Mathias Alencastro e o efeito alucinógeno do chuchu

Por Valter Pomar (*)

Não há nada mais classe média paulistana do que um jantar no Rubaiyat. E se for uma confraternização natalina reunindo petistas e tucanos, aí trata-se de uma epifania: de um lado parte das vítimas do golpe de 2016, de outro lado parte dos golpistas, todos juntos celebrando a chegada do Natal.

O preço do convescote pode ser salgado, assim como pode ser desagradável a sensação de “já vimos esta história e sabemos como termina”. Mas de que servem os alertas de Cassandra, quando se está sob efeito do maior alucinógeno de todos os tempos, o chuchu?

Um dos muitos exemplos do poder psicodélico do chuchu está em artigo publicado no dia 19 de dezembro pela Folha de S. Paulo e assinado por Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e professor da UFABC.

O artigo intitula-se “Chapa Lula-Alckmin seria uma revolução republicana” e discute a “longa travessia experimentalista” da esquerda depois da crise de 2008.

O artigo começa no lugar correto: a crise mundial de 2008. Mas Alencastro despacha rapidamente o tema, com as palavras: “a crise financeira de 2008, que marcou o fim da experiência da terceira via iniciada por Tony Blair”.

Acontece que não foi apenas uma crise “financeira” e não marcou apenas o “fim da experiência da terceira via”: tratou-se de uma manifestação aguda de uma crise ainda não superada do capitalismo e um ponto de virada nas relações entre EUA e China, abrindo um período de turbulências com desfechos muito incertos.

No fundo, todas as divergências existentes no interior da esquerda remetem para este ponto: como caracterizar a crise de 2008 e seus possíveis desdobramentos.

Como nos anos 1930 e 1970, a classe dominante enfrenta a crise radicalizando: um dos sintomas disso é a “ascensão dos movimentos de extrema-direita”.

Mas o outro efeito, muito mais importante, é a ofensiva geral do capital sobre o trabalho. Aliás, a ofensiva da extrema-direita tem este efeito prático: facilitar o crescimento da exploração, em todas as suas formas.

E a esquerda, como reagiu a 2008?

Segundo Alencastro, a crise “marcou o fim da experiência da terceira via iniciada por Tony Blair nos anos 1990”.

Confesso que não dou tanta importância ao poodle dos ianques, mas acho prematuro anunciar a sua morte.

Infelizmente a chamada terceira via seguiu viva depois de 2008 e uma prova disto é a posição do próprio Alencastro, segundo o qual a “esquerda global” teria entrado “numa longa travessia experimentalista” (melhor seria falar em chuchu bad trip).

Advertência aos incautos: “global” neste caso não começa por África, Ásia e América Latina.

O ponto de partida da análise são exemplos 100% europeus, baseados em diferentes cepas da tradição social-democrata: de um lado a “esquerda de ruptura” de Jean-Luc Mélenchon, Jeremy Corbyn, Pablo Iglesias (não sei por qual motivo não aparece na lista o grego Tsípras); de outro lado a “esquerda de coalizão”.

A Europa não dirige o mundo faz tempo, mas continua obnubilando certas análises.

Deixo para outra hora um comentário sobre as “teses de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe”, que Alencastro corretamente indica como fonte de inspiração de muitos descaminhos.

Mas chamo a atenção para o seguinte: alguns “populistas” até podiam prometer “enterrar o modelo social-democrata dominante na Europa desde os anos 1960”, mas a rigor nunca passaram – teoricamente, programaticamente, estrategicamente – da condição de ala esquerda desta mesma socialdemocracia, devidamente aprisionada na jaula de aço da União Europeia.

Os dilemas desta “esquerda de ruptura” me fazem pensar no ocorrido, nos anos 1930, com os austromarxistas e a frente popular francesa.

Voltemos a Alencastro.

Seu texto faz a defesa da “esquerda de coalizão”, cujas premissas seriam a “afirmação dos valores tradicionais da social-democracia e particularmente do poder transformador do Estado social”; e que os “partidos do mesmo campo ideológico devem trabalhar juntos para manter suas maiorias eleitorais”.

