Justiça: por que a ‘justiça’ não funciona?

Por Egydio Schwade (*)

Já completei 85 anos de idade. 58 empenhado na luta por justiça para os povos indígenas e agricultores familiares. Por isso respondo há 8 anos processos movidos contra mim pelo Judiciário. Estes começaram no dia 2 de junho de 2011, quando evitei a execução de liminar do Juiz da comarca de Rio Preto da Eva/AM, Dr. Roger Paz de Almeida. A liminar feria a Justiça. Ordenava o despejo injusto de 35 famílias da comunidade Terra Santa, BR-174, km 152, há 12 anos radicados em terras da União.

Alega-se que a justiça é cega. De fato, é o Judiciário que é “cego”, ou finge estar cego, frente às injustiças. A maioria absoluta de juízes se esconde em alguma capital, federal, estadual ou municipal, em algum Forum ou ‘Palácio da ‘Justiça’, atrás de papéis, olhos fixos nos autos de seus clientes, quase sempre ricos, procurando brechas na lei que os favoreçam. Tudo para não enxergarem a injustiça.

Fui integrante da equipe de fundadores e mestres do 1º.Ginásio do município de Diamantino/MT. Éramos bacharéis ou mestres, formados em alguma universidade, do Sul, do Leste ou do Nordeste. Criamos o Ginásio para atender indígenas e filhos de garimpeiros e agricultores pobres. Obviamente, não negamos a entrada aos filhos da pequena elite da então cidadezinha Diamantino. Ali estudaram líderes que se distinguiram nas duas vias por onde se move a Justiça brasileira: ‘Justiça’ das elites, paga com dinheiro público e Justiça dos pobres, voluntária e sem férias. Na 1ª. tivemos como aluno, o Dr. Gilmar Mendes, Ministro do Supremo Tribunal Federal. Na 2ª. via, se distinguiram Daniel Matenho Kabixi, Gilberto Kutap Kayabi, Albano Muxi Rikbaktsa, entre outros.

Estes últimos lutaram por Justiça para os povos indígenas. Segui-lhes os passos. Matenho e Muxi, participaram da 1ª. assembleia dos povos indígenas, em Diamantino/1974 que desencadeou um processo de Justiça para os povos indígenas brasileiros. Matenho se distinguiu nas assembleias que se seguiram e que levaram muitos povos a garantir autonomia sobre os seus territórios e a retomar sua cultura. Uma luta reconhecida por respeitadas entidades, como a CNBB que em 1979 o convidou para participar da CELAM-Conferência Latino-americana dos Bispos em Puebla/México. Sua presença ali foi impedida pelo Governo Militar. A “Justiça” das elites não moveu um dedo contra esta arbitrariedade. Muxi, lutou a vida toda contra o latifúndio, por Justiça para seu povo Rikbaktsa e os povos do Noroeste de Mato Grosso. E Kutap Kayabi acompanhou a gente de sua aldeia, arrancada pela FAB da sua terra fértil no rio dos Peixes e deportada para o árido Parque Nacional do Xingu, para abrir espaço a latifundiários, como os familiares do Juiz Dr. Deltan Dalangnol, um líder da ‘Justiça’ das elites. Os três líderes indígenas viveram e morreram, – como tantos outros: – Ajuricaba, Tiaraju, Kretã, Tupâ-y..,todos encarnados na realidade de sofrimento de seus povos, lutando por Justiça e morreram pobres junto ao seu  povo, mas satisfeitos pela missão cumprida.

A partir do ano de 1963 me integrei nesta 2ª. via da Justiça, procurando abrir os olhos para muitas vocações, na direção dos que sofrem injustiça no chão brasileiro.

“Fome, doenças e aventureiros dizimam os Pakaa-novas”.(Correio do Povo/Porto Alegre-13-03-1962).

