Por Sergio Albergaria
Nos tempos pré-golpe e pós-golpe de Estado de 2016, que eufemisticamente se denominou “impeachment”, formou-se um condomínio de facções que tomaram de assalto o poder e o Estado brasileiro: o Poder Judiciário partidarizado e seletivo, o Ministério Público Federal engajado na judicialização da política e na partidarização das instituições republicanas, a Polícia Federal comprometida com a partidarização policial, o grande capital nacional representado pelo empresariado industrial e pelo agronegócio, e a grande mídia parcial, embusteira e manipuladora.
Instaurou-se o tal “combate à corrupção” a serviço do projeto político-econômico dessa gente sob outro eufemismo: de “mudar o sistema”.
Apresentou-se a Operação Lava Jato, a noiva acima de qualquer crítica ou suspeita desse casamento de interesses escusos, como se fosse uma obra divina à qual “Deus está respondendo”.
No jargão tão ao gosto dos paladinos dessa nova cruzada judicial, “ninguém está acima da lei”.
O artigo 127 da Constituição Federal diz que o “Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”
É uma regra importante. Afinal, o Estado não pode perseguir uns em detrimento de outros. De igual forma também não pode ter preferências.
Desde o início da Operação Lava Jato, porém, o Eliot Ness nacional e seus “intocáveis” da força-tarefa, já tinham de antemão escolhido os Scarface’s para encarcerar e derrubar.
Faltava-lhes encontrar crimes capazes de legitimar a sua escolha para enquadrar coercitivamente, prender preventivamente, condenar seletivamente e aprisionar definitivamente.
É o que fizeram nas dezenas de fases da tal “operação”, ao pisarem na ordem jurídica vigente, ao rasgarem direitos e garantias constitucionais, ao menosprezarem o Estado Democrático de Direito, ao menoscabarem dos destinos do País, ao se lixarem para as consequências imprevisíveis e sombrias que só ao povo mais trabalhador e sofrido atingirá, e para preservarem “os intocáveis” aos quais se consorciaram para, a pretexto de combaterem a corrupção, aniquilarem toda uma nação.
Para haver justiça é preciso não haver produção de injustiças. Para haver justiça é necessário não existir a perpetuação de exclusões, nem a naturalização de opressões e tampouco a rotina de dominações.
Por essas e outras é que a reforma do Poder Judiciário deveria começar pela eleição de desembargadores e ministros dos tribunais superiores pelos juízes de carreira de primeira instância e que o acesso à carreira de juiz de direito de primeiro grau se desse apenas por concurso público de provas e títulos, mediante exame escrito e oral por banca multidisciplinar de examinadores.
Afinal, não somos “todos iguais perante a Lei?”
O Judiciário, antes acusado de apêndice do poder governante, tornou-se partido político, sem necessitar de voto popular para mandar e desmandar, dizer, desdizer e se contradizer.
Os membros do Poder Judiciário brasileiro pensam a realidade brasileira não a partir da própria realidade, e sim como se eles próprios fossem faróis de cultura superior a iluminar os destinos dos mares terceiro-mundistas.
Não há uma atitude jurídica genuinamente brasileira como produto de uma reflexão crítica pensada como nossa, porque, colonizados, nossos juristas do Judiciário e do Ministério Público riem-se da insignificância do pensamento brasileiro, e preferem dar azas às construções jurídicas do colonizador e de anódinas doutrinas elitistas europeias.
O Poder Judiciário e o Ministério Público brasileiros sempre estiveram vestidos com um escafandro jurídico-filosófico construído por duas culturas estrangeiras: o modo de pensar europeu e a maneira americana de atuar, em vez de tentar uma identidade própria de reflexão jus-filosófica puramente tupiniquim.
Nas academias de Direito não se produz filosofia do direito brasileiro, nem sociologia do direito brasileiro. Nesses dois campos fundamentais para a formação de juízes de direito e promotores de justiça, velhas ideias e concepções dão o rumo, a velocidade e o tom do ensino jurídico, embalsamado em bolor teórico e contaminado por prática estéril.
