Por Valter Pomar (*)
A revista Focus, publicação semanal sob responsabilidade da Fundação Perseu Abramo, produzida pela Oficina da Notícia e editada por Olímpio Cruz Neto, publicou um artigo assinado por Marcelo Zero e Aloizio Mercadante onde ambos analisam o Plano Biden.
O artigo intitula-se “É preciso enterrar o neoliberalismo” e começa assim: “A História não necessariamente precisa repetir-se como tragédia ou farsa. Em algumas circunstâncias, ela pode repetir-se como êxito. É o caso, por exemplo, dos pacotes de estímulos que Joe Biden pretende implantar nos Estados Unidos”.
Nestas frases, está resumida parte importante da polêmica acerca do Plano Biden e de seus efeitos sobre o mundo e sobre o Brasil. A saber: se o Plano Biden tiver “êxito”, entendendo por êxito chegar onde seus defensores querem chegar, o resultado será fortalecer os Estados Unidos na sua luta pela hegemonia mundial. Mercadante e Zero sabem disto muito bem. Sendo assim, acho que exageram e ademais são unilaterais nos elogios que fazem ao Plano.
Penso que há um duplo motivo para esta atitude: por um lado, no que têm razão, Mercadante e Zero acham que a existência do Plano pode ajudar em nossa luta política e ideológica contra o austericídio promovido pelos neoliberais brasileiros. Por outro lado, no fundo ambos cometem – em minha opinião – o equívoco de achar que aquilo que é bom para os Estados Unidos, também seria bom para o Brasil.
O equívoco tem um ponto de partida: a analogia entre Biden e Franklin Delano Roosevelt, entre o Plano Biden e o New Deal. Segundo Zero e Mercadante, “trata-se do mais ambicioso plano econômico desde o New Deal de Franklin Delano Roosevelt”, um “projeto de grande alcance, que se espraia por todas as áreas relevantes, tanto econômicas quanto sociais”.
Que há uma analogia entre o New Deal e o Plano Biden, ninguém duvida e Biden faz questão de ressaltar. Acontece que há um aspecto da analogia que Mercadante e Zero não destacam. Não foi o New Deal, mas o esforço de guerra, que tirou os Estados Unidos da condição de país em crise para a condição de potência mundial. Por analogia, não serão as políticas divulgadas pelo Plano Biden que vão reconstruir a hegemonia mundial dos Estados Unidos, fazer o país “voltar a liderar”, como Biden, Obama et caterva gostam de dizer. Se isto acontecer será, como antes e aliás como de costume em se falando dos EUA, através da guerra. Não por acaso, Biden ressuscitou em seu recente discurso a expressão “arsenal da democracia”.
Também por isso, não é possível separar a política externa da política interna, falar das partes supostamente boas do Plano Biden e não falar do conjunto da obra.
Repito que Zero e Mercadante sabem disso, mas simplesmente não tiram as consequências do que eles mesmo escrevem.
Vejamos o que eles escrevem: “o Plano Biden, assim como o New Deal de Roosevelt, visa socorrer o capitalismo norte-americano em crise (…) criar as condições para os EUA se reposicionarem na disputa geoestratégica marcada pela consistente e acelerada ascensão da China (….) em política externa, a administração Biden permanece muito conservadora (…) seu principal objetivo geopolítico é o de tentar reafirmar a ameaçada hegemonia dos EUA, num cenário mundial crescentemente conflitivo e incerto. Em relação especificamente ao Brasil é à América Latina, a diretriz de Biden será a de manter a região como zona de influência exclusiva dos EUA, em linha com a histórica Doutrina Monroe. Isso implicará fragilização do processo de integração regional soberano e o eventual novo uso do lawfare e outros mecanismos contra governos que não se alinhem aos interesses dos EUA na região. Isso, no entanto, não elimina os avanços sociais”.
Ou seja: Mercadante e Zero admitem explicitamente que o Plano Biden faz parte de uma operação geopolítica de guerra. Mas acrescentam ao final, quase candidamente, que “isso, no entanto, não elimina os avanços sociais”.