Em 1963, na beira do Rio Papagaio, um afluente do Juruena, em Mato Grosso, sob uma frondosa mangueira de manga rosa, vivi  a minha 1ª. experiencia da estranha “justiça” do Judiciário.  Diante dos meus olhos, a Polícia de Mato Grosso, devolvia aos mandantes do “Massacre do Paralelo 11”, – crime cometido contra os índios Cinta Larga, pelos seringalistas Antonio Junqueira e Sebastião de Arruda,  – um caixote de armas(de aproximadamente 1,20 m de comprimento, 70 cm de largura e um palmo e meio de altura) que seringueiros revoltosos no Rio Juina-Mirim, haviam apreendido e desejavam devolver ao seu dono, o Exército, pois nas armas se lia: “Exclusivo do Exército Brasileiro”. Os facínoras, ficaram impunes, enquanto os seringueiros que trouxeram à luz as atrocidades cometidas contra os índios Cinta Larga e pediam orientação, foram presos. Um deles, testemunha ocular dos crimes contra os Cinta Larga, sofreu prisão perpétua, morrendo nas masmorras de Cuiabá. No meu diário escrevia à época: “Com certeza, o Judiciário sabia que estava dando cobertura a criminosos, mas preferiu praticar uma ‘justiça’ que nós chamamos de Injustiça.” Em 1975, Hélio Palma de Arruda, o irmão de um dos facínoras, era o Diretor do INCRA.

“Drama de 1.080 Famílias Indígenas Rio-grandenses” – (Correio do Povo. Série de 7 artigos. 04/1967)

Em 1967 visitei no Rio Grande do Sul as reservas ou toldos dos Indios Kaingang, em processo de invasão e espoliação. No toldo de Nonoai, reunido com os índios numa casinha de palha, sob forte chuva, perguntei-lhes sobre a situação da sua terra. Após uns minutos de silencio incômodo, uma índia me encarou com este desabafo: “Voces qué mexê de novo na nossa terra? Então é milhó vocês matá, aqui, esta indiarada toda e acabou sofrimento prá nóis e vocês tem o que qué!”. E me entregaram uma foto de companheiro Kaingang, apedrejado até a morte pelos invasores.

“Faltam Recursos para cuidar dos índios.” (Correio do Povo/1964.

Nas férias do ano seguinte, fui ao rio Arinos, Mato Grosso, onde soube que os índios Tapayuna, estavam sendo massacrados e envenenados por seringalistas e pela Firma CONOMALI, iniciadora da Colonização de Porto dos Gaúchos. Navegando pelo território dos Tapayuna, estes se apresentaram pacíficos na beira do rio. Poucos meses depois dois sertanistas sob a responsabilidade da FUNAI, acompanhados de jornalistas, contaminaram os índios de gripe que em poucos meses os reduziu de 500-1000 para 41. Estes sobreviventes, foram deportados para o árido Parque Nacional do Xingu, obrigados a ceder ao latifúndio o seu território de abundância no Arinos

“Indios  Xavantes foram a São Paulo em busca de armas e agasalhos“ (Correio do Povo – 20-06-63)

Em 1969 visitei os Kaingang e Guarani de Santa Catarina e do Paraná. Senti as suas preocupações, em especial, dos Kaingang de Mangueirinha, onde a Madeireira Slaviero, ameaçava o último pinheiral nativo existente, protegido por eles. Fiz um longo relatório sobre a situação aflitiva que viviam os índios em todo o Estado do Paraná. E acompanhei o seu drama com outros companheiros. Em dezembro de 1979, ainda tomei chimarrão com o cacique Angelo Kretã,.um mês antes de seu assassinato, na defesa do seu patrimônio. Em 1980 Wilmar D”Angelis me passou um relatório da aflitiva situação, que levei ao IV Tribunal Russell em Roterdam/Holanda. O Tribunal condenou o crime contra este povo, denunciando-o ao mundo.

“Machacalis e Krenakes em Minas Gerais se armam para defender suas terras.” Folha da Tarde/1966.

Por toda a parte surgiam vocações para atender os gritos de socorro destes povos injustiçados, mas as igrejas cristãs estruturadas, não tinham ambiente para acolher este “vinho novo”. Por isso me envolvi em 69, na criação da OPAN-Operação Anchieta, hoje Operação Amazônia Nativa que seleciona, treina e envia jovens, sem tomar em conta o seu credo e superando limites geográficos e religiosos, para conviverem com esses povos, sentindo a injustiça que sofrem e animando-os a se organizarem para a retomada do seu território, de sua cultura e autodeterminação. O mesmo objetivo me envolveu tambem na criação do CIMI em 1972 e na CPT em 1975.

Em 1970 visitei os sobreviventes dos Pakaa Novo e Makurap, na foz do Rio Guaporé, em Rondônia, povos sacrificados durante a construção da estrada Porto Velho-Guajará-Mirim.

 “Referindo-se às diretrizes da FUNAI para 1972, (o General) voltou a ressaltar que o índio não pode deter o desenvolvimento” (O Estado de São Paulo, 26/10/1971).”