Outra distorção do Poder Judiciário brasileiro é o incentivo indiscriminado à conciliação e à mediação, como também a práticas processuais que induzem ao consenso, e não à solução dos conflitos pela análise do direito e das provas, próprio de um Poder que confessa sem remorso nem vergonha sua própria incapacidade e incompetência para fazer o que tem que fazer, para cumprir o dever que tem que cumprir: julgar.
Esse é um Poder Judiciário que se compraz em ser complacente com a consolidação de um golpe de Estado porque o interpreta como algo positivo por ser fruto de um consenso entre parte hegemônica da classe política e a classe dominante.
Esse Poder Judiciário que se acumplicia à classe política mais espúria para executar reformas econômicas estruturais que contemplam o retrocesso dos direitos educacionais, trabalhistas e previdenciários, não é apenas um Judiciário acovardado, mas também subjugado, associado aos poderes econômico e político.
Um Judiciário que se submete às agressões contínuas à legislação educacional, trabalhista e previdenciária e aos estudantes, trabalhadores e população mais vulnerável, sem reação de relevo e importância.
Um Judiciário que assiste sem resistência a imposição do discurso de “prestigiar a negociação coletiva”, mesmo em disposições pétreas da legislação trabalhista é um Judiciário indolente, indigente.
Um Poder Judiciário que cede às chantagens do capital quando aceita impassível a excessiva conciliação/negociação sobre direitos inegociáveis, dos quais são exemplos, as horas extras sem remuneração, as dispensas imotivadas e sem pagamento das verbas rescisórias, os acidentes de trabalho sem reparação e indenização condignas, e as doenças profissionais por descumprimento de regras pelo empregador.
Um Poder Judiciário que atua como braço do Estado corporativista e interventor, e contribui para retirar a força do trabalhador para negociar e fragilizar os sindicatos como representações coletivas, não é um Judiciário imparcial e equilibrado, e sim um poder estatal apêndice do patrão.
Esse Poder Judiciário é um Judiciário de partido, no sentido ideológico e no sentido de tomar partido, de assumir posição ao lado de alguém, de ter lado. É, portanto, e sobretudo, um Judiciário parcial, desigual e instável.
A cabeça de certos juízes às vezes é, de fato, um deserto de ideias, ou de areia para felinos.
O golpe de Estado de 2016, verdadeira farsa-tragédia para o País e carnificina para a Democracia e para o Estado de Direito, mostrou o que não queríamos ver: um Poder Judiciário omisso, conivente, cúmplice de uma ideologia cínica e retrógrada, de moral líquida e de ética baseada na mentira impermeável; um Judiciário comparsa de ladrões de casaca.
Para um poder que deve primar pela imparcialidade, equidistância e equilíbrio, tomar partido, assumir posição ao lado de determinadas forças econômicas e políticas, não é apenas vergonhoso, ou lamentável. É imoral.
O poder judiciário brasileiro, mais uma vez, apequenou-se à vaidade, à arrogância e aos concílios promíscuos. Transformou-se num vigia de quarteirão, que detém e entrega à prisão a verdade, condena sem provas, e, de forma implacável, consagra a injustiça.
Em meio ao caos faz prevalecer a ordem injusta e para manter a ordem menospreza a imparcialidade, sepulta a verdade e desequilibra toda a sociedade brasileira, juridicamente, publicamente, despudoradamente, desavergonhadamente.
O Direito e a Justiça, valores supremos do Estado Democrático, agonizam em meio à praça defronte ao único poder que manda de fato e domina este País: a ditadura da toga.
Com a ajuda luxuosa do PMDB, da violenta Polícia Militar, e da cobertura espetaculosa dos grandes conglomerados de mídia, claro.
Os quatro últimos sobreviventes intactos da ditadura civil-militar.