Por NJAE – Negros e Negras da Juventude da Articulação de Esquerda
Para descrever o passado, falar do presente ou projetar o futuro, categorias universais podem ser mais provincianas ou excludentes do que se imagina. Como os homens, os conceitos e as palavras também possuem história. Trajetórias essas que nos ajudam a entender o porquê de seus usos, bem como as apropriações realizadas em determinado espaço e/ou num tempo específico. Eis que, em mais um 20 de novembro, dia da consciência negra, observamos novamente um movimento em torno da apelação por uma “consciência humana”, supostamente mais abrangente, capaz de abraçar a protagonista do dia: a consciência negra.
Humanidade. Um termo difícil de se conceituar e mais complicado ainda de lhe dar. Ao longo da história, negro e humano foram considerados como categorias antagônicas. Hoje considerado genericamente o correspondente ao conjunto de homens e mulheres que habitam este planeta, ser “humano” já foi considerado um privilégio, ou melhor, um rótulo de homens que curiosamente detinham na cor de sua pele um elemento caracterizador.
O que parece, aos nossos olhos do presente, ser supostamente uma condição natural, não era mais do que um elemento demarcador entre a dita superioridade de alguns e a dita inferioridade de muitos, a partir de padrões estéticos, culturais, sociais e políticos impostos por projetos de dominação. Para aqueles que me leem e ainda consideram essa discussão como abstrata, como não se lembrar, por exemplo, de que, no caso dos indígenas, o que se chamava de “humanidade” foi lhes atribuída por sujeitos que gozavam disso como um direito quase que natural, de forma hereditária e vitalícia.
Falar de consciência humana num dia da consciência negra é uma das ações mais contraditórias e desprovidas de outro tipo de consciência, a cidadã. No projeto da tal consciência dos humanos, a generalização do termo constitui-se numa grande borracha na história dos milhões de negros e negras. Estes, escravizados juridicamente, sob condição análoga ou parcial no interior do sistema capitalista, sofreram com as mais diversas opressões da história, inclusive, curiosamente, a retirada de sua “humanidade”.
E o momento histórico dessa discussão seguramente não poderia ser outro. Enquanto setores políticos do país revisam a escravidão ao considerá-la como “obra” dos mesmos negros, a tal consciência “humana” emerge senão em outro contexto no qual nossa existência se encontra em situação frágil, inclusive fisicamente. Dados do Atlas da Violência, divulgados ainda neste ano, apontam para o aumento no número de homicídios de pessoas negras no país, elevando também a diferença em relação às não negras. Do ponto de vista econômico, negros e pardos representam hoje, segundo o IBGE, quase dois terços dos indivíduos fora do mercado de trabalho. Os construtores do universal “humano” no Brasil se esquecem (ou não) de um passado e de um presente no qual o racismo é regra, a partir das muitas reinvenções ao longo da trajetória do país. A equiparação da heterogênea sociedade brasileira no discurso é como uma máscara mal colocada, pois, no primeiro teste, logo se rompe. Assim, o clamor pela homogeneização das consciências não dura um argumento ao colocarmos em confronto com a situação atual dos mais pobres, cujo, em sua maioria, são negras e negras, lutando pela sua sobrevivência social, cultural, política e econômica, em meio ao avanço da retirada dos mínimos direitos que lhes poderiam conceder algum horizonte de emancipação.
A consciência negra é também uma consciência histórica. Um encontro da memória individual e coletiva de cada indivíduo que é conhecedor de sua condição no interior da sociedade brasileira e a História de nosso povo. A emancipação dos mais pobres em um país como o Brasil passa necessariamente pela conscientização de um passado escravista, de um presente racista e de um futuro incerto para estes que continuam a lutar contra universalizações que não são mais do que negações de nosso lugar na história.