Assim vi os índios golpeados e desaparecendo sob a euforia do Governo Militar por toda a a Amazônia. Os governo militar enxergava ali apenas um “vazio demográfico” a ser ocupado por investidores estrangeiros, pela “grilagem paulista” ou para aliviar os conflitos entre pequenos agricultores e o latifúndio no Nordeste, no Leste e no Sul.  “A terra sem-homens, para os homens sem-terra”, era o slogan. Surgiu assim o processo de corrupção mais ousado do país. Fazendas, madeireiras e empresas de mineração invadem por toda a Amazônia os territórios indígenas. A Fazenda Membeca se sobrepõe ao território dos Irantxe no rio Cravari. A AGROSSAM e outras sobre territórios índios que se estende entre os rios Sangue e Arinos. Assalto que perpassa Mato Grosso, Acre, Amazonas, Roraima, Amapá, Pará, Maranhão e Goiás. Em Utiariti, Noroeste de Mato Grosso, vi o Pe. Edgar acolher um peão fugitivo da AGROSSAM: Suas costas uma ferida só, supurando pus. Consequência do flagelamento com arame farpado. O Centro Burnier em Cuiabá conserva fotos e documentação. Na Fazenda California, no Alto rio Envira/AC, da Atlântica Boa Vista, recolhi, discretamente da parede interior da sede, um “soco inglês”, feito de madeira, para nunca mais servir ao seu fim. A “euforia bovina” dos militares dominava então toda a Amazônia. E o Judiciário, assistia omisso e silencioso, a toda esta injustiça, porque a ‘justiça’ que objetiva é outra, não se fundamenta no senso comum, apesar de todos os seus integrantes afirmarem que se orientam pela consciência e pela lei.

“O índio Apuí Assurini conta como a FUNAI  o  abandonou dentro do mundo ‘civilizado’ e revela que funcionários da FUNAI mataram vários índios Marubo no dia 6 de maio de 1975” (A Crítica, 10-01-75).

No ano de 1974 percorri o Alto Solimões, território dos Tikuna e Kokama. Ambos preocupados pela falta de garantia do seu território. Reunido com lideranças em Belém do Solimões estes me passaram uma proposta de território Tikuna-Cocama contínuo que encaminhei à FUNAI em Brasilia. Um ano depois, fui cobrar o andamento. Havia desaparecido. Encaminhei cópia, mas o assunto só andou após o massacre de São Leopoldo, no qual pereceram mais de uma dezena de Ticuna.

“6º. Batalão vence regiaõ dos índios” (Correio da Manhã/RJ – 01-08-72)

No mesmo ano visitei ainda os índios Guajajara e Canela em Barra do Corda/Maranhão, onde pude sentir a pressão dos madeireiros sobre a floresta das áreas indígenas, palco de violência contra os índios até os nossos dias. Seguindo para Altamira tive notícias dos índios Kayapó e Xikrim, exprimidos entre o Exército e a Guerrilha do Araguaia. E no rio Iriri, os Arara, ainda  isolados, tendo o seu território invadido pela COTRIJUI..

“Primeira Assembléia de Chefes Indigenas” Diamantino/MT 19-04-74 (Kosmos – Ano I – 07/1974 – No. 3)

Fui ainda até os Tiryió, na fronteira com o Suriname. Esta maratona de viagens teve duplo objetivo: ver a situação dos povos indígenas remanescentes e convidá-los para uma assembleia que se realizou em maio/1975 na aldeia/Cururu dos Munduruku/Alto Tapajós. Enquanto a ação do órgão oficial de proteção visava a desintegração dos povos indígenas, nós buscávamos reunir os índios, em assembleias para lutarem por seus direitos.

“FUNAI – desarmar os índios: Missangas e não colheres” ESP-25-1-75.

Boa parte do ano de 1976 passei no interior do Acre, vendo a situação dos povos índios naquele Estado e prestar-lhes solidariedade. Subi o rio Purus até a aldeia São Bernardo, em território peruano, escutando a história de sofrimento que levou os povos Madiha e Kaxinauá, à dispersão. E deles recebi a notícia de outras aldeias dispersas nos rios Envira e Juruá. Com dois jovens da OPAN atravessei então a floresta, do Purus ao Envira, pelas trilhas dos seringueiros. Na travessia, pude sentir de perto a situação dos seringueiros, naquele momento histórico, forçados a abandonarem as estradas de seringa. Do dia para a noite, sob o incentivo da Ditadura Militar, os seringais passaram a ter novos donos e novo objetivo: o plano agora era criar gado. Manobra que incentivou a ”grilagem Paulista”. Aos seringueiros, expulsos de suas “estradas”, restava agora a periferia da cidade e aos índios flutuar pela floresta, pelo “centro”, como se diz aqui, onde, muitas vezes, foram caçados como animais. No Envira conheci o Pedro Biló, bugreiro que se orgulhava de ter assassinado 3.000 Kaxinauá. Vendo as necessidades prementes dos índios Madiha, três jovens da OPAN, (assistente social, enfermeira e professor,) foram com aldeias do Alto Purus. Mal haviam iniciado o trabalho, foram retirados por ordem do superintendente da FUNAI, Porfirio de Carvalho, um fiel servidor da Ditadura Militar.

