Por Valter Pomar (*)
Eu queria poder ler todos os artigos publicados pelo Fernando Haddad na Folha de S.Paulo. Infelizmente, nem sempre dá tempo. Mas o artigo publicado dia 4 de dezembro está, como se diz por aí, “imperdível”. A começar pelo título, que não sei se é da lavra de Haddad ou do editor da coluna: “Lula e PT são não só indissociáveis, mas eventos únicos”. Deixemos o título para o final e, antes, glosemos o miolo.
Segundo Haddad, o PT reuniu “pessoas advindas do novo sindicalismo, das comunidades eclesiais de base e da universidade”.
Não sei o motivo, mas na lista falta a turma que veio da luta armada e das organizações de esquerda que existiam antes do PT.
Também segundo Haddad, “no timão do processo, um líder carismático de trajetória e inteligência incomuns que encantou a intelectualidade progressista”.
Talvez fosse melhor falar de uma “parte” da intelectualidade progressista, afinal grande parte escolheu ficar no PMDB e depois foi para o PSDB, como é o caso do Fernando Henrique; sem falar dos que preferiram ficar no PSB, no PDT e nos partidos comunistas.
Para Haddad, o PT seria uma “nova esquerda, antiautoritária e não-dogmática”. Ou seja, o PT teria surgido se diferenciando da “velha esquerda” marxista-leninista.
Faltou lembrar que o PT surgiu se diferenciando, também, do populismo trabalhista e reivindicando o socialismo para agora, não para outra etapa depois do horizonte.
Haddad diz também que “não há precedente na nossa história de um partido similar eleitoralmente viável”.
De fato, o sucesso eleitoral do PT é superior ao de toda a esquerda precedente. Mas não estaria exatamente aí a origem de vários dos nossos problemas??
É ótima a afirmação feita por Haddad, segundo a qual o lugar que o PT ocupa foi “socialmente conquistado”. Ou seja, se o PT minguar, o espaço que ele ocupa tende a minguar junto.
Acrescentaria: seria preciso um novo big bang de lutas políticas e sociais, para dar origem a algo parecido com o PT.
Neste ponto Haddad entra no tema Lula, assunto inescapável depois das declarações do “galo tapado”, da “vaca fardada”, do “coronel parisiense” e da “versão baby do Aécio Neves”.
Vou copiar o parágrafo em que Haddad introduz o assunto: “O erro de alguns petistas, por sua vez, é imaginar que o PT possa se fortalecer sem Lula. Não se reproduz facilmente uma liderança da sua qualidade. Lula e PT são não apenas indissociáveis como são eventos únicos e mutuamente dependentes”.
Confesso que fiquei intrigado com o parágrafo acima. Não apenas por apresentar como “erro” o que é uma linha política que, se triunfar, vai levar o PT por um caminho parecido ao do New Labour, de Tony Blair.
Mas também porque parece ser uma exaltação, mas lança na verdade uma condenação.
É como dizer que não existe Terra sem Sol. Acontece que o Sol não é eterno, está esfriando, alguns dizem que pode vir a se converter futuramente numa estrela-anã. Em recente superprodução sci-fi chinesa, o problema se resolve transportando a Terra para outro sistema solar.
É o que algumas pessoas pretendem fazer, enchendo a bola de lideranças de outros partidos que – à custa de um pouco de sorte e de um planejado mimetismo teatral – parecem (mas só parecem) ser capazes de cumprir o papel.
Ou seja: dizer que Lula e PT são “indissociáveis”, “eventos únicos” e “mutuamente dependentes” pode nos levar à seguinte conclusão: daqui a, digamos, 20 anos, o PT vai desaparecer.
No fundo, no fundo, é isso que muita gente pensa, embora por razões óbvias prefira não pensar, nem dizer, nem escrever.
Eu não penso isso.
Acho que o PT pode e precisa sobreviver, mesmo depois da partida de toda a sua geração fundadora.
Mas existe uma premissa essencial para que isto ocorra: não perder o vínculo com a classe trabalhadora, com seus interesses imediatos e históricos.
E isto só ocorrerá se fizermos exatamente o contrário do que a classe dominante quer que façamos.
