra dessa fração da classe trabalhadora, retoricamente usada como justificativa para cometer qualquer austericídio, como se não fossem vítimas dele.
Para isso, seria necessário o governo usar efetivamente seu poder de agenda, iniciar a ofensiva com plenárias populares organizadas para defender o projeto e criar caldo político e de mobilização para tornar incontornável um acordo interfederativo em que a união banque parte expressiva da receita necessária para universalizar essa política. Nesse acordo, a contrapartida federal ao grosso do financiamento poderia ser o emprego do BNDES para auxiliar os municípios a desenharem modelos eficientes de empresas públicas para operacionalizar o serviço público, culminando em redução dos custos do serviço, haja vista que excluída a margem de lucro (nunca claramente explicitada) das grandes empresários do transporte, não à toa conhecidos nacionalmente como “máfias”.
Ao invés de ficar prisioneiro da receita ortodoxa de contenção inflacionária, por meio de políticas monetárias e fiscais recessivas, como aumento dos juros ou corte de gastos sociais, o governo Lula poderia colocar o campo reacionário em maus lençóis, atacando o tema da inflação pelo lado da provisão de serviços públicos. Afinal, não há quem, em sã consciência, defenda o ilógico e ineficiente modelo de mobilidade capitalista cujo centro é o transporte individual motorizado. Mesmo setores das camadas médias olham para os sistemas de mobilidade europeus, por ex., com preponderância do transporte coletivo, e o admiram, desejando que fossem possíveis no Brasil.
O impacto disso na disponibilidade de renda e na redução dos preços seria robusto. Por um lado, conforme estimativas da Oxfam[5], teria condições de reduzir substancialmente o peso dos gastos com transporte coletivo entre 11% e 20% (entre quem ganha até dois salários mínimos). Por outro, estimularia as camadas médias a usar esse modal de transporte, diminuindo os custos destas com gasolina, aquisição e manutenção de veículos individuais, além de incentivar o tráfego pedestre pela cidade, inibindo as oportunidades de crimes patrimoniais de rua e aumentando a sensação de segurança.
Um projeto desta natureza, que coloca no papel o Sistema Único de Mobilidade (SUM), já foi apresentado pela deputada federal Luiza Erundina (PSOL/SP), com garantia da tarifa zero e recursos dos três entes federativos (PEC 25/2023)[6].
De quebra, além de concretizar uma das diretrizes do Plano Nacional de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587/2012 – PNMU), a priorização do transporte coletivo sobre o individual, aprovado durante o governo da presidenta Dilma, a missão ainda poderia ter efeitos impactantes no campo da industrialização, desde que criada em concomitância com metas de aquisição e operação de ônibus elétricos como contrapartida de estados e municípios para os subsídios federais.
3. Missão transformadora e complexidade produtiva
Esse conceito – de missões sociais – está em linha com as elaborações teóricas de Mariana Mazzucato[7]. Segundo a economista italiana, são os grandes projetos que derivam das necessidades nacionais, cumpridos etapa a etapa e que apontam para transformações estruturantes da realidade, a chave para o desenvolvimento legitimado democraticamente.
Mais do que se perder indefinidamente no debate sobre corte de gastos e aumento da taxa de juros, o que parece ser a tônica permanente da pasta chefiada pelo ministro Fernando Haddad, o governo deveria ser o propulsor das transformações, usando sua força para pautar, e não ser apenas pautado.
Um projeto que atrelasse a concessão de subsídios viabilizadores da Tarifa Zero com uma política de compras públicas de ônibus elétricos poderia, inclusive, se bem desenhado, criar incentivos para empresas como a BYD, que já dispõem de um parque produtivo no Brasil, a mobilizar parte de sua produção para suprir essa demanda a custos parcialmente internos ao país.
Numa tacada só, a Missão Tarifa Zero liberaria uma parcela significativa da renda de trabalhadores para outros gastos essenciais; estimularia o comércio local; permitiria que trabalhadores tenham acesso a melhores oportunidades de emprego; reduziria a violência urbana; e colocaria o país na vanguarda ambiental e produtiva.
4. Do freio de arrumação ao arranque do bloco popular
Como disse, um projeto desta natureza teria condições de chacoalhar a cena política, colocando reacionários na defensiva (como ocorreu em diversas localidades nas eleições de 2024) e abrindo espaço, inclusive, para tributar renda e patrimônio dos endinheirados.
O saldo, inclusive eleitoral, poderia ser a formação de uma frente de esquerda – já desgastada pelas várias concessões de nossos governos frente ao grande capital – que mobilizasse toda a sociedade, nas ruas e nas redes, para vencer e enterrar a extrema direita. Essa tática, é bom lembrar, tem resultados eleitorais positivos, como nota o exemplo da França Insubmissa, infelizmente golpeada pelo neoliberal Macron.
Oxalá, nesse cenário proposto, o caminho ficasse aberto para a continuidade da tática de missões, construídas e defendidas pelo povo trabalhador.
É o ânimo missionário, hoje em falta na tropa por falta de direcionamento, o combustível motivacional de que carecemos hoje para esmagar o fascismo e avançarmos rumo à Revolução Brasileira, necessariamente um processo de massas, democrático e socialista, como sempre defendeu o Partido dos Trabalhadores e das Trabalhadoras.
(*) Lucas Arieh é militante do PT, membro da DEAE/RN, advogado (UFRN) e mestre em direito penal e criminologia (USP).
[1] notaTec283salarioMinimo.pdf
[2] POMAR, Valter. A Estratégia do PT (um debate e duas resoluções). Página 13, 2025. Disponível em <Publicação traz debate sobre a estratégia do PT | Página 13>.
[3] Disponível em https://open.spotify.com/episode/0fgqDisFhjLOUAkczdsfAO?si=Sj4-K8eMSiS5CqdHZ-AO1g.
[4] Por ex., o jornalista Luis Nassif sugere o robustecimento do PAC para construção de creches, com metas para resolver o problema da universalização da educação infantil e do cuidado das crianças durante a jornada de trabalho externa de pais, mas principalmente de mães das camadas populares da classe trabalhadora (vide: Uma política nacional de construção de creches, por Luís Nass).
[5] Brasileiros gastam até 20% do orçamento com transporte público – Summit Mobilidade
[7] Mazzucato: A economia guiada por missões sociais – Instituto Humanitas Unisinos – IHU