…“os índios e os pequenos agricultores do Acre estão passando para os países vizinhos por causa de ameaças e os índios daquele Estado nunca receberam qualquer assistência da FUNAI” (O ESP: 9-01-76)

Os últimos meses daquele ano passei em Roraima, no território dos Yanomami, Makuxi, Wapitxana, Taurepang. A maior parte na área Raposa Serra do Sol. Lá tambem incentivei as lideranças para uma assembleia que aconteceu em Surumu/01-1977. Assembleia que foi cercada pela FUNAI-Polícia Federal, colocando os índios ante o dilema: ou expulsam da assembleia, D. Tomás e Egydio, respectivamente, Presidente e Secretário Executivo do CIMI, ou fechamos a assembleia. Os indígenas não aceitaram a exigência e a assembleia foi encerrada. Como a noite já se aproximava, permitiram que os índios ainda pernoitassem ali. Foi o suficiente para, reunidos durante toda a noite, combinarem os passos de uma luta que se tornou vitoriosa 32 anos depois, com a homologação da Reserva Raposa Serra do Sol, como território contínuo. E um dos tuxauas, Jaci, presente na assembleia de Surumu/77, não se esqueceu daquele momento e em 2009 veio convidar a nossa família para os festejos da vitória que realizaram na aldeia Maturuca, na fronteira da Guiana.

“Atração de Atroaris é uma invasão de bárbaros”. (A Crítica, 27-03-75)

Naquele ano de 1977, percorri também o Rio Juruá, procurando ver a situação de aldeias remanescentes. Além de aldeias Madiha,,tive notícias do povo Deni do Rio Jiruã. Mas o que mais me chamou a atenção naquela viagem, foi o constante encontro com canoas com toldas de palha, descendo o rio, rumo a Manaus. Eram famílias de seringueiros, forçadas a abandonar os seringais, resultado do Plano militar para a Amazônia: substituir os seringais pela agropecuária, deixando milhares de famílias de seringueiros abandonados a sua sorte.

“Cabe a todos nós brasileiros a obrigação de mudar esta realidade, devolvendo ao INDIO a sua história a fim de que, ele mesmo, possa anunciar ao País, à sua Pátria, os valores sabiamente cultivados durante milênios e que Deus semeou em suas comunidades” – (Declaração do CIMI, Guararapes/sp 26-05-77.)

No mesmo ano de 1977 iniciei a percorrida pelo Leste do país, localizando comunidades indígenas. No Espírito Santo vi os Tupininquim, escravizados na sua própria terra. E pesquisando com amigos, topamos com o título de terra mais antigo, concedido a um povo indígena do Brasil. O título de terra dos Tupininquem, foi-lhes dado pelo rei de Portugal em 1610,. Mas à revelia da lei, estas terras foram vendidas a preço de banana pelo governo, em 1940 à firma Aracruz Celulose que a cobriu de eucalipto, valendo-se dos Tupininquim, como mão de obra escrava.

“FUNAI constitui uma ameaça ao índio.” – O ESP – 1977.

Em 1978 fui ver a situação dos indígenas remanescentes no Nordeste, iniciando pela Bahia. Em Rodelas, no rio S. Francisco, me defrontei com os Tuxá em grande aflição. O Governo Militar construía a barragem da Hidrelétrica de Itaparica, ameaçando o último nicho desse povo: A Ilha da Viúva. Os Tuxa me levaram até a Ilha. Ali vi o socialismo funcionando em plenitude. Foi lá que Antonio Conselheiro se inspirou para Canudos. Deveria ser tombado como patrimônio da humanidade. Era a única “ovelhinha” que lhes restava. Agora ameaçados de despejo e de serem transferidos para Kararaô no Pará, onde hoje se ergue a Hidrelétrica de Belo Monte. Animei-os a resistirem e a exigirem, como manda a lei, uma terra em condição igual, na Bahia. Mas os Tuxá foram despejados, sem indenização. Ficaram perambulando na região ate recentemente, quando o ex-Governador Fernando Pimentel, do Estado vizinho de Minas Gerais, lhes concedeu um terreno.