O que a classe dominante quer? Que o PT desapareça ou, pelo menos, se converta num partido da ordem, aceite seu lugar no sistema, se corrompa, degenere, pare de encher o saco deles.
Por exemplo, votando num golpista para presidente da Câmara e outro para presidente do Senado, em troca de poucos cargos e muitas promessas.
Abrindo mão de disputar 2022 pela esquerda, apostando fichas numa frente amplíssima que inclua a direita não bolsonarista.
Mandando para o arquivo morto a luta pela recuperação dos direitos políticos do Lula e promovendo o velório em vida do “legado político” do ex-presidente.
Não é preciso ser lulista, nem é preciso concordar com Lula, para perceber onde é que isto vai dar.
Mas se quisermos impedir este desfecho, se quisermos salvar o PT e o petismo, é preciso uma mudança profunda no Partido, na sua linha política e na sua conduta prática.
Só assim construiremos a transição para uma época em que nenhum de nós estará por aqui, mas o PT continuará existindo, não como uma legenda eleitoral, mas sim como instrumento da classe trabalhadora na luta contra o capitalismo.
A questão de ouro, claro, é saber se Lula vai ajudar nisso. Ou se vai contribuir, por ação ou por omissão, com aqueles que estão lhe esfolando vivo.
*
Na madrugada de 5 de dezembro perdemos Kjeld Jakobsen, o mais brasileiro dos vikings. Se Valhala existisse, ele teria seu lugar garantido! Viva o Kjeld!!
(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT
(SEGUE O REFERIDO TEXTO DE HADDAD)
O PT
Lula e PT são não só indissociáveis mas eventos únicos
O Partido dos Trabalhadores é um fenômeno social não replicável. Forjado a partir da luta social, reuniu pessoas advindas do novo sindicalismo, das comunidades eclesiais de base e da universidade. No timão do processo, um líder carismático de trajetória e inteligência incomuns que encantou a intelectualidade progressista. Nascia uma nova esquerda, antiautoritária e não-dogmática, que permitiu aos desprovidos da Terra sonhar com um governo que os representasse. Apesar de seus limites, não há precedente na nossa história de um partido similar eleitoralmente viável.
O erro de alguns progressistas não petistas é imaginar que o enfraquecimento do PT vai lhes favorecer. O lugar que o PT ocupa no espectro ideológico não é ideal, mas materialmente construído. Não é um espaço natural à espera de um hóspede, mas um espaço socialmente conquistado.
O erro de alguns petistas, por sua vez, é imaginar que o PT possa se fortalecer sem Lula. Não se reproduz facilmente uma liderança da sua qualidade. Lula e PT são não apenas indissociáveis como são eventos únicos e mutuamente dependentes.
O PT é sua militância. A força dessa militância abriu caminho para que novas lideranças emergissem, gente de extremo valor, que dificilmente teria um lugar ao sol na política sem rebaixar suas pretensões. Até outro dia, sobretudo no Nordeste, jovens talentosos beijavam a mão de velhos coronéis para ascender politicamente.
O PT mudou a cara do Nordeste, representou uma nova perspectiva para pobres, negros e mulheres de todo o país e combateu a desigualdade como nenhum outro partido, usando a educação como instrumento de transformação. Enterrou velhas oligarquias que, agora, esboçam um movimento de retorno, o que deveria estar no centro das nossas preocupações.
As eleições municipais não permitiram ao PT recuperar o espaço que perdeu em 2016. O avanço foi tímido. Com o encolhimento do centro (PDT e PSB) e da centro-direita (PSDB), ganharam terreno os partidos da direita e extrema direita descendentes da velha Arena, base de sustentação do regime militar e do bolsonarismo.
O antipetismo, em alguma medida, é também fruto do desejo de que uma polarização entre direita e extrema direita se estabeleça como garantia de que as estruturas socioeconômicas do país não se alterem. Nessa medida, a extrema direita é sistemicamente funcional enquanto cativa para um projeto reacionário parte do eleitorado pobre que quer “mudança”.
O PT de Lula tem diante de si um futuro não menos desafiador neste país que, se nada for feito, terá, na precisa expressão de Millôr, um enorme passado pela frente.
Artigo publicado no jornal Folha se São Paulo
04/12/2020