Por Pamela Kenne (*)
A Universidade Federal do Rio Grande do Sul é a 15ª instituição federal de ensino a ter os seus processos deliberativos internos ignorados, sofrendo intervenção do governo Bolsonaro na nomeação para o cargo de reitor, mesmo tendo sido reconhecida pelo MEC por oito anos consecutivos como a melhor universidade federal do país. Os critérios de escolha para os cargos de reitores têm sido o alinhamento político com o governo federal e a disposição de efetivar as suas medidas antidemocráticas na gestão. Além de ferir a autonomia universitária, trata-se do alastramento de um projeto estratégico de governo baseado no autoritarismo e no desmonte de órgãos públicos, em diversas esferas.
O interventor político, Carlos André Bulhões Mendes, foi o terceiro colocado na consulta interna à comunidade acadêmica, não tendo obtido vitória em nenhuma das categorias. Pelo contrário, o resultado da votação expressou a contrariedade da comunidade a sua eleição, sendo que a chapa da qual representa (1) obteve 1.860 votos, contra a chapa 2 que obteve 4.683, e a chapa 3 com 8.947 votos. O campo democrático, de esquerda e petista se dividiu entre a chapa 2, representada por Rui Oppermann e Jane Tutikian, e a chapa 3, Karla Maria Müller e Claudia Wasserman. A primeira, mesmo com votação universal menor e derrotada nas categorias dos trabalhadores técnicos administrativos e discentes, foi vitoriosa.
A democracia interna da universidade foi questionada anteriormente à intervenção. Apesar de amplo movimento em defesa da consulta paritária, por decisão do Consun, as eleições foram organizadas sob o prisma da lei regente (5.540/1968), em que o peso dos votos consultivos e deliberativos é de 70% para os docentes, salvaguardando maioria absoluta para a categoria. Mesmo que mais de 60% das universidade já adotasse práticas de consultas paritárias, com seus resultados respaldados nos conselhos superiores, a UFRGS não tem em sua trajetória recente a adoção de tal método. Neste ano, o receio de seguir um caminho “considerado perigoso” – o de não seguir as orientações formalizadas nas prerrogativas da lei – foi amplificado pelas ameaças de intervenção que vêm ocorrendo desde o início do ano de 2019 por parte de Bolsonaro.
Nos governos petistas e democráticos a prática cultural era a de indicação do primeiro nomeado da lista tríplice, independentemente dos processos deliberativos internos. Apesar de expressar um respeito informal à autonomia universitária, as atuais intervenções expressam o fatal erro da não implementação de uma reforma universitária que garantisse efetivamente a democracia interna, abolindo a necessidade de encaminhar listas para a escolha de reitores pelo governo federal. Neste ponto, cabe ressaltar que o atual governo já nomeou interventores que sequer constavam nas indicações tríplices, demonstrando que em período de golpe não há nenhuma garantia minimamente democrática.
Salvas as contradições, o reitor reeleito, Rui Oppermann, vinha sofrendo críticas e ataques por setores da direita por ser, em suas palavras, do “campo do lulopetismo” e representar um “projeto continuísta do PT” na gestão da universidade. Em termos concretos, as posturas do reitor em defesa da universidade pública, democrática e de qualidade causaram bastante incômodo aos golpistas. Pode-se citar como primeiro exemplo a sua posição sobre o falido projeto Future-se, expressando uma contrariedade firme sobre o que denominou como uma “forma de privatização por dentro da universidade”. Um segundo exemplo trata-se da nota aprovada no Consun no dia 11 de outubro de 2018 sobre a disputa eleitoral, em que constava a posição da UFRGS pela:
“[…] defesa incondicional da universidade pública, gratuita, autônoma, laica, pluralista, de qualidade, socialmente referenciada, de gestão democrática, centrada nos órgãos deliberativos e conectada às demandas da sociedade.
Entendemos que o fortalecimento da universidade pública, pilar do desenvolvimento científico e tecnológico nacional, é o caminho para a construção de um país justo, includente e democrático de direito, duramente conquistado e reafirmado na Constituição Cidadã de 1988.
Por todas essas razões, o CONSUN se posiciona:
Contra o autoritarismo e a violência política na vida cotidiana;
Pelo respeito aos direitos das classes trabalhadoras;
Pela imediata revogação da Emenda Constitucional 95 (tetos dos gastos);
Pela preservação da cultura e suas instituições;
Pelo direito à diferença;
Pelo reconhecimento dos direitos das mulheres, da livre orientação sexual e de gênero, dos negros, quilombolas e indígenas;
Pela defesa dos direitos humanos, a liberdade acadêmica e da DEMOCRACIA.”
O golpe na UFRGS fere, sobretudo, um projeto de universidade eleito por sua comunidade e ataca uma instituição que vêm se posicionando em defesa da ciência, da soberania e do desenvolvimento nacional. O que está em vista é a submissão ao estrangulamento orçamentário, à perseguição política e a própria destruição do conceito de “educação pública e de qualidade” e do desenvolvimento científico e tecnológico. Soma-se ao fato o fim gradual das políticas de assistências estudantil, a supervalorização do ensino remoto, a redução drástica das bolsas e demais formas de investimento na pesquisa, a paralisação de quaisquer obras de infraestrutura, além das medidas que implicam na instabilidade dos servidores públicos. O ex-ministro da educação, Ricardo Vélez, já havia deixado a síntese da visão do atual governo sobre as universidades: devem ser reservadas para uma “elite intelectual”.
A intervenção na UFRGS é apenas mais um capítulo do golpe orquestrado em 2016. Demonstra que a vontade da maior parte do povo, em qualquer lugar, não está acima dos interesses das elites nacionais e internacionais. Sobretudo, demonstra que o lado de lá está disposto a romper todos os limites democráticos para seguir a implementação de seu projeto de retirada de direitos, de entrega e capitalização de patrimônios públicos.
Nesse momento, cabe organizar a resistência e a polarização em torno de projetos de sociedade e universidade. Na UFRGS, as associações representativas das três categorias se posicionaram contra o golpe e chamaram manifestações para os próximos dias. No dia 17 de setembro está marcado o primeiro ato “Eles Não! Não queremos Bulhões!”. A bancada do PT protocolou na câmara o projeto de decreto legislativo 400/2020, o qual visa derrubar a nomeação do interventor. O núcleo petista das IFES/RS, constituído em 2019, deve cumprir um papel de organizar a oposição democrática e de esquerda para o enfrentamento das medidas que virão e para a defesa do programa de universidade democrática e socialmente referenciada, da pesquisa e do desenvolvimento e dos direitos da comunidade.
(*) Pamela Kenne é integrante da Executiva do PT/RS e JPT/RS. Mestranda no Programa de Sociologia da UFRGS.