Pergunto: alguém escreveria uma frase assim acerca do plano econômico adotado pelos nazistas, nos anos 1930? Pois na Alemanha também houve intensa geração de empregos, construção de infraestrutura etc. Claro, já na época muitos sabiam e hoje todos sabemos que o propósito escancarado disto era… a guerra. Já Biden fala que “temos que provar que a democracia ainda funciona”. Mas nós sabemos o que isto quer dizer em “ianquês”.
Minha impressão é que Mercadante e Zero tomaram algumas coisas pelo valor de face. Exemplo: “há no Plano Biden (…) o reconhecimento explícito de que a crise não será superada e os EUA não poderão voltar a ser competitivos, se não reconstituírem sua classe média, distribuírem renda, eliminarem a pobreza, gerarem empregos decentes e sindicalizados, assegurarem direitos trabalhistas e investirem em serviços públicos e no Estado de Bem-Estar”.
Que Biden diga isso, vá lá. Mas é uma imensa ilusão achar que a crise será superada se os EUA reconstruírem internamente o american way of life. A crise será superada se os EUA vencerem a guerra contra a China. Claro que para isso a classe dominante estadounidense precisa reconstruir, ainda que parcialmente, a coesão interna. Mesmo assim, é preciso lembrar que o american way of life foi possível essencialmente graças ao imperialismo, não graças à “políticas sociais”.
Seja como for, Mercadante e Zero parecem realmente impressionados pelas políticas públicas adotadas por Biden. E subestimam um fato que eles mesmos apontam: o plano não “trata do problema central do capitalismo: a financeirização perversa da economia real”.
Mesmo reconhecendo isso, ambos dizem que o que Biden “propõe não é apenas uma pequena reforma. É, para os padrões extremamente conservadores dos EUA das últimas décadas, uma mudança de paradigma. Caso seja exitoso, o plano significará o abandono do neoliberalismo radical e hegemônico desde Ronald Reagan e da austeridade fiscal pró-cíclica”.
As palavras “reforma” e “paradigma” possuem tantos significados quanto fregueses. Mas não consigo entender como é possível falar de “abandono do neoliberalismo radical e hegemônico desde Ronald Reagan”, sem ao menos “tratar” da “financeirização perversa da economia real”.
Noutra passagem do seu texto, Mercadante e Zero falam que estaríamos diante de uma “revisão completa do chamado ‘modelo neoliberal’ impulsionado pelo ‘Consenso de Washington’, com seu Estado mínimo e as políticas pró-cíclicas a ele associadas. Isso para dizer o mínimo”. Pergunto de novo: como é que se pode falar isto de um plano que nem ao menos “trata” da “financeirização perversa”??
Aliás, vamos nos entender: se a financeirização não foi “tratada”, isto quer dizer que no limite os investimentos públicos feitos hoje vão ser capturados amanhã pelo capital financeiro. E como o capital financeiro é o núcleo duro do neoliberalismo e da austeridade, o resultado final tende a ser mais concentração de riqueza. Concentração que internamente pode ser atenuada pela ampliação do excedente imperialista.
Este “detalhe” – a natureza imperialista da economia dos Estados Unidos – coloca em questão a maior parte das analogias que se possa fazer entre o Plano Biden e aquilo que a esquerda defende fazer aqui no Brasil.
Infelizmente, estas diferenças não comparecem no texto de Mercadante e Zero. Pelo contrário, eles chegam a cometer a seguinte frase: “assim como o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil, anunciado pelo PT em setembro do ano passado – e largamente ignorado pela mídia nacional –, o Plano Biden, que causa frisson na imprensa local, tem dimensão emergencial – a da reconstrução – e uma de médio e longo prazo – a da transformação”.
O “assim como” é a famosa forçada de barra. Afinal, os estímulos fiscais do Plano Biden são em dólar, o que garante uma margem de manobra fiscal, uma possibilidade de solução pelo endividamento que o Brasil simplesmente não possui. Deste fato decorre a necessidade de fazer aqui o que o Plano Biden não se propõe a fazer: “tratar” da “financeirização perversa”. Mas “assim como” o Plano Biden, o plano de reconstrução e transformação não “trata” de liquidar a hegemonia do capital financeiro.
