No museu de Bacurau há gotas de sangue que não devemos esquecer

No museu de Bacurau há gotas de sangue que não devemos esquecer

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No museu de Bacurau há gotas de sangue que não devemos esquecer

No museu de Bacurau há gotas de sangue que não devemos esquecer

No museu de Bacurau há gotas de sangue que não devemos esquecer

Por Sônia Fardin*

(não leia se não gosta de spoiler)

Laicidade é um traço político da vila Bacurau. Na ficção de um Brasil recolonizado, é a escolhida para ser varrida do mapa, assassinada pelo desejo necrófilo do capital.

Na comunidade fictícia, criada por Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, tem professor, médica, enfermeira, comerciante, agricultor, artista, radialista, profissional do sexo, museóloga, cozinheira, motorista, pistoleiro e político, mas não tem nem padre, nem pastor ou nenhuma outra figura de autoridade religiosa.

É na escola, no posto de saúde, na praça e no museu que a vida comunitária de Bacurau é gestada. Em torno desses espaços públicos e laicos que as estratégicas de solidariedade e referenciais de atuação política são coletivamente pactuadas. Diferente dos demais edifícios públicos, a única igreja inserida no cenário não tem a mesma potência na trama.

Sem omitir o sagrado, fincado no universo nordestino, o roteiro de Bacurau dá a ver distintas práticas espirituais, coloniais e nativas, porém sem dar lugar de autoridade a nenhuma pessoa ou instituição normatizadora e/ou mediadora de tais crenças. Nessa geografia urbana fictícia, sob a forma de uma micro urbe sertaneja, sublinhar essa ausência é de grande intencionalidade na construção da potência política da comunidade local.

Cidade laica e altiva, despida de falsos pudores, Bacurau busca o conhecimento em escolas que não se confinam em paredes e a dignidade dos corpos em sexualidades não aprisionadas em denominações; onde poetas cantam emoções sem preço e varais expõem marcas de sangue que nunca secam, na espera de quem as faça justiça.

Justiça em Bacurau veio com a reação de sua gente à barbárie do capital; reação apoiada em dois lugares que carregam memórias de lutas: o museu e a trincheira. O museu expõe a história no centro da vila; a trincheira, ocultada,  luta  para mudar a história.

O Museu e a trincheira são mais que espaços, são personagens centrais, que ganham protagonismo no momento de reação popular contra a barbárie imperialista. O museu e a trincheira não são metáforas, são duas formas históricas de resistir a morte.

Me detenho aqui no museu; como os demais espaços vivos da comunidade, o Museu Histórico de Bacurau é apresentado logo no início do filme, com tomadas que o situam no centro da vila; mas na primeira parte do filme apenas é mostrada a fachada da casa modesta e bem cuidada, coberta com pedras e letreiros grandes, cuja porta é aberta todas as manhãs por uma moradora. Mas a câmera não adentra ao acervo até que o fluxo dos acontecimentos exija acessar sua força. Porém, o afeto e referenciação da comunidade na casa da memória local são explicitados por dois moradores, que em momentos distintos fazem a mesma pergunta aos forasteiros: “Vocês vieram ver o Museu? É muito bom!”

Forasteiros incultos, que nunca vão a museus, em especial os museus trincheiras, pequenos em sua aparência mas profundos na capacidade de armar o mundo de perguntas sobre sangue derramado. Como diz Mário Chagas “Há uma gota de sangue em cada museu” (http://recil.grupolusofona.pt/handle/10437/4476).

Em Bacurau, foi essa consciência do sangue em sua Historia que fez dos pacatos moradores sujeitos insurgentes contra as formas capitalistas de produção da morte e os interesses que querem impor aos povos latinos o destino de reserva de caça das empresas transnacionais.

Na luta de libertação de Bacurau, do museu foram retiradas armas de antigos combates, das trincheiras a munição, e de ambos as experiências e o conhecimento para definir a estratégia do confronto.

Uma grande lição veio depois do combate. Após derrotar os invasores, na retomada da saga museal, a curadora orienta que limpem o chão, mas “Deixem as marcas das paredes, infelizmente”.

A decisão de manter na parede as marcas de mãos feitas com sangue é uma das lições da sabedoria de Bacurau: não esqueçamos o sangue dos nossos, derramado pelas mãos dos inimigos do povo, mas também não esqueçamos de nossa capacidade de reagir a altura e vencer!

*Sônia Fardin é militante petista, historiadora e doutora em artes visuais.

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