Deixo anotado o seguinte: há uma enorme distância entre Europa e América Latina, quando se fala dos “valores tradicionais da social-democracia” e o “poder transformador do Estado social”.

Alencastro cita como exemplos exitosos da “esquerda de coalizão”, o sucesso da “geringonça” em Portugal, o atual governo espanhol e o recém iniciado governo do chanceler Olaf Scholz.

A inclusão do caso alemão, recém iniciado, mostra como o parâmetro fundamental para Alencastro é o resultado eleitoral; o preço programático da “coalizão” entre um pedaço da esquerda e um pedaço dos neoliberais não comparece na análise.

Aí chegamos no ponto chave: segundo Alencastro, “toda essa história foi acompanhada de perto pelos líderes da esquerda nas Américas. Bernie Sanders construiu o seu movimento a partir de 2008 seguindo a linha experimentalista da esquerda de Mélenchon e Corbyn, a quem ele é sempre comparado. No caso do Brasil e do Partido dos Trabalhadores, o contexto de agravamento da crise democrática e dos sucessos eleitorais de Corbyn e Mélenchon, uma ala do partido assumiu abertamente a sua preferência pela esquerda de ruptura”.

É verdade que a esquerda estadounidense e latino-americana acompanham o que ocorre no mundo todo (Ásia inclusive).

Também é verdade que há setores da esquerda brasileira que confundem o Tietê com o Sena.

Mas é um exagero atribuir as opções feitas pelo “movimento” de Sanders ou pelo conjunto da esquerda petista à influência europeia.

Isto posto, concordo parcialmente com Alencastro no seguinte: “o processo de designação de Fernando Haddad a candidato a presidente nesse mesmo ano foi a primeira etapa da disputa entre as duas visões do futuro da esquerda”.

E concordo, também parcialmente, que “ela culmina no debate sobre a federação com o PSB e a escolha de Geraldo Alckmin para compor a chapa presidencial em 2022”.

Concordo parcialmente por três motivos.

Primeiro, porque aqui não é a Europa. Segundo, porque o jogo não está jogado. Terceiro, porque a “esquerda de coalizão” não é algo novo: trata-se da versão 2022 da terceira via de Tony Blair.

Aliás, mesmo que não tenha sido esta a intenção dos que defenderam seu nome como candidato em 2018, e mesmo que não seja esta a sua vontade pessoal, o companheiro Fernando Haddad é visto por setores da “classe média de esquerda” (base social de setores do PT e do PSDB, entre outros menos cotados) como uma espécie de Tony Blair, ou seja, o cidadão que poderia capitanear o surgimento do “New PT”, como Blair operou o surgimento do New Labour.

Não admira, portanto, que Haddad esteja (ou ache estar, ou se acredita esteja, pois a verdadeira história ainda está para ser contada) no centro da operação chuchu.

Sobre esta operação, Alencastro diz o seguinte: “Ao abrir a negociação com Alckmin e buscar a aliança com o PSB, Lula aposta no modelo da esquerda de coalizão que derrotou a direita e a extrema-direita. A decisão é traumática porque ela obriga o PT a abdicar do seu destino hegemônico, mas a experiência europeia dita que o processo de federação com o PSB e o PC do B é tão importante como o acordo individual com Alckmin”.

Parece bonito: sacrificamos o PT mas salvamos o Brasil.

Infelizmente, se a operação chuchu der certo, o sacrifício não será do PT, mas sim da presente e atual oportunidade de transformar profundamente o Brasil num sentido favorável à maioria do povo.

E é nesse ponto que a diferença entre Europa e América Latina ganha toda importância.

Na Europa, região de potências imperialistas, já se demonstrou ser possível um certo tipo de “pacto social”, que permitisse aos trabalhadores melhorar de vida e aos capitalistas lucrar como nunca. No passado europeu, este pacto foi viabilizado em boa medida pelo imperialismo, sem o qual as contas não fechariam direito. Agora está mais difícil fazer o mesmo, devido as mudanças no capitalismo e na geopolítica mundial.

Na América Latina, entretanto, todas as tentativas de fazer pacto semelhante tiveram curta duração e terminaram em ciclos de ditadura, golpe, repressão, retrocesso. O motivo é simples: as classes dominantes locais, tadinhas, não dispõem do imperialismo para fechar suas contas. Portanto, precisam explorar “em dobro” a classe trabalhadora local, pois só explorando em dobro podem beneficiar a si mesmas e, também, às classes dominantes das potências centrais.