Ao final de seu texto, Mercadante e Zero reconhecem que ainda é cedo para dizer “se Biden terá êxito na empreitada”. E num tom mais realista admitem que Biden estaria “apenas se somando a uma crescente opinião majoritária, até mesmo entre parcela dos conservadores, segundo a qual o modelo neoliberal e suas políticas tornaram-se disfuncionais às economias e sociedades”.
Nesse ponto do texto, eles introduzem uma discussão muito interessante: “Há (…) aqueles que acham que o capitalismo, em sua fase atual de acumulação, é intrínseca e inexoravelmente neoliberal. Porém, a análise histórica do capitalismo demonstra, ao contrário, que esse sistema tem bastante flexibilidade e capacidade adaptativa. O New Deal de Roosevelt é prova disso. Afinal, as ‘leis econômicas’ não são naturais. Elas são politicamente disputadas e historicamente construídas. Independentemente do debate de fundo, o fato, cada vez mais evidente, é que o neoliberalismo se esgotou. Ou o capitalismo enterra o falido modelo neoliberal ou esse modelo enterrará politicamente o capitalismo como opção minimante viável para assegurar a sobrevivência da natureza, da humanidade e das democracias. Hoje, temos economias e sociedades em profunda crise. E modelos carcomidos e adoecidos. A solução – a vacina – é a volta da ação
substancial do Estado, com políticas econômicas e sociais robustas e transformadoras. O tratamento é o enterro do neoliberalismo”.
Não há dúvida acerca da “flexibilidade e capacidade adaptativa” do capitalismo. Mas é curioso ler imediatamente antes desta afirmação uma crítica feita contra aqueles que “acham que o capitalismo, em sua fase atual de acumulação, é intrínseca e inexoravelmente neoliberal”. Pergunto: isto não é verdade? A “fase atual de acumulação”, o “paradigma” atual, não é neoliberal? Se não é, é o que então?
Talvez o que Marcelo e Zero tenham querido escrever fosse algo mais ou menos assim: o capitalismo não é intrínseca e inexoravelmente neoliberal. Se for isto, total acordo. Aliás, o capitalismo também não é “intrínseca e inexoravelmente” imperialista. Mas, coisas em si à parte, o fato é que o capitalismo, como efeito da concentração, da centralização e da concorrência, tende “intrínseca e inexoravelmente” à oligopolização, à financeirização, à exportação de capitais e, por isso, tende “intrínseca e inexoravelmente” ao neoliberalismo e ao imperialismo.
Mercadante e Zero dizem, corretamente, que as “as ‘leis econômicas’ (…) são politicamente disputadas e historicamente construídas”. É verdade. Mas em seguida concluem o seguinte: “ou o capitalismo enterra o falido modelo neoliberal ou esse modelo enterrará politicamente o capitalismo como opção minimamente viável para assegurar a sobrevivência da natureza, da humanidade e das democracias”.
Ou seja: segundo o que está escrito, fica parecendo que a “disputa política” e a “construção histórica” estaria limitada ao “capitalismo modelo neoliberal” de um lado e ao “capitalismo não neoliberal” de outro lado. E ainda se afirma, sem meias palavras, que o capitalismo poderia ser uma “opção minimamente viável para assegurar a sobrevivência da natureza, da humanidade e das democracias”.
Noutras palavras: a disputa política e a construção histórica se limitariam à luta pela volta “da ação substancial do Estado”, com “políticas econômicas e sociais robustas e transformadoras”. E o tratamento para a crise imensa que vivemos seria “o enterro do neoliberalismo”.
Que este seja o limite dos capitalistas, eu entendo. Mas não pode ser o nosso limite. Não devemos ser “escravos” de nenhum economista defunto, Lord Keynes inclusive. E se queremos mesmo defender a sobrevivência da humanidade e da natureza, então devemos “enterrar” a cepa neoliberal e também o capitalismo.
(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT