Por Maria Caramez Carlotto (*)
Artigo publicado na edição 14 da revista Esquerda Petista
As manifestações de junho de 2013 completarão 10 anos este ano. A efeméride, por si só, já justificaria uma reflexão sobre o tema, mas a semelhança entre as imagens de uma multidão “tomando” o prédio do Congresso Nacional em junho de 2013 e na tentativa de golpe em 8 de janeiro deste ano de 2023 colocou o assunto na pauta com ainda mais intensidade.
A semelhança não é de todo casual. Durante a preparação dos ataques de 8 de janeiro, circularam nos grupos golpistas de WhatsApp muitas imagens das marquises do Congresso tomadas pela multidão em junho de 2013. Os takes favoritos eram os que centralizavam as poucas bandeiras do Brasil presentes à época e os que, por efeito das sombras, neutralizavam as camisetas vermelhas que se destacavam, por contraste, na multidão. Acompanhadas de convites mais ou menos explícitos para a “tomada do poder”, as imagens mobilizadas sugerem que os manifestantes de 2013 serviram, de fato, de inspiração para os golpistas de 2023.
Essa reivindicação de filiação reforça uma percepção, bastante difundida em certos setores da esquerda brasileira, de que junho de 2013 foi, desde o seu início, um protesto majoritariamente “reacionário”. Nessa visão, as grandes derrotas sofridas pela esquerda a partir de 2015, em especial o golpe parlamentar, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro, devem ser postas na conta dos protestos de junho.
Essa perspectiva que considera 2013 uma espécie de “ovo da serpente” é reforçada por uma leitura internacionalista que, pautada pela noção de Guerra Híbrida, enfatiza – por vezes de maneira exagerada – a semelhança entre 2013 e várias outras manifestações urbanas ocorridas mais ou menos na mesma época, no que ficou conhecido como “revoluções coloridas”. Ao colocar toda a agência dos protestos no exterior, essa visão considera que eles foram, em essência, reflexo de interesses imperialistas no país, reforçando uma leitura extremamente negativa daquele movimento.
Por fim, a força dessa visão negativa se explica, também, pela histórica divisão tática e estratégica entre setores mais institucionalizados da esquerda, em especial os que apostam na centralidade da forma partido e da disputa do Estado, e setores mais anarquistas, que se pautam por outras formas de organização, mais próximas da horizontalidade e da ação direta individual. Essa divisão foi especialmente forte em 2013, quando a esquerda partidária, representada especialmente pelo PT, estava de um lado da trincheira, ocupando postos no governo em muitos dos lugares em que os protestos foram mais fortes, ao passo que o campo autodenominado autonomista, com o Movimento Passe Livre (MPL) à frente, estava do outro, liderando as manifestações até sua massificação, em 17 de junho. A incompreensão mútua entre esses dois polos fortaleceu, nos setores mais institucionalizados da esquerda brasileira, a leitura de que junho de 2013, por se voltar “contra os governos do PT”, produziu um processo político reacionário urdido pela direita.
Essa tese do “ovo da serpente” é tentadora, mas, a meu ver, equivocada.
Equivocada porque desconsidera que as manifestações de junho de 2013, até pela sua magnitude, foram acontecimentos complexos, por vezes contraditórios, cujo significado não estava dado neles mesmo, desde o seu início, mas dependia essencialmente das disputas que se travariam no seu desenrolar. Dessa perspectiva, para entender realmente o que foi junho de 2013, é preciso abandonar uma leitura fatalista que, mitificando ou condenando aquele movimento, assume que seu desfecho era inevitável, sendo apenas o desdobramento de tendências inerentes.
Numa outra chave, defendo aqui uma visão mais política que, aceitando o caráter contraditório de 2013, assume que seu significado estava (e permanece) aberto, enfatizando, por isso mesmo, a necessidade de disputá-lo. Para essa visão, antes de condenar ou mitificar junho de 2013, era (e é) preciso entender aquele movimento nos seus diferentes vetores de força para, assim, incidir sobre seus desdobramentos. Isso implica abandonar visões estereotipadas, tanto da parte daqueles que condenam junho de 2013 pelas razões já apontadas, quanto dos que, considerando-o expressão genuína de uma indignação popular amplamente progressista, atribuem o seu desfecho negativo apenas à incompreensão e à intransigência da esquerda institucional, liderada pelo PT.
Na prática, proponho entender junho de 2013, antes de tudo, como um conflito socialmente determinado, mas politicamente aberto, ao mesmo tempo complexo e permeável à disputa.
Isso significa considerar 2013, em primeiro lugar, resultado das crises e contradições do capitalismo brasileiro. Nesse sentido, nossa formação social profundamente desigual, ancorada em formas intensivas de exploração do trabalho, da escravidão colonial à superexploração moderna, tornou o Brasil, desde sempre, terreno propício para a expansão do capitalismo nas suas formas mais predatórias. Assim, ao contrário da leitura hegemônica das ciências sociais liberais, o problema do Brasil nunca foi falta de capitalismo, mas excesso. Tanto que, até a virada neoliberal dos anos 1970, o Brasil foi o país que mais cresceu no século XX. Esse crescimento acelerado, somado à já mencionada superexploração da força de trabalho, tornou as grandes cidades brasileiras palco de tensões e conflitos muito intensos que, pela sua espontaneidade, nem sempre foram compreendidos pela esquerda previamente organizada.
Um ótimo exemplo é a assim chamada “Revolta da Vacina” que, na verdade, deveria ser lida não como um movimento negacionista avant la lettre, mas como um protesto espontâneo e desorganizado contra a política urbana elitista na Primeira República, que gentrificava os centros urbanos, expulsando as classes trabalhadoras para morros e periferias.
Era o início de uma conformação urbana profundamente desigual, marca registrada do capitalismo brasileiro, cujo traço principal é a segregação entre áreas centrais voltadas para as elites, onde a classe trabalhadora se dirige apenas para trabalhar, e áreas periféricas, às vezes cidades dormitórios, em geral distantes e abandonadas pelo poder público, para onde que a classe trabalhadora se desloca cotidianamente para descansar.
Essa segregação territorial, ligada ao padrão de investimento capitalista e às divisões de classe da sociedade brasileira, fizeram do transporte público, desde sempre, uma pauta explosiva no país. Isso é verdade sobretudo depois que o transporte se tornou, ele mesmo, um negócio privado, por meio de uma política de concessões do Estado. Essas tensões envolvendo o transporte público tornaram-se especialmente agudas a partir da guinada neoliberal dos anos 1990, quando, de um lado, intensificou-se a exploração da força de trabalho, aumentando o impacto do preço desse transporte no orçamento familiar, especialmente entre os setores cada vez mais numerosos de trabalhadores informais (e, portanto, sem direito ao vale-transporte) e, de outro, cresceu a privatização desse serviço público por meio de concessões cada vez mais vantajosas para as empresas e desfavoráveis ao público usuário, ou seja, à classe trabalhadora.
Por isso, se revoltas ligadas ao custo e à qualidade do transporte urbano ocorrem no Brasil pelo menos desde o início do século XX, a partir do início dos anos 2000, elas se intensificaram, com destaque para a Revolta do Buzu, de 2003, em Salvador, e a Revolta da Catraca, de 2004, em Florianópolis. Ambas tiveram características de insurreição popular e foram decisivas para a formação do MPL a partir de 2005. Aos poucos, o MPL ganharia capilaridade nacional e, sob uma organização federada e horizontal, lideraria, num primeiro momento, os protestos de junho de 2013 contra o aumento das passagens de ônibus.
Por tudo isso, embora tenha ficado esquecida, a pauta dos transportes é absolutamente central para entendermos junho de 2013, como mostram os dados que sistematizei em um texto publicado na época:
“Segundo o Datafolha, o índice de aprovação das manifestações em 18 de junho de 2013 chegou a 77% na cidade de São Paulo, sendo que 67% dos entrevistados associaram, espontaneamente, a causa dos protestos ao “aumento das passagens municipais”. A centralidade da questão dos transportes foi confirmada, também, pela pesquisa do IBOPE realizada com o conjunto da população brasileira: para 59% dos entrevistados pelo Instituto em todo o Brasil, a causa dos protestos foi o aumento das passagens, contra um terço que apontam outras pautas como corrupção, saúde e educação”.[1]
Mas além de consequência da nossa formação histórica capitalista, os movimentos de junho de 2013 devem ser lidos, também, como resultado das tensões e contradições da política brasileira, especialmente dos governos do PT, tanto em âmbito federal (com o governo Dilma Rousseff) como estadual (no caso de Minas Gerais e Rio Grande Sul, por exemplo) e municipal (no caso paradigmático de São Paulo).
Em 2013, o PT estava há exatamente dez anos à frente do governo federal. Era tempo suficiente para se sentir os efeitos de algumas de suas políticas mais decisivas, com destaque para a expansão das vagas de ensino superior, tanto no sistema público quanto privado, que impactou profundamente a dinâmica política e cultural da juventude brasileira. Essa juventude, importante frisar, era a maioria absoluta dos manifestantes de junho de 2013, tanto na primeira fase, sob liderança do MPL, quanto na segunda, mais massificada e desorganizada, quando vimos uma explosão de pautas, repertórios e estéticas.
De novo, cito os dados que levantei à época:
[…] segundo o Datafolha, das 65 mil pessoas que se reuniram no Largo da Batata em São Paulo na segunda-feira, dia 17 de junho, 77% tinham ensino superior completo ou incompleto, 51% ainda estavam na faculdade e 76% eram trabalhadores assalariados, registrados ou não. Olhando para as escolas de origem, 13% eram alunos da USP, 8%, da PUC ou Mackenzie e 30%, estudantes de outras universidades e faculdades, a maioria absoluta delas, privadas[2].
Nesse sentido é que tendo a acompanhar a análise de Marcelo Ridenti que, ao analisar o perfil dos manifestantes de junho de 2013, sistematizou: “se trata de uma juventude, sobretudo das camadas médias, beneficiadas por mudanças nos níveis de escolaridade”[3].