“Entre os seguidores de Antônio Conselheiro se encontravam brancos, negros, gente de recursos e gente miserável, homens e mulheres necessitados, que venderam seus pequenos bens, deixaram as suas terras para segui-lo, ex-escravos, ‘os negros de treze de maio’, caboclos dos antigos aldeamentos indígenas de Mirandela, Rodelas e Massacará”.(Cesar Wanderley – A Crítica/Manaus 14-11-97)

No mesmo Nordeste, visitei ainda outros povos. Tive notícia dos Xukuru da Serra de Ororubá, em Pesqueiras/PB.  Subi então a pé a serra, onde me encontrei com mais povo aflito exprimido entre montanhas e ameaçado no que lhe restou para sobreviver. A presença do CIMI, os animou a resistirem e lutarem pelo seu direito ao este derradeiro reduto. Mas isto custou o sangue de lideranças, como do Chicão, morto na defesa desse reduto na Serra do Ororubá.

“Deputado vai pedir prioridade para construção de hidrelétricas no Amazonas.” (A Crítica. 31-01-78)

E, no encalço deste meu 1º olhar, sobre a situação destes povos, tive a satisfação de ver chegar uma legião de jovens, rapazes e moças, da OPAN e do CIMI que foram mais longe do que eu. Foram conviver com estes “restos” de povos humilhados e escravizados, assumindo sua causa até as últimas consequências. Por toda a parte onde aterrissavam, os povos indígenas, foram reconquistando suas terras, revivendo sua cultura, reorganizando a sua autonomia a nível local, regional e nacional. Kayabis, Apiakás, Rikbaktsa, Irantxe, Myky, Nanbikuara, Paresi, Kabixi e Enauenê Nauê, Cinta Larga, no rio Juruena/MT e rio Roosvelt/RO; Pakaa Novo e Makurap, rio Guaporé; Guarani e Kaingang no Sul do Brasil; Wapixana, Makuxi, Yanomami de Roraima; Kaxinawá, Madiha, Axanika no Acre; Apurinã, Paumari, Tenharim, no sul do Amazonas; Deni e Kanamari, no Juruá e Jutaí; Kokama e Tikuna no Alto Solimões; Tupininquim, Xakriabá, Pataxó…no Leste do país; Tapirapé, Xavante, Xerente, Kraô, no Araguaia e no Tocantins; Fulniô, Pankararu, Tuxá, Truká, Xukuru-Kariri…” no Nordeste. Por toda a parte sentiam o calor desta presença jovem.

“optar seriamente, como pessoas e como Igreja, por uma encarnação realista e comprometida com a vida dos povos indígenas, convivendo com eles, investigando, descobrindo e valorizando, adotando sua cultura e assumindo sua causa, com todas as suas consequências; superando as formas de etnocentrismo e colonialismo ate o ponto de ser aceito como um deles.”( 4ª. Linha de ação do CIMI)

Convivendo e sentindo o que atormentava aquela gente: pium e doenças: malária, anemias, injustiça: escravidão e perseguição. Alguns sucumbiram por endemias, como a malária, ou males desconhecidos. Outros perseguidos, retirados das áreas compulsoriamente, sob tortura, como ocorreu em 1976 a três membros da OPAN-CIMI, por ordem do Superintendente da FUNAI no Acre.

Entre 1975 e 1978, uma jovem da OPAN, Doroti Alice, percorreu o Médio rio Madeira, o rio Purus e afluentes e o Rio Envira, localizando ‘restos’ de dezenas de povos desbaratados dispersos ou escravos em seringais, desencadeando por toda a região um processo de justiça que frutificou na conquista e domínio de seus territórios. Depois foi conviver com os índios Jarawara, no Médio Purus.

