Marighella seria um “contra-exemplo”?

Por Valter Pomar (*)

O professor Luis Felipe Miguel publicou há alguns dias, na sua conta do facebook, um comentário sobre Marighella (ver abaixo, na íntegra) que merece ser lido.

LFM diz ter “admiração por Marighella – o homem, evidentemente, não o filme”.

O que LFM admira em Marighella é “sua coragem, por sua integridade pessoal, por seu espírito de sacrifício e sua dedicação à causa em que acreditava”.

Mas LFM também afirma que “sua estratégia de enfrentamento à ditadura nunca foi mais do que um enorme e trágico equívoco. Entre todos que optaram pela luta armada, Marighella foi talvez o que expressou com maior nitidez uma visão totalmente marcada pelo voluntarismo e por um vanguardismo militarista”.

 Em seguida LFM detona o “Minimanual do guerrilheiro urbano” e termina afirmando que “para transformar o mundo, nos anos 1960 tanto quanto hoje, é preciso, ao contrário, ver a realidade sem alimentar ilusões. Para isto, Marighella é, na verdade, um contra-exemplo”.

 Penso diferente. Não acho que Marighella seja um “exemplo”, mas tampouco concordo que ele seja um “contra-exemplo”.

 Não acho que seja “exemplo”, em primeiro lugar porque não acredito em “modelos”, em segundo lugar porque as condições históricas são diferentes, em terceiro lugar porque Marighella não pode ser medido por seus últimos 5 anos de vida e, finalmente, porque sua linha política e organizativa não teve êxito.

 Mas não concordo que Marighella seja um “contra-exemplo”. Não apenas pelas razões indicadas por LFM, quando explica porque admira a pessoa de Marighella, mas também por dois outros motivos.

 O primeiro motivo é: Marighella fez parte da direção do Partido Comunista por muitos anos, creio que desde 1945 até 1967. Nesse período, defendeu as diferentes linhas adotadas pelo PC, inclusive a moderadíssima linha da Declaração de Março de 1958, que está na base das ilusões que desarmaram o PC frente ao golpe de 1964. Depois do golpe, o PC se dividiu entre os que radicalizaram na linha derrotada e os que propunham mudar de linha. Marighella esteve neste segundo grupo. Ele pode ter errado na estratégia adotada, mas devemos valorizar a postura: frente a uma derrota estratégica, é preciso mudar de estratégia. Esta postura ajudaria a esquerda brasileira a enfrentar os problemas atuais.

 (Antes que alguém pergunte: a mudança de estratégia que defendo, no caso do PT, é retomar a linha do 5º Encontro Nacional de 1987, nos termos que começaram a ser estabelecidos pelas resoluções do 6º Congresso Nacional de 2017.)

 O segundo motivo é: a esquerda brasileira foi derrotada em 1964 e derrotada com pouquíssimo combate. A resistência que se seguiu – parte dela através da luta armada – foi travada em péssimas condições. Houve muitos erros e muitas ilusões. Entretanto, apesar da derrota, a luta armada foi moralmente legítima e deu sua dose de contribuição (mesmo que pequena) para a futura derrota da ditadura. Além disso, num país em que a elite estimula a passividade e o conformismo, qualquer forma de resistência é melhor do que o quietismo. É também por isso que a figura de Marighella gera tanta simpatia e respeito, não apenas pessoal, mas político.

 Nestes tempos de pragmatismo eleitoral, faz bem lembrar que não se acumula forças jogando parado, não se acumula forças apenas em partidas fáceis, não se acumula forças apenas nas vitórias. Lembrar, também, que para quem está do lado certo, as derrotas não são definitivas.

 LFM faz críticas procedentes ao voluntarismo, ao vanguardismo e ao militarismo. Mas não se pode reduzir toda e qualquer estratégia de luta armada ao vanguardismo militarista. E, apesar de todos os erros, me parece forçar a barra dizer que foi tudo “um enorme e trágico equívoco”. Não custa lembrar que durante os anos 1960 e 1970 dezenas de milhares de pessoas, em dezenas de países, especialmente nas Américas, África e Ásia, adotaram alguma modalidade de luta armada. Isto é mais que um “equívoco”.

 Aqui vale a pena salientar o seguinte: eu iniciei minha militância no PCdoB, mais exatamente num setor do PCdoB que fazia uma crítica à estratégia adotada na Guerrilha do Araguaia. Ou seja: não estou entre os defensores da estratégia adotada naquela época, mas há diferentes maneiras de fazer a crítica das diferentes opções feitas então.

 Isto posto, talvez minha principal diferença com LFM esteja aqui: “para transformar o mundo (…)é preciso (…) ver a realidade sem alimentar ilusões”.

 Certamente, para interpretar o mundo é preciso fazer uma análise realista da situação tal qual ela é. Formular política com base em ilusões – do tipo acreditar que o imperialismo, a burguesia e a direita têm algum compromisso com a democracia – é a receita certa para a derrota.