Porém, diferentemente do que a noção de “camadas médias” pode sugerir, essa juventude que entrava em massa no ensino superior não era oriunda de famílias previamente escolarizadas que financiavam a dedicação exclusiva aos estudos da pré-escola à faculdade. Na verdade, eram filhos e filhas da classe trabalhadora que, acessando o ensino superior pela primeira vez na família, precisavam conciliar estudo e trabalho numa jornada massacrante. Como destacou Marcio Pochmann à época, esses estudantes/trabalhadores se submetiam a uma jornada de trabalho e estudo maior do que a dos operários do século XIX, chegando, em média, a 16 horas diárias – oito de trabalho, quatro de estudo e outras quatro de deslocamento[4].
Essa intensa jornada é o que explica, de um lado, a centralidade da pauta do transporte público para esses setores e, de outro, a sua relativa despolitização. Sem tempo de participar da vida política das instituições que acessavam, muitos desses jovens estavam, à época, à margem das formas tradicionais de organização, tendo nas redes sociais sua forma principal de informação e articulação. Essa é a razão pela qual as lideranças jovens da esquerda – essas sim, oriundas das tradicionais camadas médias – tiveram certa dificuldade de entender o repertório da massa de jovens que tomou o país. Um exemplo disso é a identificação imediata com símbolos pátrios – que, na época, eram antes sinônimos genéricos de política do que insígnias de identificação consciente com uma tradição política de direita.
Reconhecer tudo isso não significa, no entanto, negar que outros vetores também incidiram naquele movimento. Em particular, é importante destacar o peso das organizações de direita que, imersas em redes internacionais de financiamento e articulação, estavam prontas para disputar aquele movimento com seu repertório, sua linguagem, suas pautas, seus símbolos e suas plataformas. É isso que explica, a meu ver, a rapidez com que a pauta do combate à corrupção se espraiou a partir da segunda quinzena de junho. Resultado, em parte, de uma visão neoliberal que minimiza o peso da redução do Estado na má qualidade dos serviços públicos, em parte de uma perspectiva punitivista que atingiria seu auge com a Operação Lava-jato. A força da pauta da corrupção se fez sentir, na segunda fase dos protestos, no combate à PEC 37, que restringia o poder de investigação do Ministério Público. Articulado principalmente via redes sociais, o movimento contra a PEC 37 é um exemplo explícito de que junho pode ter começado, mas não prosseguiu como um movimento espontâneo.
Tudo isso ocorria em um contexto em que a crise econômica e política internacional se intensificava, agudizando tanto as tensões entre as grandes potências e o ensaio brasileiro de autonomia externa quanto a luta de classes em âmbito nacional. Era, portanto, um contexto propício para o conflito político, o que aumentava a necessidade da esquerda de disputar, com força, aquele ensaio de insurreição popular. Mas não foi o que aconteceu.
A esquerda ficou dividida entre setores mais organizados que tiveram dificuldade de entender o peso das contradições internas na eclosão espontânea de uma revolta que não compreendiam e não lideravam e setores mais autonomistas que, inicialmente à frente do movimento, tiveram dificuldade de perceber o peso dos embates estratégicos no devir daquela mobilização.
Por isso, junho de 2013 foi rapidamente transformado numa espécie de tabu, ou melhor, um enigma que a esquerda brasileira, nas suas diferentes tradições, tem dificuldade de decifrar. Agora, em 2023, um novo ciclo se abre e, mais do que antes, é um erro não compreender a complexidade daquele movimento, considerando-o, apenas, um ensaio para a mobilização posterior da extrema-direita. Um erro tão grande quanto considerar que esta mesma direita não se fortaleceu a partir daquele movimento. Em um e outro caso, minimiza-se a importância de, numa chave política, entender junho de 2013, diferentemente de janeiro de 2023, como um movimento em disputa.
(*) Maria Caramez Carlotto é formada em ciências sociais na USP, com mestrado e doutorado em sociologia pela mesma instituição. Atualmente é professora do Bacharelado em Ciências e Humanidades (BCH), do Bacharelado em Relações Internacionais (BRI) e da Pós-Graduação em Economia Política Mundial (EPM) da UFABC.
[1] Ver: Maria Carlotto. “Decifra-me ou devoro-te: o enigma de Junho”, disponível em: http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=06&t=14
[2] Ver: Maria Carlotto. “Decifra-me ou devoro-te: o enigma de Junho”, disponível em: http://www.revistafevereiro.com/pag.php?r=06&t=14
[3] Marcelo Ridente publicou um texto na Folha de S. Paulo intitulado “Que juventude é essa?” em que aborda justamente essa dimensão da experiência universitária. O texto integral está disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/06>
[4] Ver: <http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/pochmann-pobres-que-trabalham-e-estudam-tem-jornada-maior-que-os-operarios-do-seculo-xix.html>. Ver também artigo de Alvaro Comin e Rogério Jerônimo Barbosa intitulado “Trabalhar para estudar: sobre a pertinência da noção de transição escola-trabalho no Brasil”, publicado na Revista Novos Estudos CEBRAP n. 91 em 2011 e disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002011000300004&lang=pt>