“Hidrelétricas ameaçam afogar 10 mil índios” (A Notícia – 23-10-79)

Namorei esta jovem e casamos em 1978. E em 1980, já com família, viemos morar no Amazonas, dispostos a levar solidariedade ao povo Waimiri-Atroari ou Kiñá, como se autodenominam. Este povo viveu a experiencia mais cruel durante a Ditadura Militar. Eu estava então impedido de entrar nas áreas indígenas do país, devido à minhas críticas à política indigenista do Regime Militar. Por isso moramos, inicialmente, na cidade de Itacoatiara. Dali fomos pesquisando a situação do povo em volta da área dos Kiña: tanto no Amazonas, como em Roraima e tomando contatos clandestinos com aldeias Kiña. Após 4 anos de peregrinação no entorno, em 1984, viemos morar na BR-174, próximo à reserva Waimiri-Atroari. As andanças entorno da área, aproveitamos para animar a organização dos agricultores familiares, outro segmento marginalizado.

“Tribunal Russell julgará violências contra os indígenas”. (Folha de São Paulo, 12-10-80).

Finalmente, em 1985, após 20 anos de arbitrariedades veio o fim da Ditadura Militar e se anunciava um Governo novo para o país. Vivemos este momento de euforia. A ilusão de um novo tempo, tambem para os povos indígenas. Neste clima fomos convidados pelo 1º. Presidente da FUNAI da Nova República, a integrar um Grupo de Trabalho-GT para rever a política indigenista do órgão, junto ao povo Kiña. O GT era integrado por índios Kiña, funcionários da FUNAI, professores de Universidade, antropólogos, advogados. Tudo indicativo de um novo tempo para este povo sofrido. Na reunião conclusiva do GT.na Aldeia Yawara/RR. fomos convidados pelos membros do GT para iniciar a 1ª. experiencia de alfabetização do povo Kiña. Assumimos a tarefa com autorização formal da FUNAI. Iniciamos o processo ali, na aldeia Yawará, cheios de alegria, vendo o entusiasmo dos Kiña em organizar o alfabeto e partir para os primeiros escritos na língua materna. Mas bastou iniciarem a revelação de sua História recente, o sofrimento que passaram durante a Ditadura Militar, com a passagem da BR-174 pelo seu território que o velho regime voltou a reinar. Os filhotes da Ditadura voltaram a dominar o órgão de cima a baixo. E nós, como os demais membros do GT, fomos retirados da área e proibidos até hoje, de entrar na área Waimiri-Atroari, como nos anos da Ditadura. E, como lá, o povo Kiña voltou a ser excluso da sociedade nacional, com rigidez igual e pressionado por governo e mídia burguesa, a cederam à ganância das empresas invasoras. Com o agravante de que à revelia da Lei, a política dos Kiña ficar sob o comando da empresa Eletrobrás e não mais da FUNAI.

“Roubo descarado dos minérios regionais pelas multinacionais” (A Notícia/Manaus. 14-05-87).

Retirados da área indígena, passamos a viver na beira desta BR-174, integrando nossas vidas a dos agricultores familiares, segmento igualmente discriminado e estigmatizado. Aqui ficamos logo referência quando a injustiça pesava sobre alguém no município. E os casos foram se sucedendo, durante todo o tempo que aqui moramos  Uns mais graves, outros menos.

“Indio, estranha branco cavando as suas terras.” Tribuna da Imprensa/RJ. 18-02-82

Pelas 11:00 hs. da manhã do dia 2 de junho de 2011 fui procurado por dois agricultores da comunidade Terra Santa, do Km 152 da BR-174. Vinham desesperados, com liminar de despejo do Dr. Roger de Almeida, Juiz da comarca de Rio Preto da Eva, localizada a 236 km. Ninguém conhecia o Dr. Roger. Jamais visitara a comunidade e nem eu, morador da sede municipal, o conhecia. O despejo estava marcado para o dia seguinte. Ocorreu-me entao ligar para a Ouvidoria Agrária Nacional-OAN, onde, por sorte, consegui falar logo com o Ouvidor, Desembargador Dr. Gercino que me solicitou cópia da Liminar. Digitalizamos o documento e o enviamos. Na mesma hora, o Ouvidor mandou suspender a liminar e marcou uma reunião para a sede de Pres. Figueiredo que ele próprio veio coordenar. Ali a injustiça saltou aos olhos de todos, menos ao juiz, ao madeireiro, autor do processo e ao seu advogado. Meio ano após, o juiz revalidou a liminar, para ser executada com igual intempestividade. Desta vez, a comunidade recorreu ao vereador Miguel Leopoldo do PT que veio pedir para acompanhá-lo e convencer o Juiz a afastar de vez a liminar. Mas este, irredutível apelava para os autos do processo, onde não constava a defesa da comunidade, porque sumira no Forum local. Diante da teimosa recusa em suspender a liminar, alertei o juiz que para além dos autos do acusador, existia uma lei maior: a consciência. Que no futuro os seus filhos e netos lhe cobrariam a injustiça que cometia contra uma comunidade indefesa. Sem argumento, o juiz jogou a sua toga preta sobre os ombros, me agarrou pelo braço esquerdo e me levou para fora da sala. Não tendo mais outra saída para defender os direitos da comunidade atingida, recorri a opinião pública, divulgando uma nota de protesto sobre o ocorrido. O juiz sentindo-se atingido me processou. Como não compareceu, sem justificativa, à audiência de conciliação, o processo foi encerrado. Na ocasião, 21 entidades de sociedade civil, difundiram uma nota de solidariedade a mim. O Dr. Roger atribuiu este “crime” a mim e ne processou novamente, processo que corre pelos tribunais do Judiciário até hoje.

