Glosando Fernando Haddad

Por Valter Pomar (*)

A revista Veja entrevistou o ministro da Fazenda Fernando Haddad.

A entrevista está disponível aqui: www.veja.abril.com.br/economia/haddad-fala-a-veja-sobre-aprovacao-do-marco-fiscal-vitoria-do-brasil

Tratando-se da Veja, toda edição é suspeita (a maldição de Tutancâmon).

Feita esta ressalva, passo aos comentários.

Um dos objetivos da entrevista é apresentar Haddad como o “adulto na sala”, tentando contrapor o ministro ao PT e inclusive ao presidente Lula.

Isso fica explícito em duas perguntas, a saber:

“A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, foi contrária à reoneração dos combustíveis. Como é enfrentar a oposição do PT em determinados assuntos?”

“O senhor voltou a enfrentar a resistência de setores do PT na questão do marco fiscal. É desgastante a relação com o partido?”

Na resposta à segunda questão, Haddad diz o seguinte: “Na minha cabeça, não. Eu funciono bem ouvindo opiniões divergentes. O que é importante é o seguinte: tem uma coreografia que tem de ser compreendida. É a política. Qual a alternativa a isso? Calar as pessoas? É muito pior do que ouvi-las. Então, eu ouço todo mundo, e numa circunstância política em que o Brasil está precisando de entendimento. A regra fiscal é uma das inúmeras medidas que nós vamos ter de implementar. Eu preciso passar para a sociedade que essa regra fiscal não é do PT ou da esquerda. Que uma boa parte do PT sabe que nas circunstâncias atuais a economia brasileira não prescinde de uma regra um pouco mais dura. As divergências têm de se manifestar, mas sem colocar em risco as medidas que precisam ser tomadas para o bem de todos nós”.

Há vários pontos interessantes nessa resposta.

Por exemplo, o reconhecimento de que a regra fiscal é “um pouco mais dura”, uma regra que “não é do PT ou da esquerda” mas, apesar disso, uma medida “para o bem de todos nós”.

O mais interessante, ao menos para mim, é a palavra “coreografia”.

A depender do humor de quem leia, passa a impressão de que as críticas feitas por petistas ao marco fiscal não passariam de jogo de cena.

Acontece que não são.

Como sabe quem se deu ao trabalho de ler a declaração feita por 22 parlamentares, assim como as críticas feitas por vários petistas, alguns dos quais economistas, outro marco fiscal era possível.

Mas, claro, quem achava que as críticas eram apenas coreografia, provavelmente cumpriu a obrigação de ouvir “todo mundo” (até os petistas!), ligou a primeira e seguiu em frente.

Confesso que não me surpreendo: já vi atitude similar ser adotada por outros ministros da Fazenda, em outros governos petistas. Assim como já vi Lula dar cavalo de pau.

De toda maneira, Haddad faz bem em reconhecer que a regra fiscal aprovada não é do PT ou da esquerda. Nem dele, diga-se, pois o que foi aprovado não foi a proposta originalmente apresentada pela Fazenda, mas sim uma versão reformulada pelo relator Cajado (PP da Bahia), fazendo do marco fiscal algo muito mais duro.

Infelizmente, Haddad não faz nenhuma referência a isso – ao menos na versão publicada da entrevista.

Perguntado pela Veja, se a “aprovação do marco fiscal foi uma vitória do Congresso ou do governo?”, Haddad responde que “a aprovação do marco é uma vitória do Brasil”.

Como se pode ver, está fazendo escola o estilo Padilha de comemorar como nossa vitórias alheias.

Podemos concordar ou discordar acerca de qual deveria ser o marco fiscal, podemos concordar ou discordar acerca da tática a adotar frente à maioria de direita existente no Congresso nacional, mas não é razoável – em nome da verdade dos fatos – apresentar o marco fiscal aprovado como uma “repactuação em torno de um projeto nacional”.

A não ser, é claro, que passemos a acreditar que “projeto nacional” possa ser corporificado em metas como superávit primário e déficit zero.

Aliás, alguém acredita que o mesmo Congresso capaz de aprovar o marco temporal, seria capaz de colocar no “centro das atenções” o “interesse nacional”??

Compreendo perfeitamente que, do seu “lugar de fala”, Haddad não possa falar tudo o que pensa.

Mas não compreendo que ele fale algo que simplesmente não corresponde aos fatos. Afinal, diversas das alterações introduzidas por Cajado são simplesmente maléficas e, entre outros efeitos, vão servir de pretexto para que se questione o piso constitucional da saúde e da educação.

Talvez Haddad minimize isso, por dois motivos.

O primeiro motivo é que ele parece acreditar (se é que entendi direito o que ele falou na reunião com a executiva nacional do PT, pouco antes de reunir com Cajado, quando este ainda não havia apresentado seu relatório) que os juros vão diminuir, o crescimento e a arrecadação vão crescer e, portanto, os limites e restrições previstos no marco fiscal não vão causar dano algum. Algumas de suas respostas à entrevista para a Veja estão carregadas deste otimismo

O segundo motivo é que ele parece estar embevecido pelo próprio “desenho”. Nas suas palavras: “o marco fiscal deveria ser visto a partir de dois ângulos. O primeiro é o ângulo do desenho, que foi aplaudido por unanimidade, como quando nós introduzimos o regime de meta de inflação. Não vejo força política querendo abrir mão desse instrumento. O segundo ângulo são os parâmetros desse desenho. E aí é natural que, dependendo da sua visão de mundo, dependendo da sua visão de Estado, puxe um pouquinho pra cá, um pouquinho pra lá”.

Não sabia da “unanimidade”, a respeito da qual lembro do Nelson Rodrigues.