 Mas nosso realismo na análise não busca apenas constatar como “as coisas são”, busca também caminhos para mudar as coisas. Ou seja, nossa análise busca localizar as contradições existentes na realidade e as possibilidades de mudanças abertas por estas contradições. E aí está o nó: analisando de maneira “realista”, as nossas possibilidades de êxito são tanto maiores quanto menores forem as mudanças que pretendemos fazer.

 Por isso os que desejam fazer mudanças profundas, os que são revolucionários, precisam de uma “vontade” que seja “otimista” (para citar o sardo). Mas de onde os revolucionários extraem o seu otimismo, se a razão precisa ser “pessimista” (ou seja, realista, entender as coisas como elas são)?

 Os religiosos resolvem este problema do jeito conhecido. Mas e os materialistas, os adeptos do “socialismo científico”? Como manter a coerência entre o “pessimismo da razão” e o “otimismo da vontade”, sem ter que apelar para uma variável externa (como um Deus) ou para o acaso?

 Do ponto de vista teórico, a solução está na dialética das contradições. Mas resolver o problema do ponto de vista teórico não o torna mais fácil de resolver do ponto de vista político: afinal, a vida vem confirmando que as chances de derrotar e superar o capitalismo são historicamente pequenas, as revoluções vitoriosas são fenômenos raros, a inércia histórica favorece a classe dominante.

 É por isto que – do ponto de vista político – não devemos menosprezar o papel da “ilusão” na história. Não considero realista transformar profundamente o mundo sem alguma dose de “ilusão”. Sem sacrifícios que parecem impossíveis de suportar, sem sonhos generosos que parecem utópicos, sem metas aparentemente inalcançáveis, sem objetivos aparentemente impossíveis, as grandes mudanças não aconteceriam. Aliás, as revoluções também servem para “esticar os limites” do possível; depois que passa o auge de uma revolução, muita coisa retrocede, mas o saldo geral é um progresso histórico, transformando em realidade uma das possibilidades contidas na realidade.

 Sem base real, os sonhos não se convertem em realidade. Sem um pouco de sonho, a realidade não se transformará radicalmente. Neste sentido, “para transformar o mundo é preciso ver a realidade tal como ela é, mas também é preciso “alimentar (um pouco de) ilusões”. Menos, é claro, as ilusões nos inimigos. Em favor destes, nenhuma ilusão é possível nem é perdoável.

Por último, mas não menos importante: o filme de Wagner Moura tem mil defeitos. Mas também tem qualidades. Entre as quais ter provocado a fúria do lado de lá. E estar provocando rebuliços do lado de cá. O que já está de ótimo tamanho.

(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT

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https://www.facebook.com/luisfelipemiguel.unb

Tenho admiração por Marighella – o homem, evidentemente, não o filme.

Por sua coragem, por sua integridade pessoal, por seu espírito de sacrifício e sua dedicação à causa em que acreditava.

Mas é necessário ter clareza, também, de que sua estratégia de enfrentamento à ditadura nunca foi mais do que um enorme e trágico equívoco.

Entre todos que optaram pela luta armada, Marighella foi talvez o que expressou com maior nitidez uma visão totalmente marcada pelo voluntarismo e por um vanguardismo militarista.

A divisa que resume sua estratégia é reveladora: “transformar a situação política em situação militar”.

A leitura de seu “Minimanual do guerrilheiro urbano” chega a ser embaraçosa. Parece que somos jogados num mundo de fantasia.

Marighella descreve com minúcias os talentos e competências que o guerrilheiro deve necessariamente ter. É o retrato de um herói da Marvel – ou, talvez, de um 007 comunista.

Vai de “nunca deixar pistas ou traços” a ser “resistente à fadiga, fome, chuva e calor”. De “conquistar a arte de ter paciência ilimitada” a ser perito em “sobrevivência na selva, escalar montanhas, remar, nadar, mergulhar, pescar, caçar pássaros, e animais grandes e pequenos”. De “manter-se calmo e tranquilo nas piores condições e circunstâncias” a saber “dirigir, pilotar um avião, manejar um pequeno bote, entender mecânica, rádio, telefone, eletricidade, e ter algum conhecimento das técnicas eletrônicas”.

E também “ter conhecimentos de informação topográfica, poder localizar a posição através de instrumentos ou outros recursos disponíveis, calcular distâncias, fazer mapas e planos, desenhar escalas, calcular tempos, trabalhar com escalonamentos, compasso, etc.”

E mais “um conhecimento de química e da combinação de cores, a confecção de selos, o domínio da arte da caligrafia e de copiar letras”.

Sem esquecer de que precisa “ser doutor ou entender de medicina, enfermaria, farmacologia, drogas, cirurgia elementar, e primeiros socorros de emergência”.

Embora, claro, “a questão básica na preparação técnica do guerrilheiro urbano é o manejo de armas, tais como a metralhadora, o revólver automático, FAL, vários tipos de escopetas, carabinas, morteiros, bazucas etc.” Incluindo “conhecimento de vários tipos de munições e explosivos”. E vai por aí afora.

Um mundo de faz-de-conta. Mas, para transformar o mundo, nos anos 1960 tanto quanto hoje, é preciso, ao contrário, ver a realidade sem alimentar ilusões.

Para isto, Marighella é, na verdade, um contra-exemplo.

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