Em 2014, um mês antes de completar 79 anos de idade, fui procurado para acompanhar um “batalhão” de 13 índios Yanomami, munidos de arco e flexa e 3 espingardas velhas, para uma arriscada ação de destruição de dois garimpos invasores do Parque Yanomami, no Rio Couto de Magalhães, próximo à Venezuela. Dois dias de barco e duas horas a pé pela floresta. Só tive forças para carregar umas cartelas de ovos, espólio da destruição dos garimpos.

Mas por que a presença de um velho teria representado para os Yanomami, maior apoio do que as Forças Armadas, com todo o aparato bélico que ostentam em seus desfiles? Não seria porque a ‘Justiça’ do Estado está em colapso? O conceito de justiça para quem ocupa Palácios e Forums de Justiça, é diferente do de quem sofre a injustiça e de quem enxerga e se envolve com os injustiçados. No 1º. caso, parece, que estamos diante de uma ‘justiça’ estruturada sobre processos que envolvem interesses pecuniários, o domínio de propriedades… e do outro, a luta pela vida.

A prisão de Lula foi emblemática. Durante 8 anos, tentou governar aliviando a dor dos “mansos”., exercendo a “Ditadura do Proletariado”. Foi preso. A ‘Justiça’ ainda não apresentou o motivo de sua prisão: Com certeza não foi o triplex do Marujá, nem o Sítio do Atibaia, nem o apartamento no ABC e nem o Instituto Lula. Ele fez algo que é proibido para pobre. Ousou ser Presidente da República. Olhou para a injustiça. As suas tímidas providencias de democracia para os injustiçados, já foi demais…

Os 3 poderes que nos governam hoje continuam o que os portugueses impuseram quando invadiram esta terra: Índios, negros, peões e agricultores familiares, são gente boa, enquanto servem a elite do ‘outro mundo’. E esta gente do interior que ousa se levantar contra a injustiça é “jeca tatu criminoso”, “terrorista”, “comunista”, para os centro-urbanoides. O que lhes cabe é “plantar batatas”. E ai de quem deles ousa se intrometer na política, ou de quem ouse falar em Justiça para esta gente!

Observe-se atentamente uma reunião das cortes de ‘justiça’ dos Municípios, dos Estados, até o Supremo Tribunal Federal: Tem alguém preocupado em mudar de lugar para ver uma pessoa de carne e osso sofrendo injustiça? A Justiça se fundamenta em ações humanas que levam à partilha equitativa dos bens da terra que pertencem a todos igualmente. Como os cristãos nos primeiros 300 anos, os índios, sempre foram tratados como “pagãos”, ignorantes. Foram desapropriados porque seu bem maior a terra, era comunitário. E continuam sendo mortos e desapropriados hoje pelo mesmo motivo, só que com armas modernas mais potentes e ainda mais agressivas.

Os 3 poderes dizem apenas: ‘E daí?’, como a monarquia portuguesa em 1500. O Judiciário é desde sua origem uma essência intocável pela democracia. Julga e manipula os poderes como bem entende. Nada a ver com a Justiça que sempre regeram os povos nesta terra: reciprocidade, solidariedade, fraternidade, o bem-estar, o bem-viver para todos igualmente  A ‘Justiça’ do Judiciário é conscientemente cega.