É por isso que houve o golpe contra o governo Dilma, é por isso que Lula foi preso, é por isso que se perseguiu o PT. A classe dominante brasileira e seus representantes políticos não aceitam nem mesmo a “afirmação dos valores tradicionais da social-democracia e particularmente do poder transformador do Estado social”.

Por isso é fácil defender a “esquerda de coalizão” no Rubaiyat, mas é tão difícil levar a democracia para a periferia, por isso é tão difícil incluir o povo no programa (para citar o Douglas Martins). Aliás, a eleição recém-encerrada do Chile mostrou como a política em nossa região não cabe no modelo “esquerda de coalizão versus esquerda de ruptura”.

Aceitar Alckmin na vice e fazer uma federação não vão alterar o comportamento da classe dominante. Mas chuchu & federação certamente vão contribuir para neutralizar um futuro governo Lula e, muito mais grave, podem neutralizar o papel do PT.

Alencastro, pelo contrário, pensa que “a composição desenhada por Lula é uma revolução republicana, porque ela impulsiona a reconstrução do sistema partidário e assegura o regresso dos democratas ao poder. Do ponto de vista global, uma eventual “geringonça brasileira” marcaria a vitória definitiva da esquerda de coalizão sobre a esquerda de ruptura”.

“Eventual”: esta palavra define o estado da arte. Neste sentido, não é verdade que tal “eventual” aliança “assegura o regresso dos democratas ao poder”. A vitória de Lula não está garantida, mas nem de longe depende de ter na vice Alckmin, que está muito distante de ser um “democrata”, por mais generosos que sejamos no emprego deste termo.

Vale lembrar, como fez recentemente a companheira Jandyra Uehara em fala na qual me baseei para escrever o seguinte: os tucanos governam São Paulo desde 1995 até hoje. Nestes praticamente 28 anos, Alckmin foi vice-governador por aproximadamente 6 anos (1995-2000) e governador por aproximadamente 12 anos (2001-2006, 2011-2018). Portanto, falar de governos tucanos em São Paulo é falar do picolé de chuchu. Ainda como vice de Covas, Alckmin coordenou o Programa Estadual de Desestatização, contribuindo para o apagão elétrico no governo FHC. Também contribuiu para o sucateamento dos serviços públicos, para o crescimento do déficit habitacional, para o crescimento do número de mortos pela PM, para o crescimento do crime organizado, para a repressão violenta contra os movimentos sociais, para o arrocho do funcionalismo, para a degradação da educação e da saúde públicas. Alías, o que salvou São Paulo do caos na área da saúde sob o governo Alckmin foram os recursos federais do Governo Lula. Seu desempenho a frente do governo de São Paulo o levou a ser candidato preferido da classe dominante à presidência da República em 2006 e em 2018. No primeiro caso, conseguiu o feito inédito de piorar seu desempenho no segundo turno. No segundo caso, ficou na quarta posição, com 5% dos votos.

Alckmin apoiou o golpe de 2016, aplaudiu a condenação, prisão e interdição eleitoral de Lula, atacou o PT e Haddad como responsáveis por crimes diversos. Depois da derrota em 2018, perdeu espaço e se viu forçado a sair do PSDB, mas o PSDB não saiu dele. E como o picolé de chuchu pode ser tudo, menos idiota, está aproveitando gostosamente o tratamento VIP que tem recebido de certa esquerda. Hoje, está ganhando de presente a possibilidade de decidir: pode vir a ser vice, pode vir a ser candidato a governador, pode cobrar do PT uma mudança na tática eleitoral em São Paulo. Pode até, se tudo der “certo”, virar peça central da operação da direita contra um futuro governo Lula. Pode muita coisa, menos se converter em aliado confiável da esquerda.

Alckmin não é um democrata e uma aliança com ele só constitui uma “revolução republicana” para quem está sob efeito dos poderes do chuchu. Ou para quem, perfeitamente sóbrio, defende desde sempre “virar a página do golpe”.

(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT

 

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