Concursos de beleza à parte, o problema é que os “parâmetros” aprovados pela Câmara puxaram “um pouquinho para lá” as coisas, em prejuízo do crescimento e do bem-estar social.

Mas, ao invés de destacar isso, dando à César o que é de César e a Cajado o que é de Cajado, Haddad prefere destacar a beleza do desenho: “cada governo você vai poder fazer pequenos ajustes nesses parâmetros em relação aos resultados pretendidos. O que é bonito desse desenho é que o estado liberal cabe dentro dele, um estado mais social cabe dentro dele, um estado mais desenvolvimentista cabe dentro dele, ou seja, é um desenho que admite a pluralidade de opiniões com uma unidade em torno do objetivo pretendido, que é garantir a estabilidade social e fiscal do país”.

Não é lindo?

Lindo, mas não é fato.

Haddad parece acreditar que criou um marco fiscal elástico, que pode ser adotado por todas as orientações.

E, de fato, sempre pode existir, em uma medida econômica, algum aspecto mais ou menos “universal”.

Mas, tirando os truísmos e obviedades tão ao gosto da economia vulgar, a ilusão de Haddad deriva principalmente da crença, muito comum nos tempos em que vivemos, de que alimentar o capital financeiro é a condição sine qua non de tudo o mais.

A esse respeito, aliás, é muito revelador que ele diga o seguinte:  “câmbio, os juros e as projeções de crescimento (…) estão sendo recalculadas para melhor. O próximo passo é a reforma tributária. Estou muito convicto de que nós vamos ter um choque de produtividade na economia brasileira com a reforma tributária, que é o nosso principal gargalo. O Brasil não vai avançar sem enfrentar esse debate sobre produtividade. E, do meu ponto de vista, a produtividade está intrinsecamente ligada ao caos tributário. Não é possível avançar num ambiente tão hostil à concorrência justa, à transparência. Ninguém consegue planejar o longo prazo com o nível de insegurança jurídica tanto para o Fisco quanto para o contribuinte. A base fiscal tem de ser uma rocha.”

De fato, precisamos de uma reforma tributária, especialmente de impostos sobre as grandes fortunas. Não basta, a esse respeito, combater a sonegação e rever isenções.

Mas a narrativa segundo a qual os problemas de “produtividade” na economia brasileira derivam do “caos tributário” provém da outra margem do rio. Assim como vêm da outra margem do rio raciocínios do tipo “Nós reoneramos os combustíveis, revertendo aquele populismo que tentou influir na eleição”.

E por falar em influir na eleição, Haddad afirma explicitamente o seguinte: “Tem uma pressão por gastos que nós temos de acomodar. Temos de equilibrar o Orçamento para que o senhor tenha a liberdade de corrigir injustiças sociais”. Isso tem de ser feito de maneira moderada, para que eu tenha espaço para cortar o gasto no patamar necessário. Não vai acabar o mundo se não for no primeiro ano, se for no segundo ano, porque o Brasil é grande demais, o Brasil tem reservas, o Brasil não tem dívida externa, o Brasil não é uma republiqueta que precisa sair correndo atrás de uma solução de um mês. Mas nós temos de sinalizar para a sociedade, para os investidores internacionais, que estamos numa trajetória consistente. É isso que estou fazendo”.

Entendo a lógica segundo a qual se deve “sinalizar para a sociedade” e, também, para os “investidores”. E concordo que o mundo não vai acabar “se não for no primeiro ano, se for no segundo ano”. O mundo de fato não vai acabar, mas governos podem “acabar” se não corrigirem as injustiças sociais com muita rapidez, se cometerem muitos erros políticos etc.

(Coloco na conta da edição enviesada de Veja a frase segundo a qual a correção das injustiças sociais deve ser feita de maneira moderada, “para que eu tenha espaço para cortar o gasto no patamar necessário”. Pois Haddad certamente não pensa isso, mas sim o contrário, ou seja, que os cortes de “gastos” devem estar à serviço da correção das injustiças sociais, e não o contrário.)

E por falar em erro político, é surpreendente a ingenuidade da resposta dada por Haddad acerca do agronegócio. Reproduzo a seguir.

Veja: “Por que o governo enfrenta resistência do agronegócio?”

Haddad: “Do ponto de vista econômico, nunca houve diferença entre o governo Lula nos seus dois mandatos e o agro. Ao contrário: a maior expansão da produção agrícola da história se deu nos oito anos de governo Lula. O maior saldo comercial, a maior transação comercial de todos os tempos e o maior incremento das exportações. O Carlos Fávaro (ministro da Agricultura) conversa com todo mundo, é uma pessoa educada, simpática, do setor. Eu penso que ele está reconstruindo esse diálogo. Na minha opinião, a coisa só tende a melhorar. Acho que houve muito ruído. Na hora que clarear, essas coisas ficam em ordem”.

O agronegócio e o capital financeiro são as duas frações da classe dominante que mais se opõem ao PT. Esta oposição não depende dos maiores e menores benefícios imediatos que estas duas frações obtiveram, durante nossos governos. A oposição está ligada a algo permanente: o “agro” sempre e o capital financeiro no último período são os “donos do poder” em nosso país. E, portanto, reagem de maneira brutal contra qualquer ameaça ao status quo.

Sem enfrentar e sem derrotar estas duas frações – que bloqueiam a reindustrialização do Brasil – o modelo primário-exportador vai continuar hegemônico e, por tabela, continuaremos sob ameaça do que Haddad chama de “projeto extremista”, de “ameaça autoritária”.

Sem derrotar esta gente, o Brasil não estará “amanhã melhor do que hoje”. E o cajado fiscal não contribui neste sentido.

(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT

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