Pela lei congênita, inscrita em todos os corações, chamem-na de bom senso, de consciência ou senso comum, todos os juízes conhecem e sabem que a justiça não é cega. A coisa mais fundamental da Justiça são os seus olhos. São eles que iluminam as injustiças que acontecem país afora e sobretudo iluminam os valores que a injustiça tenta soterrar. Os olhos e os ouvidos são a luz da pessoa e dos povos que fazem enxergar a injustiça e os valores que a afastarão definitivamente. Hoje o Judiciário é centro-urbano. E isto é querer que a injustiça campeie livre mundo afora. Lugar de quem é pago para tornar a Justiça real, verdadeira é a aldeia, é a favela, são o interior, as pequenas comunidades, lá onde correm silenciosas lágrimas, ou se ouvem gritos por Justiça. Objeto da Justiça são as populações pobres e excluídas: indígenas, favelados, moradores de rua, seringueiros, agricultores familiares…esta gente que não existe quando os agentes da Justiça não se valem de seus olhos e ouvidos para enxergar e ouvir. Os olhos e os ouvidos conduzem à superação da injustiça e põe em perigo a riqueza dos ricos. É o que aprendi nos meus 58 anos de vida indigensita. Enquanto o Judiciário brasileiro não utilizar os seus olhos e ouvidos para enxergar a injustiça, continuará condenando os que sofrem e os que a olham de frente.

As pessoas humildes e pobres, mesmo permanecendo em seu lugar, sem remuneração do Estado, tem trazido mais justiça ao país, do que os batalhões das Forças Armadas e os milhares de funcionários do Judiciário.

Recentemente me encontrei com o Muxi Rikbaktsa, um daqueles ex-alunos do Ginásio de Diamantino/MT. Foi na beira do rio Coxipó, periferia de Cuiabá. Isto após  5 décadas não mais nos termos visto. Muxi se arrastava sobre uma bengala, fruto de uma picada de cobra, sofrida no fundo da floresta, onde não pode ser atendido em tempo. Mas o seu rosto irradiava a satisfação de uma vida realizada. Fez memória de alguns lances de sua vida que ampliaram o espaço dos povos Rikbaktsa, Myky, Enauenê Nauê… E me senti feliz em poder compartilhar semelhantes experiencias vividas, ao longo desses anos, tendo seguido a mesma via, Brasil afora..

Com Gilmar tambem mantive uma comunicação sincera: anuências e discordâncias. Quando criamos o MAREWA-Movimento de Apoio à Resistência Waimiri-Atroari, em 1983, Gilmar já trabalhava no STF de onde enviou seu apoio. E numa palestra que proferi em 89 na Universidade de Münster/Alemanha, ele estava lá. Jantamos no pequeno apartamento que ocupava. De volta do seu doutorado, Gilmar me convidou para conhecer as dependências do STF. Na ocasião lhe apresentei os advogados do CIMI, a quem prometeu apoio. Mas na medida em que foi crescendo no poder, foi-se escondendo nos palácios da Justiça. As discordâncias aumentaram ao ponto de lhe escrever uma carta aberta, manifestando as minhas preocupações.

Mas, outro dia vi o Gilmar na TV, ligando para Lula, preso em Curitiba, quando este foi impedido pelo Judiciário de ir ao velório do neto Arthur. E vi o querido Gilmar chorar. Ele viu a injustiça. É um passo rumo à Justiça pela qual o povo brasileiro clama. Siga em frente, Gilmar. Visite agora as prisões, as favelas, os sem-terra e sem teto… Olhe a injustiça de frente. Caminho simples, visível para voltar a ser feliz. Vai colher os frutos da justiça. Feliz como, te vi, ali em Diamantino ao longo da linha telegráfica de Rondon com teus parentes e amigos, colhendo mel das abelhas nativas, piqui, cajuzinho, jabuticaba e mangaba no cerrado. Feliz como o bando de meninos do Lar do Menor, entre os quais Muxi, Matenho e Kutap, com os quais ia rumo à pescaria nas cabeceiras do Rio Paraguai,

Alto Purus, Acre, 29 de abril de 1976. A aldeia Fronteira dos índios Kaxinawá, nos recebeu com alvoroço. Mas uma criancinha, aproximadamente um ano e meio, tranquila no colo da mãe. Uma frutinha vermelha em cada mão. Toda enlambuzada, chupava a da esquerda. E a da direita ofereceu ao visitante.

Tudo claro, simples, evidente. Uma ciência congênita, embutida no dia da concepção, no coração de todo o ser humano. Por isso, Jesus reza com humor e com certa dose de ironia: “Obrigado Pai, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos”.(MT. 11.25).

Casa da Cultura do Urubuí, 1º. de março de 2021,

(*) Egydio Schwade é filósofo, teólogo, indigenista e ativista social brasileiro. 


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

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